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terça-feira, 22 de abril de 2025

Memórias - Roberto Muggiati escreve: o Papa Francisco e eu (*)

Francisco no circuito carioca. Foto L'Osservatore Romano

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O Papa Francisco e eu - por Roberto Muggiati"

"Nunca fui de correr atrás de Papas (ou de celebridades em geral). Minha relação com a Igreja Católica não sobreviveu ao penoso rito da Primeira Comunhão, na paroquia de Santa Teresinha do Menino Jesus, no bairro do Batel, em Curitiba. Aquele bullying todo em torno da confissão – você tinha obrigatoriamente de ter pecados a expiar, ou então estaria mentindo. Os mais espertos inventavam pecados para sair logo daquela roubada. Outros, em pânico, chegavam até a comprar – com bolas de gude ou balas Zequinha – “pecados” a serem sussurrados ao obscuro inquisidor por detrás da treliça. Havia ainda a campanha de terror que cercava a ingestão da hóstia sagrada – o santo-cura histérico o intimidava a não ferir ou morder o corpo de Cristo. Troquei a arejada e solar igreja de Santa Teresinha – obra de mestres-de-obra imigrantes italianos que posavam de arquitetos – pela escura e misteriosa Catedral de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, elevada a Basílica Menor em 1993, ano do seu centenário. Como ainda não conhecera de perto as grandes catedrais medievais da Europa, eu me contentava com aquela cópia em estilo neogótico – ou gótico romano – inspirada na Catedral da Sé de Barcelona. E mais, meu pai, que tocava violino, costumava me levar até o majestoso órgão – era amigo do organista e de membros do coral – a meio caminho, subindo por uma escadaria íngreme e estreita, do campanário, onde eu me sentia o próprio Corcunda de Nôtre Dame (não tinha lido o romance de Victor Hugo, mas me impressionara com o filme em que Charles Laughton interpretava Quasimodo.) Havia ainda na Catedral de Curitiba a vigília do Cristo Morto na Semana Santa, na madrugada de sexta-feira, da qual meu pai participava com a capa solene da confraria – as imagens religiosas da igreja todas cobertas de pano roxo, só o Cristo crucificado do pequeno altar à direita do portão de entrada, com suas chagas sangrentas brutalmente expostas, um dos mais horripilantes que já vi em toda minha vida.

Havia um toque leigo, também: a missa das nove aos domingos na Catedral era conveniente, pois a poucos passos dali, às dez, começava o programa de rádio infanto-juvenil no Clube Curitibano. O apresentador, José Augusto Ribeiro – prenunciando já o fabuloso orador que viria a ser – comandava o show que tinha, entre suas atrações, as fabulosas irmãs catarinenses Van Steen, uma delas a Edla, que ganhou o mundo como atriz e escritora.

Bisneto de anarquista – Ernesto Muggiati veio para o Brasil com mulher, dois filhos e duas filhas para participar da lendária Colônia Cecília em Palmeira, no Paraná – comunista principiante (adentrei 1950 com doze anos de idade no auge da Guerra Fria), não posso omitir que me vi então, paradoxalmente, às voltas com uma tremenda crise mística ao ler, no começo da adolescência, já em inglês, The Seven Storey Mountain/A montanha dos sete patamares, de um dos grandes líderes espirituais da nossa época, Thomas Merton (1915-68), um monge trapista, ordem que cultivava o voto do silêncio.

Mas chega de nariz-de-cera, como se praticava no jornalismo dantanho.

Jesuíta, tanguero emérito, torcedor doente do San Lorenzo de Almagro, Jorge Mario Bergoglio (coincidência, Zagalo também é Jorge Mário) foi um dos raros Papas que não ascendeu ao trono de São Pedro pela morte do antecessor: Bento XVI renunciou e, como Papa Emérito, caminha firme para os 93 anos (não percam o filme Dois Papas, do brasileiro Fernando Meireles, que reconstitui o encontro entre Ratzinger e Bergoglio em Castel Gandolfo em 2013). Pouco depois, Ratzinger renunciava e Bergoglio assumia o papado sob o nome de Francisco, quebrando uma série de recordes pontificais: é o primeiro papa nascido na América, o primeiro latino-americano, o primeiro pontífice do hemisfério sul, o primeiro papa a utilizar o nome de Francisco, o primeiro pontífice não europeu em mais de 1200 anos (o último havia sido Gregório III, morto em 741) e também o primeiro papa jesuíta da história.

