Só outro dia me dei conta da importância das cidades e dos rios na vida de um homem. Nasci em Curitiba entre os riachos Ivo e Belém, bisonha mesopotâmia provinciana que virou mitologia nas páginas de Dalton Trevisan.
Pont Neuf, na Île de la Cité, seguindo para a rive gauche de Paris. |
Hoje moro na Rua das Laranjeiras, onde passa, subterraneamente, o Rio Carioca, que deu nome ao habitante da cidade. Ele desce do alto da Floresta da Tijuca, aflora em alguns trechos do Cosme Velho e no alto da Rua das Laranjeiras, e vai desaguar na praia do Flamengo. Passa pelo local onde ficava a casa de Machado de Assis, antes de passar, 500 metros depois, por meu apartamento, no Baixo-Glicério.
O Tietê na região urbana de São Paulo. |
Em 1968-69 morei na megalópole São Paulo, trabalhei no arrogante prédio da Editora Abril, com vista privilegiada para o fétido e lamacento Tietê – mas o Tietê é um rio histórico, Mário de Andrade terminou, treze dias antes de morrer, o poema épico A Meditação sobre o Tietê (*), que acaba assim:
“Sob o arco admirável/Da Ponte das Bandeiras,/ morta, dissoluta, fraca,/ Uma lágrima apenas, uma lágrima,/Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.”
União da Vitória (PR) e Porto União (SC): as “Gêmeas do Iguaçu”. |
Em tempo: achei um jeito de me redimir da indigência fluvial de Curitiba. Nos arredores da cidade, na confluência dos arroios Atuba e Iraí, nasce o rio Iguaçu, que segue para o sul até formar, no seu curso para o oeste, a divisa entre Paraná e Santa Catarina. O olho d’água das cercanias de Curitiba, 1320 quilômetros depois, se transformou no conjunto de cataratas mais espetacular do planeta: as Quedas do Iguaçu.
Tive uma relação corporal conturbada com o Iguaçu. Quando prestava o serviço militar no CPOR, durante as manobras de verão nas cidades-gêmeas de União da Vitória (PR) e Porto União (SC), a arma de engenharia acampou às margens do rio, que ali já ostentava a largura respeitável de duzentos metros. Às três da madrugada acordei boiando em meu saco de dormir, com nossa barraca sendo levada pela forte correnteza. Na época eu sofria de uma amidalite crônica que se agravou com o banho forçado. De volta a Curitiba, fui levado diretamente a uma sala de cirurgia para extrair as amídalas.
Lembro ainda de um rio que ocupou parte da minha vida (quase vinte anos) nos fins de semana em Itaipava, o Piabanha. Por sua beleza natural, inspirou até uma escola de pintura paisagística serrana, mas podia ser temível em seus momentos de fúria: nos temporais de verão costumava arrastar e engolir vários carros.
Não vejo mais novos rios em meu horizonte imediato, acho que estou mais por conta do Estige ou do Aqueronte. Mas tenho a impressão de que o barqueiro Caronte anda ocupado demais para se lembrar de mim. Ainda bem...
(*) Para ler o poema completo, A Meditação sobre o Tietê, de Mário de Andrade,
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