por José Esmeraldo
Gonçalves (*)
Em tempos de câmeras digitais, celulares e selfies, a cena,
na madrugada de Copacabana, é quase inimaginável. Em um apartamento da rua
Bolívar, depois de mais uma noite de trabalho, um fotógrafo se debruça sobre
tanques de revelação de filmes em preto e branco. Aos poucos, vão se fixando no
papel as imagens que ilustrarão as colunas sociais dos principais jornais do
país. Pode-se dizer que o varal de secagem das ampliações naquela câmara escura
era a última escala das socialites, dos casais do momento, dos mega empresários,
das mais belas modelos, atrizes e cantores, antes de chegarem à mesa dos
colunistas sociais Zózimo Barroso do Amaral, Ibrahim Sued, Fernando Zerlottini,
Fred Suter, Daniel Más, Hildegard Angel, 65, e Ricardo Boechat. 63.
Entre 1984 e 2001, o fotógrafo Ronaldo Zanon, 64, cumpriu o ritual diário descrito acima. Seu
local de trabalho era o mítico Hippopotamus, em Ipanema, onde chegava às dez da
noite e de onde não saía antes das quatro da madrugada. “Uma vez fiquei até o
dia amanhecer só para tirar uma foto do ator Robert de Niro”, recorda Zanon, na
ampla sala da sua cobertura, em Copacabana, onde guarda centenas de fotos e
negativos. O fotógrafo se divertiu ao tirar do armário um paletó anos 80,
ostentando a etiqueta Tories-London, e uma gravata da grife Vichy Davis-NY, com
o qual posou para a foto.
Zanon parou de fotografar há dez anos. Motivo? “O ciclo
fechou. Era um trabalho que me dava prazer e onde fiz muitos amigos, mas parei
em função do fim das colunas sociais. Ibrahim (Sued) e Zózimo (Barroso do
Amaral) já haviam morrido, (Ricardo) Boechat não estava mais no Globo, o
Hippopotamus não existia mais, a própria noite já não era a mesma. Não fazia
mais sentido”, explica. Nas últimas semanas, o próprio fotógrafo, que hoje se
dedica a projetos de hotelaria, reabriu, de certa forma, aquele ciclo da noite
carioca. Sem grandes pretensões, passou
a postar no Facebook fotos dos seus arquivos. Surpreendeu-se com a repercussão.
Entre curtidas e comentários, sua página tornou-se um ponto de encontro virtual
das musas que reinaram no Hippopotamus. Incentivado pelos amigos, Zanon planeja
agora uma exposição. Capixaba, de Colatina, ele chegou ao Rio no começo de
1970. Conseguiu um trabalho em uma grande fábrica de doces. “Era office boy,
fazia serviços externos. Mas sempre fui muito interessado e, ao voltar da rua,
sentava perto do contador ou do rapaz do departamento de pessoal e via como
funcionavam aqueles setores. Um dia, o presidente da empresa precisou de uma
fatura, não tinha na hora quem fizesse o documento, eu me apresentei e resolvi o
problema. Um ano e pouco depois, já cuidava do estoque, do setor de compras,
fazia balanço e controle de custos. Passei quase dez anos na empresa”, conta.
Apesar de ganhar bem, Zanon buscava outros caminhos. “Através de um amigo,
soube do curso de teatro do ator Jaime Barcelos. Um dos professores era o
também ator Luís de Lima. Resolvi tentar. Glória Pires, que devia ter uns 12
anos, era uma das alunas do curso. Eu queria ser ator, mas não podia me afastar
do trabalho. Morava com a minha família, todos trabalhando e dividindo as contas.
Mas concluí o curso”, diz Zanon, que devia ter algum talento, pois Luís de Lima
o convidou para atuar em um espetáculo. “Mas você vai ter que sair do emprego”
– ele me disse, avisando que ensaios, produção, tudo isso exigia tempo
integral. “Era coisa para o futuro, eu não ganharia nada. E eu tinha um bom
salário, dois carros, um deles, um Puma, que eu adorava, uma moto CB400, a
responsabilidade com a minha família”.
