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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Mídia - A edição da Manchete que só existiu por causa da Glasnost de Gorbachev




por José Esmeraldo Gonçalves 

Roberto Muggiati, ex-diretor da Manchete, relatou em postagem anterior a curiosa história de uma edição especial da revista em russo. Os detalhes de bastidores desse inusitado projeto jornalístico estão no link 

https://paniscumovum.blogspot.com/2022/08/memorias-da-redacao-o-dia-em-que.html

O que acrescento aqui são algumas memórias daqueles três dias que abalaram a redação e uma breve visão do conteúdo da edição. 

Quando foi à Rússia em 1988, com uma agenda de quatro encontros com Mikhail Gorbachev, o então presidente José Sarney levou uma multidão de convidados. Tanto que o hotel Rossya, em Moscou, ao receber o pedido de reserva para 97 empresários, a maioria formada por presidentes ou vice presidentes de grandes empresas, e de 51 jornalistas, fora os diplomatas, informou que tinha apenas 120 quartos para receber os brasileiros. O Itamaraty partiu em busca de hotéis para acomodar os 21 sem-tetos. 

Adolpho Bloch foi convidado para integrar a comitiva presidencial. Provavelmente, deve ter sido avisado com uma ou duas semanas de antecedência, mas só a poucos dias do embarque teve a ideia de fazer uma edição especial da Manchete, em russo, para levar na bagagem. O objetivo era distribuir parte da tiragem na Exposição Industrial Brasileira, aberta em Moscou, além de encaminhar centenas de exemplares a universidades, bibliotecas e ministérios da URSS. Adolpho, que era movido a instinto, farejou uma oportunidade. O esperto ucraniano que adotou o Brssil sabia que, mesmo às pressas, conseguiria patrocínios. Seu alvo eram os mega empresários brasileiros que estariam em Moscou tentando abrir  para negócios as portas da "cortina de ferro" que Gorbachev implodia. O ideia e a viabilidade comercial eram da direção da Bloch: o pepino (que o Google diz ser "огурец", em russo), ficava com a redação.

O expediente da equipe que fez o mais inusitado projeto de revista do jornalismo
brasileiro: a Manchete em russo.

Em um fim de tarde Zevi Ghivelder me pediu para coordenar o logística editorial da revista. Não era tarefa difícil, estávamos acostumados a fazer essas edições especiais e a pauta da edição praticamente nascia pronta: destinava-se a mostrar aos soviéticos as belezas de Brasília, do Rio de Janeiro, a pujança de São Paulo, a Amazônia, a extração de petróleo em alto mar, Itaipu, o agronegócio, a Embraer, o carnaval carioca etc, em páginas duplas, com pouco texto (o conteúdo maior trazia dados estatísticos do Brasil) e muitas cores. 

O problema era, como Muggiati contou, a tradução e digitação das matérias em  А, Б, В, Г, Д, Е (Ё), Ж, З, И, (Й), І, К, Л, М, Н, О, П, Р, С, Т, У, Ф, Х, Ц, Ч, Ш, Щ, Ъ, Ы, Ь, Ѣ, Э, Ю, Я, Ѳ, Ѵ. A. Isso mesmo, em cirílico, o alfabeto russo. Janir de Holanda, que editava a revista Conecta, da Bloch, especilizada em informática. computação e tecnologia digital, uniu-se aos editores e redatores da Manchete para ajudar a desenrolar um imbroglio tecnológico: o setor de composição a frio da Bloch era computadorizado mas não dispunha de fontes gráficas para o idioma russo. Tínhamos três dias para mandar a edição para a gráfica. Carlos Affonso, o competente produtor gráfico, suava frio como se estivesse na Sibéria. Pode-se imaginar a correria. No fim, o projeto do Adolpho deu certo. Deu tudo certo? Quase. A edição especial saiu com um erro e uma omissão. O erro deu-se na tradução de um título logo na abertura da revista. Era para ser "Mensagem ao Povo Soviético", para quem a revista se dirigia, e saiu, nada a ver, "Mensagem ao Povo Brasileiro". Ainda bem que na chamada de capa ("Brasil: retrato de um país") não deu zebra. A omissão foi não publicar uma só imagem de Mikhail Gorbachev, a quem a revista seria solenemente entregue. Enfim, passou essa indelicadeza com o anfitrião da comitiva brasileira, embora houvesse foto e texto selecionados sobre o líder soviético. A Embaixada da URSS no Braskil apontou o erro do título. Já a ausência da foto do Gorbachev na edição em russo foi amplamente compensada pela grande cobertura que a edição semanal da Manchete fez do encontro Sarney-Gorbachev, do jantar no Kremlin e das reuniões para intensificar os laços comerciais entre os dois países.  

