POR ALEXANDRE RAPOSO
Há muitos e muitos anos, em uma galáxia muito longe daqui, em uma época em que ainda não havia celular, Internet, sites pornográficos e encontros virtuais, um tempo de trevas e ignorância, sem BBB, sem Facebook, sem Twitter, sem nem mesmo um modesto ICQ, havia uma seção em uma extinta revista erótica sediada no Rio de Janeiro que mobilizava as atenções, corações, mentes e fantasias sexuais de legiões brasileiros, o Forum. Visto com olhos contemporâneos, tratava-se de uma bobagem: a mera transcrição de cartas enviadas pelos leitores — datilografadas ou escritas a mão! — narrando suas aventuras e fantasias sexuais. Naquele tempo porém, com o país recém-saído de duas longas décadas de ditadura, censura e feroz repressão às liberdades individuais, a seção tinha um enorme apelo.
Quando ainda em meu segundo ano de faculdade, mas já como redator contratado da revista, fui encarregado de administrar a seção, cargo que exerci por mais de um ano, até chegar outro calouro desavisado para ocupar o meu lugar. O texto abaixo reúne algumas lembranças desses tempos gloriosos em que o sexo era sem culpa, ninguém transava com camisinha, e a DST mais braba era curada com uma simples injeção de Benzetacil.
EM CERTA SEXTA-FEIRA após o expediente, a pretexto de comemorar o aniversário de um colega, a redação de Ele Ela se reuniu em um famoso bar da Glória para tomar o inevitável suco de laranja das 20h. É claro que o papo não podia girar a respeito de outra coisa a não ser a revista e, por extensão, mulher. Lá pelas tantas, já empolgados por uns três ou quatro refrescos, ouvimos uma voz feminina vinda do fundo do bar: “Aí, marmanjos! Vocês é que são os tais da ‘grutinha’?” Silêncio sepulcral. Todos os olhares convergiram na direção de onde vinha a voz e encontraram não uma, mas um grupo de quatro mulheres muito bem apanhadas, em uma congregação que mais lembrava um comitê popular do movimento feminista. E, a julgar pelos olhares que nos lançavam, evidentemente eram membros da ala radical.
Meio sem graça, alguém respondeu com a voz trêmula:
“É, mais ou menos, né...”
A pergunta veio direta, na bucha:
“Vem cá, esse Forum de vocês é verdade ou mentira?”
Não pudemos deixar de rir. Sempre a mesma pergunta! E claro que daí para frente as mesas se juntaram, as dúvidas foram esclarecidas e pelo menos dois redatores da revista tiveram pretextos de sobra para escreverem um Forum na manhã seguinte. Mas não o fizeram. Não era preciso. Nunca foi preciso.
Outro dia, conduzido pelo RP da empresa, um grupo de publicitários de diversas agências visitou a redação. Bastante inibido, um deles se adiantou ao grupo e explicou:
“Nós viemos aqui para...”
Não foi preciso terminar. Macaco velho, o chefe de redação emendou:
“Para saber se o Forum é verdade ou mentira, certo?” E, sem esperar a resposta, pousou sobre a mesa um caixote de madeira contendo aproximadamente 900 cartas de experiências íntimas dos leitores. “São as do mês...”, completou falsamente modesto.
E claro que, apesar dos insistentes apelos, não deixamos que vasculhassem a caixa. Afinal, entre outras virtudes, sempre nos gabamos do sigilo escrupuloso que oferecíamos aos nossos leitores. Mas até hoje fico a imaginar as loucuras que aquela junta publicitária não faria caso colocasse as mãos no material. Pois não havia gente que chamava o Forum de “termômetro informal da sexualidade brasileira”?
De uma vez por todas e daqui para frente: o Forum era verdadeiro e todas as cartas publicadas eram escritas por leitores ávidos por verem publicada sua peça erótica em nossas páginas amarelas. As centenas de cartas que chegavam por mês eram lidas por uma equipe de redatores e selecionadas a partir de critérios como qualidade do texto, erotismo e originalidade. Uma vez escolhidas as titulares, as cartas iam para o estaleiro onde — respeitando-se ao máximo o texto original — eram corrigidos erros de ortografia eventuais e substituídos os termos chulos por correspondentes publicáveis. Mas, igualmente de uma vez por todas, não fomos nós que inventamos esse papo de “grutinha do amor”.