Se o teatro ficou para trás, a estabilidade do emprego foi,
alguns anos depois, trocada pela fotografia, sem hesitação. “Eu nunca havia usado
uma máquina na vida. Uma turma resolveu promover um torneio feminino de futebol
na praia. Peguei uma câmera emprestada, era uma Zenith, muito simples, de
plástico, e comprei três filmes. Fiz as fotos e me apaixonei. Procurei um curso
de fotografia, já certo do que queria. Ainda fiquei um tempo na empresa, mas já
com a decisão tomada”, diz Zanon, que aprendeu a revelar filmes no estúdio de
um amigo, o fotógrafo Ricardo Cânfora. “Depois, fui trabalhar com o Rogério Ehrlich,
outro fotógrafo, que editava uma revista social chamada Momentos, mas ainda na
revelação”, recorda. O passo seguinte foi incomum. Zanon deve ser único
fotógrafo do mundo cujo primeiro trabalho profissional foi feito com uma câmera
sem filme. “Aqui perto tinha uma boate chamada Studio C e, uma noite, peguei
uma câmera Nikon que eu havia comprado e pedi para entrar na boate. Fiquei lá,
num canto. Passei a ir lá toda noite. Ninguém me olhava, mas eu estava lá, não
bebia nada, nem água. Pensava que em algum momento alguém me pediria para fazer
uma foto. Naquela fase, eu já havia vendido o Puma e a moto. Estava ‘quebrado’.
Em uma noite, fiquei sem filme - tinha usado os últimos em exercícios e testes
-, e sem dinheiro”, recorda Zanon, rindo do “destino”, pois exatamente naquele dia,
um rapaz se aproximou e lhe pediu que fotografasse um show que ia acontecer na
boate. “Tive que aceitar. Se eu falasse que não tinha filme, o proprietário da
boate não ia entender o que eu fazia ali toda noite e proibiria a minha entrada.
Era um show inspirado em Carmen Miranda.
Saí de lá arrasado. No dia seguinte, liguei para o rapaz que me
contratou e contei toda a história. Expliquei que não tinha como recusar. Ele
agradeceu a franqueza, falou que não tinha problema e que eles fariam outro
espetáculo”.
Logo depois, Zanon foi contratado para um evento em um hotel. Aos
poucos, ampliou seus contatos no meio. “Um dia, me ligaram da Contigo! e passei
a fazer velório, aniversário, matérias com artistas, muita coisa. Era o começo
dos anos 1980. Foi trabalhando para a revista que entrei no Hippo pela primeira
vez. Se não me engano, para cobrir um aniversário de Lucinha Araújo, a mãe do
cantor Cazuza”, diz ele, que naquela missão provocou literalmente uma “saia
justa”. “Ninguém me conhecia lá e eu procurava um flagrante, alguma coisa mais
quente. Aí vi a Paula Lavigne em uma mesa com o Caetano Veloso e amigos. Percebi
que estava aparecendo a calcinha dela. Nada de mais, só uma pontinha. Me
abaixei e fiz a foto, que foi publicada. Depois, soube que a Lucinha Araújo procurou
saber no Hippo quem tinha tirado aquela foto. Mas não deu problema”, revela.
Foi um convite de Michael Koellreutter, que na época era
colunista e repórter especial da Interview, que abriu para Zanon,
definitivamente, as portas do Hippopotamus. “Michael me convidou para ir lá e
me apresentou o Júlio Canto, que era o braço-direito do proprietário Ricardo
Amaral. Ficamos conversando no barzinho. De repente, o Julio falou que estava
precisando de um fotógrafo e me pediu que fosse lá no dia seguinte. Assim virei
o fotógrafo fixo do Hippopotamus”, conta. A casa do Amaral, aberta em 1977, era
um clube fechado. Só entrava quem tinha cartão. As exceções eram as pessoas de prestígio.
