por José Esmeraldo Gonçalves (para a Contigo!) (*)
Para muitos cariocas, o Viaduto Prefeito Negrão de Lima,
em Madureira, no Rio de Janeiro, é apenas mais um entre tantos que se espalham
pela cidade. Mas para Celso Athayde, 52, fundador da Cufa (Central Única das
Favelas), é a ponte que liga literalmente dois tempos da sua vida. Aquela laje
de concreto foi o seu teto. Ali ele morou durante parte da infância com a mãe, Marina
Soares, e o irmão mais velho, Paulo Athayde, ambos já falecidos.
Hoje, o
viaduto, um dos maiores do Rio, com mais de 500 metros de extensão, abriga
quadra de basquete, pista de skate, espaço para oficinas de informática,
técnicas audiovisuais, palestras, shows, festas, além de parte da estrutura
administrativa da Cufa, que tem outra sede na Cidade de Deus, Zona Oeste do
Rio, e representações em comunidades de vários estados.
Foi nesse local, com mais de dois mil metros quadrados de área, reformado
e reinaugurado no mês passado – agora com o nome de Espaço Cultural Marina
Soares Athayde - que o empreendedor social recebeu a Contigo!.
Celso acabava de voltar de
uma visita aos Estados Unidos e Inglaterra, onde mantivera encontros com Chaim
Litevski, 60, diretor do documentário Cidadão
Boilesen, hoje chefe do departamento de TV da Organização das Nações Unidas,
e com o embaixador Antonio Patriota, 60, atual representante do Brasil na ONU. A
viagem fez parte de um projeto para a abertura de representações da Cufa em
Nova York e Londres, ampliando o diálogo que a instituição já mantém com
organizações populares de vários países.
Celso é autodidata. Autor dos livros “Falcão - Mulheres
do Tráfico”, “Falcão - Meninos do Tráfico”, em parceria com o rapper MV Bill
(Alex Pereira Barbosa), 41, e “Cabeça de Porco”, em coautoria com o sociólogo
Luiz Eduardo Soares, 61, ele lançou, no ano passado, com Renato Meireles, “Um
país chamado favela”, resultado da pesquisa Radiografia das Favelas Brasileiras
feita pelo Instituto Data Favela, criado por Athayde e Meirelles. A obra é
apresentada pelo amigo Luciano Huck, 44. Celso também dirigiu o documentário
“Falcão, meninos do tráfico”, em dupla com MV Bill.
Casado com a Marilza Pereira
Athayde, 48, - que foi uma das produtoras do documentário sobre os meninos do
tráfico, pai de Celso, 21, estudante de engenharia, e Thales, 19, aluno da London
School of Economics (and Political Science), o ex-menino de rua fala com
entusiasmo ao mostrar as instalações onde grupos de adolescentes jogam basquete
e têm aulas de capoeira nos vãos sob o viaduto. Ele recorda com naturalidade os
tempos difíceis que passou no mesmo lugar onde lidera iniciativas sociais que procuram
abrir melhores perspectivas de aprendizado e de trabalho para milhares de
moradores das mil e duzentas favelas que existem no Rio de Janeiro. Uma
daquelas pilastras foi a “parede” da sua “casa”. “Não dá para esquecer”, diz
ele, enquanto percorre as instalações. Quase não se ouve o barulho do trânsito
pesado que passa sobre o viaduto. Em todos os espaços há isolamento acústico e
impermeabilização. Na quadra de basquete de rua – que é o local para shows e
festas – há aparelhos de ar condicionado. Quando ligados, cortinas fecham as
laterais dos vãos do viaduto, onde a temperatura costuma ser alta. Não deixa de
ser irônico, como lembra Celso. “Eu, minha mãe e meu irmão dormíamos em um
canto que ventava. Aqui, a gente podia acordar com uma facada no peito porque
era um espaço disputado, um corredor onde tinha um ventinho. E aí? O cara morre
por causa daquele vento. O meu sonho aqui era ver o dia amanhecer”, conta.