Enfim, de volta à nossa história. Eleito Papa em 13 de março de 2013, nosso bom Francisco inicia sua primeira viagem internacional em 22 de julho, justamente para a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Francisco escolheu se deslocar do Aeroporto do Galeão para o Palácio da Guanabara, onde se daria seu primeiro encontro com as autoridades, num carro comum da Fiat, apenas o motorista e ele, no banco traseiro do lado direito com as janelas abertas, Apesar do pânico da segurança e da quantidade de pessoas que se aproximaram dele, num engarrafamento no meio do caminho, Francisco, na viagem toda, não abriu mão dessa rotina, janelas abertas para os apertos de mão do povo.

Como disse, não sou de correr atrás de Papas. Na quinta-feira, 25 de julho, terceiro dia da visita, o Sumo Pontífice veio receber as chaves do Rio de Janeiro no Palácio da Cidade, à rua São Clemente, a menos de uma quadra da vila onde moro, na Real Grandeza. Um instinto natural de curiosidade – e o cacoete de jornalista – me levaram até a frente do Palácio naquela manhã fria e cinzenta, mas o Papa só apareceria ao longe – sei lá quando – na sacada do Palácio, bem afastado da rua. Desisti. Voltei ao meu trabalho de tradução. Liguei automaticamente a televisão, vi o Papa dar uma bênção especial a nossa estrela do basquete, Oscar Schmidt, que lutava contra um câncer. Como disse, tudo aquilo acontecia a um quarteirão da minha casa. 

Em 2020, Muggiati ao lado do cartaz que anunciava o lançamento do filme "Dois Papas", de Fernando Meireles,
lançado na Netflix em 2019. (Foto: arquivo pessoal)

Quando vi que o Papa partiria para a etapa seguinte de sua programação, uma visita à favela de Manguinhos, deduzi logo que, por questões de segurança, ele jamais tomaria o Túnel Rebouças pela São Clemente, mas seria obrigado a pegar a Real Grandeza.


Bichon bebê ao chegar em casa, supimpa, em 2001

Eu acabara de perder a viralata querida Phoebe. A poodle branquinha Bichon estava quase terminal com câncer no útero. E a caçula Mel, uma poodlezinha caramelo, também aguardava sua vez. Veterinários atribuem esses cânceres ao fato de as cachorras não terem tido filhos, ou não terem sido castradas. Mas havia controvérsias: muita gente falava nos componentes cancerígenos das rações industrializadas – algo que as autoridades sanitárias nunca investigaram seriamente. Num impulso, pensei: o Papa Francisco, que tomou o nome do santo padroeiro dos animais, vai salvar a Bichon (o nome veio de uma amiga da minha mulher que, ao ver a poodlezinha branca, perguntou: “Mas ela não é um bichon frisée?”) A Bichon se protegia do frio com um agasalho de tricô terrivelmente brega, nas cores marrom, verde-musgo, amarelo e fúcsia. Corri com ela para a frente da vila e cheguei à calçada da Real Grandeza no momento exato em que Sua Santidade se aproximava, sozinho no banco traseiro de sua Fiat banal, com a janela do lado direito aberta, justamente aquela que dava para mim, Ergui a poodle no seu adereço kitsch bem alto acima da minha cabeça. A rua estava deserta. O gesto bizarro chamou a atenção de Francisco, a uns quatro metros do dono e da cachorra, ele fixou o olhar sobre nós, abriu aquele seu sorriso sereno e simpático e acenou, como que abençoando a cachorrinha doente.

Vaidoso da minha intervenção pontifical, passei a imaginar que a cura da Bichon seria arrolada como um dos primeiros milagres do Papa Francisco no seu futuro processo de canonização. Ledo engano. Exatos sete meses depois – em 25 de fevereiro de 2014 – a Bichon morria e era enterrada no meu “pet cemetery” particular, debaixo da casuarina no canteiro do fundo da vila,

Desculpe, hermano Francisco, fico te devendo esta, mas tenho certeza de que você é tão legal que essas coisas de beatificação e canonização não te fazem a menor falta, Afinal, você já vive e trabalha em estado natural de santidade."