Gente muito bonita tinha chance, mas aí precisava passar pelo crivo digno de um
scanner das promoters que cuidavam da frequência da casa. E, claro, recebia as
estrelas internacionais em visita ao Rio. O território de Zanon eram os três
ambientes do Hippo – o bar, a discoteca e, no andar superior, o restaurante,
além de um jardim interno com cascata e luzes rosa e laranja-amarelo – onde era
possível cruzar com Odile Rubirosa, 77, ex-mulher do playboy Porfírio Rubirosa,
Emerson Fittipaldi, 68, Paulo Marcondes Ferraz, 77, Baby Monteiro de Carvalho,
Carmen Mayrink Veiga, 86, Florinda Bolkan, 74, com condessa Marina Cicogna, 81,
Pelé, 74, com Xuxa Meneghel, 52, Walter Clark, Amy Irving, 64, Roman Polanski, 84,
Lili de Carvalho antes de se tornar senhora Roberto Marinho, Aparecida Marinho,
58, Vera Fischer, 64, Lúcia Veríssimo, 56, Gérard Depardieu, 66, e tantos outros personagens das colunas
sociais ou do jet set da época. “Era um manancial de gente maravilhosa. Fui
fazendo relacionamentos, passei a privar da intimidade das pessoas, muitos
viraram amigos e me chamavam para fotografar jantares e eventos”, recorda. A
abordagem amigável de Zanon o levou a conseguir a única foto autorizada do
roqueiro Axl Rose, 53, da banda Guns n’ Roses, no Brasil. “Achei que ia ter
problema, o cara vinha de São Paulo, onde tinha quebrando móveis e agredido
fotógrafos. Quando ele se levantou pra ir embora, me aproximei e pedi uma foto.
Temi que ele desse um tapa na minha máquina, mas ele olhou pra mim, relaxou, e posou”.
Zanon também fotografou a princesa Diana. “Foi no Copacabana Palace, fiz uma
foto dela e do príncipe Charles ao lado de um amigo do casal, Ronaldo Xavier de
Lima. Fotografei a Lady Di com uma bebezinha no colo, era a Maria, filha da
Maitê Proença e do Paulo Marinho. Levei para o Ibrahim e ele com aquele
vozeirão dizia: ‘quero exclusivo, não dá pra mais ninguém’. E publicou meu
material do casal real durante três dias”.
Discreto e seguido suas próprias regras, Zanon via e ouvia
mas apenas fotografava. Suas fotos chegavam aos jornais com os personagens
identificados. E só. Os enredos eram preservados. E olha que, ao longo de duas
décadas, o Hippopotamus construiu um folclore de casos-verdade. Como o do
colunista que achava que toalete era motel e o lugar ideal para namorar a
mulher do amigo; ou do “herói” carioca que, em um fim de noite, levou para casa
um troféu: a jovem Demi Moore (a atriz, iniciante, filmava Blame It on Rio); ou do jornalista americano que pediu “coke” e se
irritou quando lhe deram uma simples coca-cola; ou, ainda, o caso do embaixador
que se empolgou por uma jovem, saiu com ela e, no dia seguinte, voltou contando
que a noite havia sido maravilhosa. A jovem era um travesti que um dos ilustres
frequentadores do Hippo costumava levar lá para se divertir, como entrega Ricardo
Amaral nas suas memórias intituladas Vaudeville.
Ronaldo Zanon guarda, por trás das fotos
e nos seus arquivos, a memória de uma das casas que mais marcaram a noite
carioca. É inevitável que a época lhe traga tantas lembranças. Foi no circuito
elegante do Rio dos anos 1980 que ele conheceu a gaúcha Cristina Kloske, 46,
frequentadora do Hippo, com quem foi casado. “Vivi 12 anos com Cristina, que é
minha amiga até hoje e mãe da minha filha, Anna Carolina Zanon Kloske, ainda estudante,
e que tem 22 anos”, orgulha-se. Entre a memorabilia,
ele preserva uma coluna assinada por Hildegarde Angel, com a cobertura de
uma festa na boate Horse Neck, em meados dos anos 2000. E uma página inteira no
Jornal do Brasil. Suas últimas fotos, antes de guardar a câmera.
(*) Matéria publicada originalmente na revista Contigo e reproduzida neste blog com trechos extras