O “corredor com ventinho” que a criança daquela época, fim da década de 1960
via como “privilégio” foi apenas um dos capítulos na vida itinerante da
família. Celso nasceu na comunidade do Cabral, em Nilópolis, na Baixada
Fluminense. O pai, Altamiro Athayde, já falecido, era manobrista e lavador de
carros. A mãe era doméstica e lavava roupas para fora. Ambos alcoólatras. “Ele era
muito agressivo e minha mãe não aguentou mais. Eu com seis e meu irmão com sete
anos saímos junto com ela. Meu pai batia muito na gente. Fomos inicialmente
para a casa de uma tia. Mas era só estresse, não deu certo”, conta. Sem opção, a família foi morar na rua, sob uma
marquise no bairro de Marechal Hermes. “A gente roubava muito lá. Minha mãe chorava,
chorava. Passou a chorar menos, passou a não chorar mais, passou a aceitar. A
miséria é f.... A miséria vai corroendo tua dignidade, cara. Meu irmão era um
ano mais velho, era mais forte. A gente
via a polícia passar correndo atrás dele, pegava, batia, levava pra delegacia e
soltava novamente. Ele foi assassinado, mais tarde, ainda adolescente, em uma
favela aqui perto”. Talvez essa dura vivência tenha dado a Celso Athayde um jogo
de cintura para circular entre a favela e o asfalto. “Quando você integra as
pessoas, consegue fazer com que as duas partes aprendam. Quando eu morava na
rua, conheci um dia um comerciante que me ensinou uma coisa muito importante:
comer com garfo e faca. Era um cara que falava com dificuldade, tinha um buraco
no pescoço, mas dizia a mim e aos outros meninos que ia fazer da gente “lordes
da rua”, ensinar a falar, se comportar. Ele contava histórias e aquilo ia me mostrando
que o mundo ia além do que eu conhecia”. Athayde diz que, de certa forma,
levava o que ele chama de vantagem sobre a maioria dos moradores de rua.
“Apesar de viver ali, eu não tinha nascido na rua. Meu sonho era voltar para um
barraco. Pior do que você morar na rua é nascer na rua. Tua referência passa a
ser a própria rua e só”.
É por conhecer essa dramática realidade que ele questiona,
por exemplo, o apelo de algumas campanhas dirigidas a moradores de rua que
consomem crack e cola. “O cara cheira crack porque, se ele tiver dor de dente,
não vai ao dentista, se tiver depressão não vai ao psicólogo, se sentir frio
não vai pra casa. Se ele tem uma infeção urinária, vai fazer o que? Vai ao
médico? Se tiver medo, o crack resolve. Tudo a cola resolvia. Na verdade, o
crack e a cola são o pai e a mãe de quem mora na rua”, argumenta. Após o
assassinato do irmão nas proximidades do viaduto, Athayde foi com a mãe para um
abrigo público, então instalado no Pavilhão de São Cristóvão.
Na época, as
famílias levadas para o abrigo foram inscritas em um programa de habitação
popular. Assim conseguiram uma casa na Favela do Sapo, em Senador Camará, na
Zona Oeste do Rio. “Eu já adolescente, fui parar na favela onde estava se
firmando a Falange Vermelha, que viria a ser o Comando Vermelho. O chefe era o
falecido Rogério Lemgruber, um dos fundadores da organização. Fui trabalhar na
boca-de-fumo. Eu queria me enturmar, ter aquela relação. Ser amigo do
traficante, significava um certo poder. Hoje eu acho isso uma grande bobagem,
mas quando moleque era até um forma de me proteger dos adultos”. Segundo
Athayde, Lemgruber dizia que era comunista. “Depois, descobri que ele não era
comunista, era botafoguense e admirador do João Saldanha. “Acho que apenas reproduzia
aquele pensamento”, acrescenta, lembrando que o chefão era temido e
reverenciado. “Um dia, me deu um livro. Eu nunca fui à escola, hoje consigo
ler, mas ainda tenho dificuldade de acompanhar legendas de filmes muito rápidas.
Lemgruber apareceu com “Guerra e Paz”, do Tolstoi, e disse que se eu e mais
dois moleques não conseguíssemos ler o livro todinho, tomaríamos tiro na mão.
Deu um prazo de três meses e marcou uma arguição. Tentava ler o livro, que
tenho guardado até hoje, e não conseguia. Passei a apelar para revistinha do
Batman e Robin para ver se aprendia. Era uma correria. Acabou que não houve a
arguição e aquilo passou. Ele também obrigava a gente a ouvir Caetano Veloso,
Geraldo Vandré e Chico Buarque, para ele, os grandes revolucionários. Hoje,
Caetano é meu amigo, eu conto pra ele essa história”, revela.
Celso concluiu que não tinha vocação para ser bandido e
decidiu se afastar do tráfico. “Eu não queria mais trabalhar em boca-de-fumo,
tinha medo de tomar tiro”, diz ele, que conseguiu deixar o tráfico sem sofrer
represálias, o que é comum, e virou camelô. “Rodei por Senador Camará, Maracanã
e vim parar em Madureira. Um dia, o pessoal queria fazer uma festa de Cosme e
Damião, não tinha lugar, e me lembrei do viaduto. Foi meu reencontro com o lugar
onde eu tinha morado parte da minha vida. Era 1994. A festa foi um sucesso. Depois,
passamos a fazer aqui um baile de Charme, vertente do soul e funk em voga no
Rio. Ganhava um dinheiro ali. Deixei aquilo e fui fazer rap, que tinha
um discurso mais antenado com o que eu queria fazer. Passei a me engajar”. Largou um emprego de vigilante e ligou-se à
música, passou a vender CDs e chegou a montar uma loja de discos, que faliu. Não
desistiu e, nos anos seguintes, tornou-se promotor de eventos, produtor de shows,
empresariou o grupo Racionais MC e lançou MV Bill e a rapper e apresentadora
Gisele Gomes de Souza , a Nega Gizza, 30.