(*) A título de contexto -  por José Esmeraldo Gonçalves  -  Com o mundo mais uma vez voltado para as coordenadas geográficas da Praça de São Pedro e ainda sob o impacto da morte de Francisco, o blog Panis cum Ovum reposta a matéria acima que mostra o quanto a visita do Papa Francisco ao Rio de Janeiro em julho de 2013 tocou a vida, a rotina e a memória de Roberto Muggiati.  Na primeira frase, Muggiati diz que "nunca correu atrás de papas". Uma verdade parcial. Como diretor da antiga revista Manchete, ele comandou maratonas jornalísticas no rastro dos pontífices. Como no dia 6 de agosto de 1978, quando morreu Paulo VI. A Manchete se mobilizou para colocar rapidamente nas bancas edições especiais sobre as exéquias e, em seguida, a eleição do novo líder da igreja católica. Foram noites viradas para o diretor e equipe de repórteres e fotógrafos que produziram centenas de páginas sobre o assunto que mobilizava o mundo. João Paulo I foi eleito em 26 de agosto. Em 28 de setembro de 1978, o Vaticano comunicava a morte inesperada e chocante do novo papa. A antiga Manchete, assim como todos os veículos jornalísticos, correu atrás do fato e foi levada a um estranho looping, obrigada a repetir o roteiro de pautas com o novo papa: de novo, especiais com cobertura do  velório, da eleição e da posse de João Paulo II...     

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Chico Buarque, Francis Hime: o encontro casual que resultou em um clássico da MPB recuperado por Elis Regina

 

Geraldo Vandré, Ellis e Chico Buarque. Foto publicada na Fatos & Fotos em 12 de novembro de 1966. 

A revista Fatos & Fotos (assim como a antiga Manchete) é um verdadeiro banco de dados e imagens sobre a MPB. As redes sociais se encarregam de recuperar na internet tais momentos marcantes. O ex-funcionário da Bloch, Nilton Muniz, colaborador do Panis cum Ovum, "o blog que virou Fatos & Fotos", volta e meia resgata posts que revivem épocas. Veja essa pérola que foi publicada em 1966, na querida F&F. O registro é do Facebook MPB Bossa' Post ( https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=1235318487964707&id=100044597012154&post_id=100044597012154_1235318487964707&rdid=zHixaErd1HVNh8oG# )

"Por trás da letra: Atrás da Porta"

"Francis Hime morava nos Estados Unidos e passava férias no Brasil. Em uma festa restrita a poucos amigos, encontrou-se com Chico Buarque e tocou a melodia da música, Chico gostou e começou a escrever, lá mesmo, a letra . Os dois não se lembram o motivo - Chico atribui ao excesso ou mesmo a falta de bebida e até falta de inspiração momentânea - o fato é que o letrista só conseguiu fazer uma parte da música.

A obra incompleta ficou esquecida por um tempo, até que Elis a ouviu e ficou maravilhada. Gravou o trecho com letra e deixou a segunda parte apenas orquestrada, uma forma, para muitos, de pressionar Chico a concluir a música. 

Chico finalizou a letra e o resto virou história." 

P.S - Em iniciativa elogiável, a Biblioteca Nacional digitalizou as coleções da antiga Mancehete e da Fatos & Fotos. Esta última chegou a entrar no site de Periódicos da BN. Infelizmente, a F&F digitalizada foi retirada do acervo sem maiores justificativas. Um funcionário contatado chegou a justificar a  exclusão com um formal "por motivo técnico". A tal coleção jamais voltou ao ar. Pena, a Fatos & Fotos fez coberturas inesquecíveis de atualidades. Foi marcante o acompanhamento da revista, por exemplo, das manifestações estudantis de 1968, dos festivais da canção, de crises políticas, do exílio de Chico Buarque em Roma e de Caetano e Gil em Londres. das Copas de 1962 e 1970. A F&F publicou históricas entrevistas com cineastas, escritores, compositores, cantores e cantoras e teve cronistas como Clarice Lispector e Nelson Rodrigues, entre outros. A BN deve uma explicação por ter investido na digitalização da revista para subitamente retirá-la do acervo.    

