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domingo, 12 de novembro de 2017

Celso Athayde revela no El Pais, que William Waack já era William Waack em 2000


por Celso Athayde (para El Pais) 

Nessa última quarta feira, mais precisamente às 16h45, minha timeline foi invadida com a expressão: “Isso é coisa de preto”. Conheço bem essa expressão, ela é a forma mais objetiva de apontar quem você acha ser uma pessoa menor, menos educada, menos capaz e menos humana. Para quem possui a pretensa superioridade étnica essa expressão é clássica, inconfundível e recheada de ódio, desprezo pelo outro, seja lá quem for. É preto e pronto. Para mim, era mais uma onda de racismo, como essas que vemos nas redes sociais toda hora. Só que não. Essa onda tinha um surfista famoso, essa onda era protagonizada por ninguém menos que um mestre da comunicação, era ele: William Waack. Na mesma hora um filme passou pela minha cabeça, minha experiência "Waack" foi em 2000 .


Quando o rapper MV Bill e eu apresentamos para os moradores da Cidade de Deus um videoclipe de 10 minutos chamado Soldado do Morro, fizemos um grande evento para cerca de 30.000 pessoas na favela. Era dia 25 de dezembro, noite de Natal. Levamos shows de Caetano, Djavan, Dudu Nobre, Cidade Negra, além do próprio Bill que começava sua carreira. No clipe apareciam algumas imagens de jovens armados, e como a TV Globo estava presente filmou o telão e o evento.

O senhor Waack, que na ocasião substituía a apresentadora Ana Paula Padrão, que estava de férias em Nova York, nos xingou em rede nacional. Ele destilou todo o seu preconceito e arrogância costumeira contra nós afirmando na tela que o que fazíamos era apologia ao crime. O episódio virou caso de polícia, que acabou requisitando uma cópia do videoclipe sob alegação de que faria, como disse Waack, apologia ao crime organizado. Nós não tínhamos dinheiro para pagar um advogado para processá-lo e, lógico, brigar com a TV Globo parecia suicídio.

Bill e eu resolvemos ir à Globo para acertar as contas com ele e acabamos num debate riquíssimo com o então diretor de comunicação, Luis Erlanger, que se tornou um dos nossos melhores amigos, e nos convenceu de que a opinião do moço não representava a opinião da emissora. A maior prova de que ele não mentia é que seis anos depois, aquelas mesmas imagens fora de contexto — que Waack usou para nos execrar nacionalmente —, foram reeditadas e transformadas no filme Falcão – Meninos do Tráfico, que recebeu prêmios em mais de 20 países. Mais que isso, foi considerado um filme que mudou a tevê brasileira. Foi um projeto costurado pelo próprio Erlanger e abraçado por seu gerente social na época, Luiz Roberto Ferreira.

Nossa posição em relação a Waack externamos em vários momentos, inclusive no próprio livro Falcão Meninos e Mulheres, onde contamos os bastidores do documentário.

Quando a noticia sobre Waack veio à tona, tenho certeza de que não surpreendeu ninguém, por tudo que ele já fez e faz. Pelas posições debochadas que ele tem em relação aos movimentos sociais e a qualquer movimento que não seja alinhado com sua postura elitista, ou mesmo com seus princípios estéticos.

Faço essa reflexão sem nenhum prazer, ao contrário. Fico triste de ver um homem tão culto, que prestou serviços tão relevantes ao jornalismo do país, manchar sua carreira com um fato tão grave. Triste também por ver que essas práticas estão aí e só conseguimos provar por acaso, pois os racistas negam que são racistas até a morte.

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quinta-feira, 26 de março de 2015

Celso Athayde: lorde da rua...



por José Esmeraldo Gonçalves (para a Contigo!) (*)

Para muitos cariocas, o Viaduto Prefeito Negrão de Lima, em Madureira, no Rio de Janeiro, é apenas mais um entre tantos que se espalham pela cidade. Mas para Celso Athayde, 52, fundador da Cufa (Central Única das Favelas), é a ponte que liga literalmente dois tempos da sua vida. Aquela laje de concreto foi o seu teto. Ali ele morou durante parte da infância com a mãe, Marina Soares, e o irmão mais velho, Paulo Athayde, ambos já falecidos. 

Hoje, o viaduto, um dos maiores do Rio, com mais de 500 metros de extensão, abriga quadra de basquete, pista de skate, espaço para oficinas de informática, técnicas audiovisuais, palestras, shows, festas, além de parte da estrutura administrativa da Cufa, que tem outra sede na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, e representações em comunidades de vários estados.