Mas a inquietação o levou a repensar
a rota. Athayde queria, como diz sempre, fazer com que a favela fosse
protagonista cultural e econômica e não mera coadjuvante. “Eu montei na época
um fórum, que não tinha esse nome, mas era um fórum. Arrumei uma sala de um
curso e começamos a fazer reuniões para
falar sobre qualquer coisa. Enchia de gente. Caetano foi lá falar sobre
tropicalismo, discutia-se de homossexualismo a energia nuclear. As pessoas
faziam perguntas. Eu comecei a perceber que era o ignorante da turma, e que a
favela tinha algum conteúdo”, conta. O passo seguinte foi promover um curso de audiovisual
na Cidade de Deus, com a participação do diretor Cacá Diegues, 74. “Até então, a
gente achava que só existia diretor e ator. Com a aula, aprendemos que cinema tem
produção, pesquisa, montagem, trilha sonora, roteiro etc”, descreve ele que,
após o curso, começou a filmar os shows do MV Bill no país inteiro. “A gente
visitava muitas comunidades e comecei a falar com os moleques de cada lugar.
Daí, surgiu o filme “Falcão, os meninos do tráfico”, que fez sucesso em mais de
30 países, embora, no Brasil, eu ainda responda a um processo por “apologia ao tráfico” e tenha recebido ameaças
de morte”, completa.
Embora permaneça ligado à Cufa, Athayde não mais dirige o
dia a dia da instituição que atualmente é presidida pelo ativista social Francisco
José Pereira, o Preto Zezé, 37. Há um ano, ele resolveu dar um passo maior e
fundou a FHolding (Favela Holding), que, além de mantenedora da Cufa, coordena
empresas com atuação comunitária. “É a primeira holding social do mundo. Pode
ver no google. Existem empresas sociais, mas não uma holding”, diz. Segundo
Athayde, já foram formadas 21 SPE (Sociedades de Propósito Específico) em
parcerias com grandes grupos brasileiros e multinacionais, sempre com o
objetivo de desenvolver setores da favela e qualificar seus moradores. Com a
Conspiração Filmes, por exemplo, foi criada a Confusão, que atua na área de
conteúdo para cinema, televisão e novas mídias; com a P&G e a Tendência,
surgiu a Favela Distribuições, que implanta pontos de venda e distribuição de
produtos; a Cadeia Produtiva é uma sociedade com a empresa italiana fabricantes
de móveis, Doimo, para implantação de fábricas em comunidades e presídios;
outra subsidiária é a Favela Vai Voando, que vende passagens aéreas a preços
acessíveis. Já são mais de 100 pontos de venda em favelas. “Há vários outros
parceiros, mas todas as empresas obedecem
à mesma lógica: a maioria dos funcionários é da favela. Sou um executivo
social e quero ganhar dinheiro desenvolvendo riquezas nesses territórios. Meu
trabalho é tornar protagonistas as pessoas desses territórios. A Cufa, por
exemplo, não tem voluntários. Todo mundo aqui tem carteira assinada. Se não, eu
teria só o discurso e estaria reproduzindo aquilo que estou criticando”,
explica. O projeto que ele mais acalenta, no momento, é um shopping popular que
uma das empresas da holding vai lançar em parceria com a rede mineira Uai.
“Ficará no Complexo do Alemão. Os lojistas serão sócios do empreendimento e obrigatoriamente
moradores da favela. E só vamos empregar morador da favela. O objetivo é que a
grande parte da riqueza gerada circule na própria comunidade. Se não fosse
assim, eu estaria vendendo a favela”, avalia.
O executivo social, como se define, é também um
workaholic social. Embora tanto a mulher, Marilza, quanto os filhos participem
das atividades da Cufa e das empresas, ele confessa que a família cobra sua
presença. “Gosto do que faço. Mas realmente me sobra pouco tempo para o lazer. Tenho
que apagar muito incêndio, pagar as minhas contas, os funcionários, um correria
permanente. Fui agora no carnaval para a Bahia, e acabei trabalhando, de certa
forma. Como criei recentemente a Liga dos Blocos Afros do Rio de Janeiro, fui ver
como é feito para aplicar aqui. Às vezes vou para Angra dos Reis, onde temos um
apartamento alugado. Em Nova York, tive um reunião e almocei no MoMa. Não dá
para dizer que não me diverti trabalhando”.
(*) Com extras especiais para o blog