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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Mídia: Jornal Nacional X Bolsonaro, o caso que virou 'case'

A guarita que virou notícia. Reprodução Twitter
por José Esmeraldo Gonçalves

Sob qualquer ângulo, o embate entre a Rede Globo e Jair Bolsonaro tem seu lugar garantido como objeto de estudo em salas de aulas das faculdades de Comunicação e Direito.

Virou "case". Há lambanças para todos os gostos e apetites.

Do ponto de vista jornalístico, o Jornal Nacional acertou e errou sobre o que aconteceu no Condomínio Vivendas da Barra no dia 14 de março de 2018, não por acaso o dia em que a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados no Estácio, bairro da zona Central do Rio de Janeiro. É fato que não mentiu: existe a declaração do porteiro, segundo a qual um elemento suspeito de participar do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes pediu acesso à casa do então deputado, obteve autorização de "Seu Jair", mas se dirigiu para a residência de outro suspeito de participar do atentado à vereadora. A Globo também informou, na mesma matéria, que havia uma contradição: naquele dia dia e hora Bolsonaro estava em Brasília e não poderia autorizar a entrada de quem quer que fosse. Pelo menos não via interfone, acrescente-se.

O Jornal Nacional tem o argumento válido de que apenas noticiou um fato e se baseou em informações colhidas em um inquérito policial. Mas qualquer jornalista sabe que editar um jornal ou uma revista é fazer escolhas. Determinados fatos são noticiados, outros não. Os motivos podem ser muitos, entre os quais questões políticas, ideológicas, comerciais, religiosas, pessoais e até jornalísticas.

Aquele fato envolvendo o Condomínio Vivendas, era, para os editores do JN, uma notícia importante. Pelo que se sabe, a Globo teve acesso a um documento vazado. Se todo fato deve ser exaustivamente apurado antes de ser noticiado, uma pauta vazada, mais do que qualquer outra, deve ser investigada. Até por cautela. Vazou porque? Quem teve interesse em vazar? A quem serve o vazamento? Quais as circunstâncias? Aparentemente, o JN não verificou o fundo desse poço.

Para grande parte da audiência, o vídeo de um Bolsonaro emocionalmente descontrolado e, em seguida, a divulgação dos arquivos de áudio do controle de entradas de pessoas no condomínio onde mora o ex-deputado funcionaram como um eficiente "desmentido". A gravação mostraria que o porteiro teria obtido autorização para a entrada do visitante diretamente ao morador da casa 65, a de um dos suspeitos de matar Marielle, e não com a casa 58, a do Bolsonaro.

Talvez tenham sido negligentes por força de um hábito recente. Ao longo de anos de divulgação de denúncias contra o ex-presidente Lula, a palavra de delatores, os vazamentos selecionados da Lava Jato e até pré-combinados com a força-tarefa - como mostram os conteúdos do grupo do Telegram dos revelados pelo Intercept - chegavam em proporções industriais às mesas do Grupo Globo e eram rapidamente embrulhados e oferecidos aos fregueses. A máquina institucional dos governos do PT, que isso seja reconhecido, não foi posta a serviço dos então presidentes Lula e Dilma, ou de qualquer ministro da época, para intimidar ou conter jornalismo ou a própria investigação da Lava Jato ou do Mensalão. Para obter desmentidos, os alvos dessas etapas tiveram que recorrer à justiça, um direito que a lei dá a todos os cidadãos. Bolsonaro, ao contrário, agiu rapidamente. Mobilizou instituições de Estado como se fossem suas. Acionou publicamente o ministro da Justiça, que tem a PF sob seu guarda-chuva, o Advogado Geral da União, a Procuradoria Geral da República e o MPRJ. Em poucas horas, o caso, pelo menos no que se refere a Bolsonaro, foi aberto e arquivado pela PGR e perícias teriam sido realizadas. Ao mesmo tempo, um dos filhos de Bolsonaro revelava os áudios da portaria do condomínio.

Com a velocidade de um Fórmula 1 em retas, respostas foram obtidas e o grande "culpado", o porteiro, foi logo apontado e praticamente "sentenciado".  Se o Caso Marielle se aproxima de dois anos sem todas as respostas, o Caso Condomínio foi velozmente autopsiado. E se o MPRJ, a Polícia Civil, o STF já tivessem essas respostas prontas no inquérito, então quem vazou o documento para o JN entregou apenas parte do material e deixou o filé ao ponto  - os áudios - para a mesa de outros  interessados.

Apesar dos indícios de ligações perigosas entre o clã no poder e os poderes de alguns milicianos, inclusive de óbvia vizinhança e de relacionamentos públicos, o JN, pela precipitação, acabou dando a Bolsonaro a chance de exibir para suas tropas de choque uma espécie de "atestado de boa conduta". Nesse caso específico, ressalte-se.

Faltou jornalismo investigativo, sobrou o vício do jornalismo declaratório, aquele que se contenta com documentos e aspas oficiais ou oficiosas e simplesmente os passa adiante.

Ainda há tempo de corrigir a mancada. Há muito a apurar. Mas há que tirar os repórteres, os bons repórteres, do ar condicionado.

Resta observar que nunca tantas e tão convictas autoridades apontaram o dedo-duro tão rapidamente para um porteiro. E o funcionário do Vivendas da Barra jamais imaginou que sua guarita seria atingida por um poderoso míssil político.