Foi em novembro de 1973, na edição n. 55, que pela primeira vez se viu uma seção com o nome Forum. Entretanto, naqueles tempos bicudos, o Forum era completamente diferente da pícara seção que se tornou posteriormente e se apresentava assim: “Esta é a sua opinião. Escreva para a redação”. Ou seja, cumpria a função de uma seção de cartas e crítica dos leitores. Mas mudou devagarzinho.
Em meados da década de 70, o Forum já publicava cartas (ousadíssimas para a época) com ofertas de trocas de casais, e, por volta de março de 1977, abordava temas como sexo grupal, insatisfação, frigidez e esterilidade, fazendo as vezes de consultório sexual. Mas foi apenas na edição n. 98, de junho de 1977, que o Forum publicou pela primeira vez alguma coisa parecida com uma experiência (ou fantasia) de um leitor. A carta se chamava “Um Sabor Muito Feminino Para o Seu Chiclete” e dizia: “Admito francamente minha preferência pelo chamado sexo oral — mais precisamente, o delicioso cunnilingus. Só tenho outro xodó na vida: mascar chiclete. E a novidade, que certamente interessará aos leitores, é que consegui conciliar minhas duas paixões. Toda manhã, antes de sair para o trabalho, coloco um tablete desse chiclete tipo americano dentro das chamadas partes íntimas da minha mulher, enquanto ela faz a sua ginástica matinal. Quando ela termina, retiro o chiclete, refaço a embalagem e vou para o escritório. Passo umas três horas feito louco, antecipando aquele gostinho divino na minha boca, mas aguento firme até quase a hora do almoço, quando tiro do bolso o meu chiclete (que eu apelidei de chiclêta) e começo a mascar... Ah! Vocês não imaginam!”
Gradativamente, entremeadas por cartas curiosas, mas ainda do tipo “doutor, o que eu faço com o meu pinto?’’, as experiências dos leitores foram ganhando espaço na seção. No número 107 apareceu, enfim, o primeiro relato (com começo, meio e fim) de uma relação sexual, intitulado “Amor em Mar de Espanha”, onde a leitora inaugurou um dos maiores chavões da seção, o termo “cavalgar”: “... sentindo-o intensamente vivo sob mim, cavalguei-o, a princípio em trote lento, passando em seguida à marcha rápida, para chegar, com imenso prazer, ao galope largo, desatinado.”
Um dos principais argumentos de quem afirma que o Forum não era verídico — ou seja, que suas histórias eram forjadas na própria redação da revista — é o que costumam chamar de “linguagem pasteurizada”. Entre muitas cartas de leitores indignados com “a desfaçatez com que são impostas essas ‘cartas de leitor’; evidentemente criadas por imaginativos escritores”, a maior parte argumenta que “obviamente são escritas pela mesma pessoa, uma vez que se valem dos mesmos artifícios semânticos”. Ou seja, o que o indignado leitor queria dizer ao certo é que o Forum não era autêntico porque usava sempre os mesmos termos, como se fossem recursos estilísticos de um único autor. Ledo engano, para responder no mesmo estilo.
A verdade é que, uma vez que a seção se ampliou e se tornou a única desse tipo na grande imprensa brasileira, o Forum criou, por si mesmo, uma linguagem própria, democrática, pública, um estilo geral, gradualmente aperfeiçoado por seus muitos leitores-colaboradores.
Na edição n. 114, a seção Forum finalmente chegou à maturidade, ostentando em sua epígrafe: “Esta seção destina-se à publicação de cartas dos leitores sobre suas experiências sexuais e fantasias eróticas.” A essa altura, o Forum já era assunto de salão, mesa e alcova, e mais de uma faculdade de comunicação e psicologia premiara teses baseadas em seus relatos.
De fato, era uma experiência curiosa manusear aquelas cartas. Confirmando sua inteira confiança em nossa discrição, os leitores não só enviavam nome e endereço completos, como também cópias xerografadas de suas carteiras de identidade, embora isso fosse absolutamente desnecessário. Já os relatos eram entregas totais, e acreditamos que muitos de nossos correspondente não fossem tão sinceros nem mesmo com suas caras metades.