Foi nesse local, com mais de dois mil metros quadrados de área, reformado e reinaugurado no mês passado – agora com o nome de Espaço Cultural Marina Soares Athayde - que o empreendedor social recebeu a Contigo!. 

Celso acabava de voltar de uma visita aos Estados Unidos e Inglaterra, onde mantivera encontros com Chaim Litevski, 60, diretor do documentário Cidadão Boilesen, hoje chefe do departamento de TV da Organização das Nações Unidas, e com o embaixador Antonio Patriota, 60, atual representante do Brasil na ONU. A viagem fez parte de um projeto para a abertura de representações da Cufa em Nova York e Londres, ampliando o diálogo que a instituição já mantém com organizações populares de vários países.

Celso é autodidata. Autor dos livros “Falcão - Mulheres do Tráfico”, “Falcão - Meninos do Tráfico”, em parceria com o rapper MV Bill (Alex Pereira Barbosa), 41, e “Cabeça de Porco”, em coautoria com o sociólogo Luiz Eduardo Soares, 61, ele lançou, no ano passado, com Renato Meireles, “Um país chamado favela”, resultado da pesquisa Radiografia das Favelas Brasileiras feita pelo Instituto Data Favela, criado por Athayde e Meirelles. A obra é apresentada pelo amigo Luciano Huck, 44. Celso também dirigiu o documentário “Falcão, meninos do tráfico”, em dupla com MV Bill. 

Casado com a Marilza Pereira Athayde, 48, - que foi uma das produtoras do documentário sobre os meninos do tráfico, pai de Celso, 21, estudante de engenharia, e Thales, 19, aluno da London School of Economics (and Political Science), o ex-menino de rua fala com entusiasmo ao mostrar as instalações onde grupos de adolescentes jogam basquete e têm aulas de capoeira nos vãos sob o viaduto. Ele recorda com naturalidade os tempos difíceis que passou no mesmo lugar onde lidera iniciativas sociais que procuram abrir melhores perspectivas de aprendizado e de trabalho para milhares de moradores das mil e duzentas favelas que existem no Rio de Janeiro. Uma daquelas pilastras foi a “parede” da sua “casa”. “Não dá para esquecer”, diz ele, enquanto percorre as instalações. Quase não se ouve o barulho do trânsito pesado que passa sobre o viaduto. Em todos os espaços há isolamento acústico e impermeabilização. Na quadra de basquete de rua – que é o local para shows e festas – há aparelhos de ar condicionado. Quando ligados, cortinas fecham as laterais dos vãos do viaduto, onde a temperatura costuma ser alta. Não deixa de ser irônico, como lembra Celso. “Eu, minha mãe e meu irmão dormíamos em um canto que ventava. Aqui, a gente podia acordar com uma facada no peito porque era um espaço disputado, um corredor onde tinha um ventinho. E aí? O cara morre por causa daquele vento. O meu sonho aqui era ver o dia amanhecer”, conta.

O “corredor com ventinho” que a  criança daquela época, fim da década de 1960 via como “privilégio” foi apenas um dos capítulos na vida itinerante da família. Celso nasceu na comunidade do Cabral, em Nilópolis, na Baixada Fluminense. O pai, Altamiro Athayde, já falecido, era manobrista e lavador de carros. A mãe era doméstica e lavava roupas para fora. Ambos alcoólatras. “Ele era muito agressivo e minha mãe não aguentou mais. Eu com seis e meu irmão com sete anos saímos junto com ela. Meu pai batia muito na gente. Fomos inicialmente para a casa de uma tia. Mas era só estresse, não deu certo”, conta.  Sem opção, a família foi morar na rua, sob uma marquise no bairro de Marechal Hermes. “A gente roubava muito lá. Minha mãe chorava, chorava. Passou a chorar menos, passou a não chorar mais, passou a aceitar. A miséria é f.... A miséria vai corroendo tua dignidade, cara. Meu irmão era um ano mais velho, era mais forte.  A gente via a polícia passar correndo atrás dele, pegava, batia, levava pra delegacia e soltava novamente. Ele foi assassinado, mais tarde, ainda adolescente, em uma favela aqui perto”. Talvez essa dura vivência tenha dado a Celso Athayde um jogo de cintura para circular entre a favela e o asfalto. “Quando você integra as pessoas, consegue fazer com que as duas partes aprendam. Quando eu morava na rua, conheci um dia um comerciante que me ensinou uma coisa muito importante: comer com garfo e faca. Era um cara que falava com dificuldade, tinha um buraco no pescoço, mas dizia a mim e aos outros meninos que ia fazer da gente “lordes da rua”, ensinar a falar, se comportar. Ele contava histórias e aquilo ia me mostrando que o mundo ia além do que eu conhecia”. Athayde diz que, de certa forma, levava o que ele chama de vantagem sobre a maioria dos moradores de rua. “Apesar de viver ali, eu não tinha nascido na rua. Meu sonho era voltar para um barraco. Pior do que você morar na rua é nascer na rua. Tua referência passa a ser a própria rua e só”.

