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domingo, 27 de fevereiro de 2022

MEMÓRIAS DA REDAÇÃO: Uma temporada no Inferno • Por Roberto Muggiati

Incêndio no Andraus
Há 50 anos, em 25 de fevereiro de 1972, uma sexta-feira, enquanto o edifício Andraus pegava fogo em São Paulo, o tempo esquentava na Manchete, no Rio. Não mais que de repente, por motivo fútil, o chefe de redação Maurício Gomes Leite e o redator Sebastião Uchoa Leite saíram aos tapas, foi preciso a turma do “deixa disso” para separá-los. 

Mineiro de Montes Claros, Maurício – nós o chamávamos Gomes Leiaute – era crítico de cinema e fez um longa metragem em 1968 chamado A vida provisória. Na fase light da ditadura militar (1964-68), era fácil conseguir verba para fazer filmes, graças à CAIC (Comissão  de Auxílio à Industria Cinematográfica), surgida no estado da Guanabara. O cineasta Paulo César Saraceni, que rodou nada menos do que um documentário e três longas de ficção nessa fase, dizia: “A CAIC foi de longe, a melhor ajuda governamental que o cinema brasileiro teve em toda a sua trajetória”. No filme do Maurício teve um lance típico: uma cena íntima de Dina Sfat nua numa praia, em semi-close, que podia ser tranquilamente filmada numa caixa de areia no estúdio, foi rodada com uma grande equipe em Dubrovnik, na Riviera Dálmata.

Maurício Gomes Leite

Maurício não tinha muito saco para o jornalismo. No final dos anos 1970, visitei-o em Paris, morava num pequeno apartamento perto da Gare de Montparnasse, acabara de casar com uma filha do diplomata Azeredo da Silveira, o bebê recém-nascido interrompeu algumas vezes nossa conversa. Trabalhava como tradutor na Unesco. Soube que morreu sozinho, ainda no exílio parisiense, sem mulher, sem amigos, em 1993, aos 57 anos.

Pernambucano de Timbaúba, Sebastião Uchoa Leite também não tinha saco para o jornalismo. Depois da Manchete, passaria um longo tempo em enciclopédias com Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss, num trabalho de redação mais ameno e prazeroso que o ajudava a financiar seus livros de poesia, quase uma dezena.

Sebastião Uchoa Leite
Bom poeta, era também bom ensaísta e tradutor (nessa categoria ganhou dois Jabutis). Um de seus favoritos era o poeta francês da Idade Média François Villon, boêmio, beberrão e ladrão, o que explica seu lado meio transgressor. Meu poema preferido do Sebastião é o autoepitáfio publicado em “Obras em Dobras”: “aqui jaz/ para o seu deleite/ sebastião/ uchoa/ leite”. O poeta morreu no Rio em 2003, aos 68 anos. Ignoro se o epitáfio foi gravado em sua lápide, ignoro até se chegou a ter lápide.

Em 1º de fevereiro de 1974, numa manhã morna do mês do Carnaval, chego cedo à redação e um telefonema do fotógrafo Mituo Shiguihara, da sucursal de São Paulo, me tira do meu torpor. Um incêndio fulminante tomara conta do Edifício Joelma, no centro da cidade. Em número de mortes, seria o segundo maior incêndio do mundo, só superado pelo das Torres Gêmeas em Nova York. Cito detalhes diretamente da Wikipedia, que foi bastante precisa:

Tragédia do Joelma
na capa da Manchete
“Concluída sua construção, em 1972, o Edifício Joelma foi imediatamente alugado ao Banco Crefisul de Investimentos. No começo de 1974 a empresa ainda terminava a transferência de seus departamentos, quando no dia 1º de fevereiro, às 8h45 de uma chuvosa sexta-feira, um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado no 12º andar deu início a um incêndio, que rapidamente se espalhou pelos demais pavimentos. As salas e escritórios do Joelma eram configurados por divisórias, com móveis de madeira, pisos acarpetados, cortinas de tecido e forros internos de fibra sintética, condição que contribuiu, sobremaneira, para o alastramento incontrolável das chamas. 

Quinze minutos após o curto-circuito era impossível descer as íngremes escadas, localizadas no centro dos pavimentos, que foram bloqueadas pelo fogo e a fumaça. Os corredores, por sua vez, eram estreitos. Na ausência de uma escada de incêndio, muitas pessoas ainda conseguiram se salvar ao contrariar as normas básicas e descer pelos elevadores, mas estes também logo deixaram de funcionar, quando as chamas provocaram a pane no sistema elétrico dos aparelhos e a morte de uma ascensorista no 20º andar. 

Nos braços da mãe, que saltou para a morte no 15º andar, uma criança de um ano e meio foi salva em um dos episódios mais dramáticos do incidente. A multidão acompanhou o salto bem em frente ao prédio. O choro da criança, levada imediatamente ao Hospital das Clínicas, foi ouvido logo após o impacto da queda. No último andar, segundo o depoimento de Ivã Augusto Pires, coordenador do Serviço de Transportes da Câmara, um rapaz jogou-se ao chão e aproximou-se de gatinhas da borda do terraço. Mas uma labareda fez com que ele escorregasse e ficasse suspenso no ar, segurando no parapeito até não mais aguentar e despencar na rua.”

Na redação do Russell, acompanhávamos pela TV as imagens chocantes do incêndio. Era uma triste maneira de vender revista, mas nada podíamos fazer, que ficasse a lição para evitar tragédias futuras. Realmente, depois do Joelma, normas muito mais rígidas de segurança foram criadas e implantadas nos prédios do Brasil inteiro.

O incêndio do Joelma inspirou o filme-catástrofe “The Towering Inferno/Inferno na Torre”, lançado em dezembro de 1974 e uma das maiores bilheterias da época. Artistas da Teoria do Complô não deixaram de anotar algumas “maldições” que atingiram o superelenco:

• Foi o último filme de Jennifer Jones e de Fred Astaire (que, curiosamente, deveu a “Inferno” sua única indicação ao Oscar em toda sua brilhante carreira).

• Herói do filme, o chefe dos bombeiros, Steve McQueen, morreria de câncer seis anos depois. William Holden, morreria sete anos depois de traumatismo craniano ao cair em casa alcoolizado.

• Seis anos depois Robert Wagner seria suspeito da morte da mulher, Natalie Wood, que se afogou ao cair de um iate. Vinte anos depois, o astro do futebol americano O.J. Simpson seria acusado e condenado pelo assassinato da mulher.

Um legado sinistro da tragédia de São Paulo: ignorantes da origem do nome, que era o nome da construtora do prédio, muitos pais batizaram suas filhas como Joelma. Você deve conhecer ou ter ouvido falar de pelo menos uma, são muitas Joelmas circulando hoje pelo Brasil. Já o edifício, compreensivelmente, mudou de nome: hoje se chama Praça da Bandeira.