quinta-feira, 20 de março de 2025

Memórias da Redação - Elis Regina, 80 anos - Foi no dia 19 de janeiro de 1982 que, pela primeira e última vez em minha carreira jornalística, proferi uma frase-chavão típica dos filmes que têm a imprensa americana como tema: "Parem as máquinas";. E eles - os dirigentes da revista Manchete -pararam. Por Celso Arnaldo Araújo


Não olhe agora, mas Elis Regina faria hoje 80 anos. Nasceu nas águas de um 17 de março. Não posso, e acho que ninguém pode, além da Inteligência Artificial, imaginar nossa "maior cantora" cantando e sacudindo Arrastão com 80 anos. Mas aos 36, quando partiu misteriosamente, não só a imaginei como a vi em pessoa, já sem vida, na maior tragédia da MPB. 

Foi no dia 19 de janeiro de 1982 que, pela primeira e última vez em minha carreira jornalística, proferi uma frase-chavão típica dos filmes que têm a imprensa americana como tema: "Parem as máquinas". E eles - os dirigentes da revista Manchete - pararam. Não por mim. Por Elis. 

Era uma terça-feira em São Paulo. A revista, fechada na véspera, com Julio Iglesias na capa, já rodava no parque gráfico de Lucas, para ir às bancas na quarta de manhã, como sempre.

Por isso, terça-feira era, para a redação, um dia de transição, de ritmo lento. Jornalisticamente meio parado, improdutivo. A próxima edição, só daqui a oito dias. Mas, espere. Às 11 e meia da manhã daquela terça-feira, eu e o supercolega Júlio Bartolo subíamos a Avenida Rebouças, onde então se localizava a sucursal de Manchete, em direção à Avenida Paulista, para beliscar alguma coisa. No rádio do carro, ao fundo, em volume pouco audível, começamos a detectar fragmentos de uma notícia meio sem sentido: Elis Regina. IML. Dr. Shibata. Velório.

Parei o carro para ouvir melhor e nos demos conta de que nossa maior cantora estava morta. Senti na carne, fã de primeira e última hora. Mas o repórter gritava mais alto diante desse absurdo biográfico. Será que o pessoal da redação no Rio já sabia? A notícia chegou lá, pelo Trem de Prata? Possivelmente, não. Telefone, rápido. Celular? Só se a Rebouças fosse o túnel do tempo, 20 anos adiante. Orelhão, claro.

Apalpados todos os bolsos, nada de um punhado de fichas para o interurbano. A ligação a cobrar era o único meio de comunicação do mundo, como no tempo de nossos pais, naquela circunstância. Mas, para funcionar, era preciso que a redação da Rua do Russel já estivesse semipovoada, para atender e aceitar a ligação – naquele horário, isso não era comum numa terça-feira, pós-fechamento. Dois pra cá, dois pra lá, atenderam a ligação. Fascinação: era o próprio editor, o grande Roberto Muggiati. Então enchi o peito e anunciei: "Parem as máquinas!!!!". 

Não, ainda não sabiam de Elis. O Rio não sabia, naquela era pré-Internet. Mas Muggi era um editor de primeira e última hora: mandou parar as máquinas. Que Julio Iglesias esperasse sua vez. Escrevi o texto em duas horas. Sem almoço. Não sei quais foram as providências do ponto de vista gráfico. O fato é que horas depois, na manhã de quarta, como de costume, Manchete com a despedida de Elis estava nas ruas. 

Naquele mesmo dia, com Elis provocando um arrastão nas bancas, fui a seu velório, no Teatro Brigadeiro, que ela lotara por mais de ano com o musical “Falso Brilhante”. No féretro, serena, mas ainda Elis. 

Incrível: estamos há 44 Marços sem Elis.

P.S - Texto publicado no Facebook  de Celso Arnaldo Araújo. Roberto Muggiati compartilhou com o Panis Cum Ovum. 