Muitas das cartas recebidas continham algum recado implícito para alguém. E isso ficava evidente quando, uma vez recusada, a mesma carta insistia em chegar, mês a mês, até a nossa capitulação (ou a desistência do leitor). Forum também serviu para aproximar tendências afins (a fim de tudo) e mais de uma vez , encantados com algum relato, os leitores escreviam pedindo o endereço deste ou daquele autor anônimo. Nossa atitude foi sempre a mesma: publicávamos a carta, tal qual era enviada, em nossa seção Cartas, na base do “se colar, colou”. O resultado disso foi que as cartas de Forum duplicaram em volume, pois, não bastando o relato original, nossos leitores não se privavam do prazer de contar as experiências sexuais resultantes de encontros travados por nosso intermédio. E Forum partiu para a metalinguagem — o que não tem nada a ver com sexo oral.
Podemos traçar toda a trajetória de Forum através dos tempos apenas através das mudanças estilísticas e de linguagem pelas quais passaram os depoimentos ao longo dos tempos. A princípio, os relatos apenas sugeriam o ato sexual, fixando-se mais na situação ou na descrição de ambiente e personagens. Termos como “partes pudendas” eram comuns nessa época.
Gradativamente, no entanto, a linguagem foi se sofisticando, tornando-se mais ousada e começando a procurar soluções mais originais. E chegou a época das “inhas”. Tudo era “inha”: era grutinha, xoxotinha, bundinha... os leitores caprichavam nos diminutivos, certamente procurando amenizar a crueza de seus relatos. Por isso, muita gente começou a achar que o Forum era escrito pela mesma pessoa.
É bom lembrar que escrever a respeito de experiências íntimas é tarefa complicada. Descrever sensações, tatos, cheiros... enfim, narrar o sexo de forma literária é um desafio instigante. Por isso, toda vez que algum leitor conseguia uma fórmula nova, imediatamente esta fórmula era adotada pelos outros correspondentes. Daí a “linguagem pasteurizada” de que se queixavam nossos críticos incrédulos.
Em certa época, fomos bombardeados por dezenas de cartas escritas pela mesma mulher, narrando as suas aventuras na África, e que invariavelmente citavam as dimensões avantajadas dos membros dos homens daquele continente. Publicamos uma, duas, três cartas, mas a empolgada leitora parecia ter um repertório inesgotável de trepadas africanas. Black is beautiful, sim, mas chegou um momento em que começou a encher o saco. Após a sétima carta publicada e a duodécima recebida, encerramos o safári. Continuou mandando suas aventuras africanas e tornou-se colaboradora exclusiva; mas nunca mais foi publicada. Mesmo porque, lá pela septuagésima aventura ela começou a se repetir, misturando aventuras já narradas com um ou outro elemento original, mas que não justificava a reprise.
Ao longo desses anos recebemos de tudo. Desde pelos pubianos caprichosamente aparados e enviados junto com as cartas (“para provar que não estou mentindo”), até relatos eróticos que poderiam ser classificados como boa literatura. E, quando não insistiam em falar no tamanho descomunal de seus membros avantajados, nossos leitores conseguiam criar peças cheias de humor e picardia, como a premiada “Adão, o Bananeiro”, uma das cartas mais sacanas e mais engraçadas que recebemos.
Ao longo dos tempos, Forum serviu como tribuna livre de nossos leitores, único espaço para a publicação de suas fantasias sexuais. Serviu também como intermediário para aventuras e como afrodisíaco para casais entediados. Na pior das hipóteses, Forum serviu, ao menos, para iniciar ótimas cantadas.
Como disse, todas as cartas publicadas eram verdadeiras, escritas pelos leitores, e nunca precisamos inventar nada. Nunca precisamos, o que não impediu que, uma vez na vida e outra na morte, algum de nós se sentasse à máquina para contar (por mero capricho) uma de suas aventuras. Era justo, era honesto. Afinal, também éramos humanos e alimentávamos nossas próprias fantasias...