É por conhecer essa dramática realidade que ele questiona, por exemplo, o apelo de algumas campanhas dirigidas a moradores de rua que consomem crack e cola. “O cara cheira crack porque, se ele tiver dor de dente, não vai ao dentista, se tiver depressão não vai ao psicólogo, se sentir frio não vai pra casa. Se ele tem uma infeção urinária, vai fazer o que? Vai ao médico? Se tiver medo, o crack resolve. Tudo a cola resolvia. Na verdade, o crack e a cola são o pai e a mãe de quem mora na rua”, argumenta. Após o assassinato do irmão nas proximidades do viaduto, Athayde foi com a mãe para um abrigo público, então instalado no Pavilhão de São Cristóvão. 

Na época, as famílias levadas para o abrigo foram inscritas em um programa de habitação popular. Assim conseguiram uma casa na Favela do Sapo, em Senador Camará, na Zona Oeste do Rio. “Eu já adolescente, fui parar na favela onde estava se firmando a Falange Vermelha, que viria a ser o Comando Vermelho. O chefe era o falecido Rogério Lemgruber, um dos fundadores da organização. Fui trabalhar na boca-de-fumo. Eu queria me enturmar, ter aquela relação. Ser amigo do traficante, significava um certo poder. Hoje eu acho isso uma grande bobagem, mas quando moleque era até um forma de me proteger dos adultos”. Segundo Athayde, Lemgruber dizia que era comunista. “Depois, descobri que ele não era comunista, era botafoguense e admirador do João Saldanha. “Acho que apenas reproduzia aquele pensamento”, acrescenta, lembrando que o chefão era temido e reverenciado. “Um dia, me deu um livro. Eu nunca fui à escola, hoje consigo ler, mas ainda tenho dificuldade de acompanhar legendas de filmes muito rápidas. Lemgruber apareceu com “Guerra e Paz”, do Tolstoi, e disse que se eu e mais dois moleques não conseguíssemos ler o livro todinho, tomaríamos tiro na mão. Deu um prazo de três meses e marcou uma arguição. Tentava ler o livro, que tenho guardado até hoje, e não conseguia. Passei a apelar para revistinha do Batman e Robin para ver se aprendia. Era uma correria. Acabou que não houve a arguição e aquilo passou. Ele também obrigava a gente a ouvir Caetano Veloso, Geraldo Vandré e Chico Buarque, para ele, os grandes revolucionários. Hoje, Caetano é meu amigo, eu conto pra ele essa história”, revela.

Celso concluiu que não tinha vocação para ser bandido e decidiu se afastar do tráfico. “Eu não queria mais trabalhar em boca-de-fumo, tinha medo de tomar tiro”, diz ele, que conseguiu deixar o tráfico sem sofrer represálias, o que é comum, e virou camelô. “Rodei por Senador Camará, Maracanã e vim parar em Madureira. Um dia, o pessoal queria fazer uma festa de Cosme e Damião, não tinha lugar, e me lembrei do viaduto. Foi meu reencontro com o lugar onde eu tinha morado parte da minha vida. Era 1994. A festa foi um sucesso. Depois, passamos a fazer aqui um baile de Charme, vertente do soul e funk em voga no Rio. Ganhava um dinheiro ali. Deixei aquilo e fui fazer rap, que tinha um discurso mais antenado com o que eu queria fazer. Passei a me engajar”.  Largou um emprego de vigilante e ligou-se à música, passou a vender CDs e chegou a montar uma loja de discos, que faliu. Não desistiu e, nos anos seguintes, tornou-se promotor de eventos, produtor de shows, empresariou o grupo Racionais MC e lançou MV Bill e a rapper e apresentadora Gisele Gomes de Souza , a Nega Gizza, 30. 