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Notícias de Resende

Por ROBERTO MUGGIATI
Um documento raro: este é o famoso "olho" que carimbava as sugestões de matérias temporariamente arquivadas ou colocadas na "geladeira" após as reuniões de pauta da revista Manchete. Eram assuntos que ganhavam o rótulo "ficar de olho". O símbolo implacável foi  clonado de um "olho" do quadro Guernica, de Picasso. Foto: Acervo Muggiati.

Apesar do nome pomposo em latim, este Panis existe para compartilharmos o pão nosso de cada dia das boas memórias e das amizades que desfrutamos nos anos da Bloch, apesar de vivermos a maior parte do tempo naquilo que, num texto do século passado, batizei de “o inferno das redações”.
O Panis Cum Ovum se tornou também um farol na noite escura dos relacionamentos que se esfacelaram com o fim da Bloch. Outro dia, soubemos da morte de uma figura querida, o Gastão René Friedman, vulgo UFO. E, quem deu a triste notícia foi o João Resende, outra figura querida, alegrando-nos com a boa notícia de que está vivo e passa bem em Minas Gerais. Em suas próprias palavras:
“Me aposentei na Funarte (ex-Embrafilme, ex-Fundação do Cinema) há uns 15 anos, como redator da Assessoria de Imprensa. Agora coço o saco aqui em Juiz, com meus cachorros. Retornei à cidade meio que por inércia, Juiz de Fora é muuuito feia, embora ‘prática’ para se viver. O Rio ficou inviável...”
O João fala em cachorros, mas, se não me falha a memória, quando o conheci ele tinha um destes minipinchers ou chihuahuas que contrabandeava para dentro da redação numa bolsa de ginástica. Não era inglês, mas era excêntrico (o Resende, não o cachorro), talvez por conta da sua mineirice. Que ele volta e meia invocava. Certa vez, candidatou-se a um posto na Rádio Canadá, país onde morava sua irmã, quando o Jaquito resolveu promovê-lo da noite para o dia. A Manchete tinha perdido o titular de uma sucursal importante – não sei se Nova York ou Salvador da Bahia – e Jaquito adentrou a redação com a ordem:
– Resende, vai fazer as malas, amanhã você viaja para assumir a sucursal de X!...
– Uai, sô, Jaquito! Eu sou mineiro. Com mineiro a coisa não é assim, tão atropelada. . .
Talvez por isso ele tenha recebido outra ordem do Jaquito, tempos depois:
– Pode esvaziar as gavetas. . .
Em meados de 1975, quando Adolpho Bloch tirou o Justino Martins da direção da Manchete e me botou no lugar do “Índio”, que ele não conseguia engolir, assumi o cargo mais prestigioso e mais perigoso de toda a empresa. Para fazer uma boa revista que esgotasse nas bancas toda semana eu contava com a figura fundamental do chefe de reportagem, na época o João Luiz de Albuquerque. João Luiz formava com dois fieis escudeiros – João Resende e Suzana Tebet – a troika que se contrapunha ao trio Karamabloch: Adolpho, Oscar e Jaquito. (Para os não-iniciados, nascido em Kiev, Adolpho sempre foi ligado aos assuntos russos e era fascinado pela troika que comandava o Kremlin, na verdade um troika de araque, porque quem mandava mesmo era o Leonid Brejnev, assim como quem mandava na Bloch era só o Adolpho.)
De um diretor novo exigiam-se novas atitudes. Na verdade, todo mundo queria mandar na Manchete e plantar suas matérias na importante revista. Logo me impuseram uma reunião de pauta “monstro” – um pleno ampliado – em que editores de todas as revistas da Bloch davam palpite. O editor da Agricultura de Hoje sugeria uma reportagem sobre a febre aftosa; o da Tendência, outras sobre “insumos”; e por aí vai. Como diretor da Manchete, eu era obrigado a me pronunciar sobre cada sugestão de matéria. João Luiz, João Rezende e Suzana Tebet anotavam tudo. Às matérias brochantes – que não venderiam revista nemporumca (para adotar um palavrão cifrado do Ney Bianchi) – eu dizia, com a maior solenidade: “Interessante, vamos ficar de olho...” Acabava a reunião com 60 a 70% das sugestões destinadas ao insondável olho do Muggiati.