Mas a inquietação o levou a repensar a rota. Athayde queria, como diz sempre, fazer com que a favela fosse protagonista cultural e econômica e não mera coadjuvante. “Eu montei na época um fórum, que não tinha esse nome, mas era um fórum. Arrumei uma sala de um curso e começamos  a fazer reuniões para falar sobre qualquer coisa. Enchia de gente. Caetano foi lá falar sobre tropicalismo, discutia-se de homossexualismo a energia nuclear. As pessoas faziam perguntas. Eu comecei a perceber que era o ignorante da turma, e que a favela tinha algum conteúdo”, conta. O passo seguinte foi promover um curso de audiovisual na Cidade de Deus, com a participação do diretor Cacá Diegues, 74. “Até então, a gente achava que só existia diretor e ator. Com a aula, aprendemos que cinema tem produção, pesquisa, montagem, trilha sonora, roteiro etc”, descreve ele que, após o curso, começou a filmar os shows do MV Bill no país inteiro. “A gente visitava muitas comunidades e comecei a falar com os moleques de cada lugar. Daí, surgiu o filme “Falcão, os meninos do tráfico”, que fez sucesso em mais de 30 países, embora, no Brasil, eu ainda responda a um processo por  “apologia ao tráfico” e tenha recebido ameaças de morte”, completa.

Embora permaneça ligado à Cufa, Athayde não mais dirige o dia a dia da instituição que atualmente é presidida pelo ativista social Francisco José Pereira, o Preto Zezé, 37. Há um ano, ele resolveu dar um passo maior e fundou a FHolding (Favela Holding), que, além de mantenedora da Cufa, coordena empresas com atuação comunitária. “É a primeira holding social do mundo. Pode ver no google. Existem empresas sociais, mas não uma holding”, diz. Segundo Athayde, já foram formadas 21 SPE (Sociedades de Propósito Específico) em parcerias com grandes grupos brasileiros e multinacionais, sempre com o objetivo de desenvolver setores da favela e qualificar seus moradores. Com a Conspiração Filmes, por exemplo, foi criada a Confusão, que atua na área de conteúdo para cinema, televisão e novas mídias; com a P&G e a Tendência, surgiu a Favela Distribuições, que implanta pontos de venda e distribuição de produtos; a Cadeia Produtiva é uma sociedade com a empresa italiana fabricantes de móveis, Doimo, para implantação de fábricas em comunidades e presídios; outra subsidiária é a Favela Vai Voando, que vende passagens aéreas a preços acessíveis. Já são mais de 100 pontos de venda em favelas. “Há vários outros parceiros, mas todas as empresas obedecem  à mesma lógica: a maioria dos funcionários é da favela. Sou um executivo social e quero ganhar dinheiro desenvolvendo riquezas nesses territórios. Meu trabalho é tornar protagonistas as pessoas desses territórios. A Cufa, por exemplo, não tem voluntários. Todo mundo aqui tem carteira assinada. Se não, eu teria só o discurso e estaria reproduzindo aquilo que estou criticando”, explica. O projeto que ele mais acalenta, no momento, é um shopping popular que uma das empresas da holding vai lançar em parceria com a rede mineira Uai. “Ficará no Complexo do Alemão. Os lojistas serão sócios do empreendimento e obrigatoriamente moradores da favela. E só vamos empregar morador da favela. O objetivo é que a grande parte da riqueza gerada circule na própria comunidade. Se não fosse assim, eu estaria vendendo a favela”, avalia.

O executivo social, como se define, é também um workaholic social. Embora tanto a mulher, Marilza, quanto os filhos participem das atividades da Cufa e das empresas, ele confessa que a família cobra sua presença. “Gosto do que faço. Mas realmente me sobra pouco tempo para o lazer. Tenho que apagar muito incêndio, pagar as minhas contas, os funcionários, um correria permanente. Fui agora no carnaval para a Bahia, e acabei trabalhando, de certa forma. Como criei recentemente a Liga dos Blocos Afros do Rio de Janeiro, fui ver como é feito para aplicar aqui. Às vezes vou para Angra dos Reis, onde temos um apartamento alugado. Em Nova York, tive um reunião e almocei no MoMa. Não dá para dizer que não me diverti trabalhando”.

(*) Com extras especiais para o blog