João Luiz, Resende e Suzana, mais do que as reportagens em si, adoravam o jogo que cercava todo o andamento da coisa, adoravam monitorar o follow-up, eram também fascinados por artigos de papelaria, compravam os últimos fichários de acrílico, pranchetas transparentes de cores ácidas (uma influência retardada da revolução psicodélica no universo burocrático) e inventaram então um carimbo para chancelar todas aquelas sugestões mandadas para “o olho”. João Luiz deu uma de gênio e arrancou o olho da Guernica do Picasso e o transformou em carimbo. Guardo até hoje a matriz em ferro pregada num pedaço de madeira e o próprio carimbo de borracha, dos tempos em que se usava aquela almofada de tinta. Há pouco, por motivos sentimentais, mandei fazer um destes carimbos modernos (o meu é Made in Taiwan) com o olho da Guernica, que transformei em meu ex-libris, principalmente porque o quadro de Picasso foi pintado no ano em que nasci, 1937, e porque é o primeiro quadro-reportagem da História, e casa com o título do meu livro de memórias (brevemente, nas melhores livrarias) A vida é uma reportagem.
João Resende é uma figura que daria um daqueles perfis da Seleções do Reader’s Digest intitulado “Meu tipo inesquecível”. Fazia uma dupla dinâmica com o Jorge Aquino Filho, do clã dos Aquino de São João da Barra, produtores do famoso Conhaque de Alcatrão. Não me contenho e transcrevo esta história do Patriarca:
“Tudo começou em 1908, quando Joaquim Thomaz de Aquino Filho iniciou a produção da bebida que, até então, se chamava Cognac de Alcatrão da Noruega. Rapidamente, o atual Conhaque de Alcatrão São João da Barra - feito de destilado de cana e extrato de alcatrão - ganhou popularidade, virando tradição nacional e adquirindo a fama de "Conhaque do Milagre". O criador do "santo remédio" foi pai de 23 filhos com a primeira mulher e ainda teve outros dois, no segundo casamento.”
Como o Patriarca, o Conhaque de Alcatrão também deu filhotes, entre eles a cachaça Praianinha e a vodca Kovak. Como um dos primeiros clientes de Gráficos Bloch, que imprimia seus rótulos, e depois anunciante forte da Manchete, colocou muitos herdeiros para trabalhar como jornalista na Bloch. Ruth de Aquino, por exemplo, que se tornaria a primeira mulher diretora de jornal no Brasil (O Dia, do Rio).
Assim, Jorge de Aquino Filho foi trabalhar como repórter na Manchete. Uma das crianças sobreviventes do terrível incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, em 1961 (500 morreram), Aquino era gordo, por conta de sequelas das queimaduras que sofreu.Usava sempre calça jeans e um daqueles blusões claros com fechamento de zíper que chamavam de slacks.
João Resende era muito desligado, só sabia que precisava abastecer seu carro com álcool quando o carro parava, por absoluta falta de combustível. Providencialmente, o Aquino forrava sempre o porta-malas do carro do Resende com meia dúzia de vodcas Kovac. Era só abrir a tampa do tanque e desovar dois litros que a máquina pegava de pronto e levava até o posto mais próximo.
Resende martirizou-se a escrever durante um ano uma matéria genial que só ele desencavara, não sei de onde, talvez de suas aulas de planador em Juiz de Fora. Sim, planador, sabem o que é? Um avião sem motor. Só o João Resende, mesmo. . . A matéria tinha a ver com um plano secreto dos nazistas para invadir o Brasil com uma frota de zepelins, ou coisa parecida. Um belo dia, com toda a solenidade que o evento exigia (só faltou o champanhe), João Resende deitou sobre a mesa do editor a decantada matéria: “Evém zepelim,” começava, no melhor estilo mineiro à Guimarães Rosa. Sequer lembro também se a matéria chegou a ser publicada.
Ave, Resende, apareça por aqui, vamos rachar um panis. . . de queijo. . .