O objetivo do Adolpho foi alcançado: Grupo Pão de Açucar, Perdigão, Cutrale, Café Cacique, Citrosuco e Petrobras  anunciaram na edição e entregraram as peças publicitárias à redação já devidamente traduzidas para o russo. Como consequência da abertura política liderada por Gorbachev, a Manchete foi a primeira revista editada no exterior, no idioma russo, a circular livremente na União Soviética para divulgar um país estrangeiro. A edição foi mostrada na TV local.     

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Mistério nas artes plásticas: o que Gorbachev fez com o quadro pintado por José Sarney? Em 1988, esse foi o presente que o então presidente do Brasil levou para o líder soviético

 Sarney presenteou Gorbachev com um quadro 
de sua própria autoria. 

por José Esmeraldo Gonçalves 

Mikhail Gorbachev morreu ontem, aos 91 anos. Ele entrou para a história na década de 1980 como o político que promoveu as reformas de abertura que levaram ao fim da União Soviética. Por isso, o Ocidente lhe concedeu o Nobel de 1990. 

Gorbachev provavelmente mantinha na estante, em lugar de honra, a medalha que os vencedores do ambicionado prêmio recebem. O que não se sabe - e deverá se tornar um mistério das Artes - é o que foi feito de um presente que Gorbachev recebeu do Brasil. 

Em 1988, quando visitou a URSS agonizante, o então presidente José Sarney levou um mimo especial para o então Secretário-Geral do Partido Comunista. Talvez pela grave crise econômica que o Brasil enfrentava no mandato do maranhense, o Itamaraty não comprou um presente especial -  a cortesia que faz parte do cerimonial que rege encontros de chefes de Estado -  para o criador da perestroika e da glasnost. Sem modéstia, Sarney deu ao líder soviético um dos seus quadros. Poucos sabem que Sarney, que presidiu a Arena,  partido que fazia a cenografia "democrática" da ditadura para fingir que não era ditadura, era dado à pintura. Soube-se que ele criava suas obras na varanda do Sítio São José de Pericumã. Inicialmente, pintava paisagens que só a família via. Quando foi morar no Alvorada e, talvez, entre um intervalo e outro da elaboração do desastrado Plano Cruzado, ele concluiu que seus pincéis poderiam ser mais ousados e transmudou-se para a escola impressionista. Em um ponto Sarney lembra Van Gogh: ele não vende quadros em vida.  

A foto da obra levada a Moscou foi publicada na Manchete, em 1988, mas o redator que escreveu a legenda deve ter ficado na dúvida e cravou que o estilo do então presidente estava "entre o figurativo e o abstrato". Quer dizer, situava-se em um limbo artístico. A mesma matéria informava que Sarney passara a pintar obras sacras, como um Botticelli de São Luís. 

A mulher de Gorbachev, Raissa, morreu em 1999. Ele deixa ums filha, Irina Mikhailovna Virganskaya, e uma neta. Formalmente, são as herdeiras da obra do pintor José Sarney, caso Gorbachev tenha guardado o quadro. 


Moscou, 2021: Gorbachev, em casa. Foto Divulgação


Em 2021,  o documentário “Gorbachev. Céu”, do diretor russo Vitaly Mansky, foi exibido no Brasil durante o festival “É Tudo Verdade”. O filme mostrava o solitário ex-líder russo em sua mansão em Moscou. O quadro do Sarney não estava na parede. No Kremlin, como turistas podem ver em algumas salas, também não é visível. Registre-se que o Kremlin tgem salas subterrâneas secretas escavadas para guardar obras de arte. 
Uma delas fica no porões da Catedral da Anunciação. Vai ver o quadro de Sarney está lá devidamente preservado para as gerações que sobreviverem à hecatombe nuclear.

Memórias da redação: O dia em que Gorbachev leu Manchete em russo • Por Roberto Muggiati




Moscou, outubro de 1988, Adolpho Bloch entrega a Mikhail Gorbachev a Edição Especial da Manchete, em russo. Foto Gervásio Baptista 


Durante uma das reuniões com José Sarney, Gorbachev folheia a Manchete, em russo, e recebe outras edições internacionais da revista, também sobre o Brasil, em inglês e francês. Foto Gervásio Baptsta






Outubro de 1988, madrugada no Rio de Janeiro. Uma lua fraca banha o Aterro do Flamengo. Nas areias  dos campos de futebol, peladeiros se imaginam craques em pleno Maracanã e trocam caneladas furiosas em busca do gol. Seus gritos não são ouvidos pela jornalista Miriam Malina. Na sala de fotocomposição da revista Manchete, ela digita textos em russo. Percebe vultos que passam de vez em quando às suas costas. Adolpho Bloch e seu sobrinho Pedro Jack Kapeller, preocupados, perguntam se está faltando algo: água gelada, um cafezinho? Miriam prossegue seu solo no teclado em que caracteres cirílicos foram colados sobre o nosso rotineiro qwertyuiop. Adolpho Bloch queria (porque queria) fazer uma Manchete em russo para distribuir em Moscou durante a visita do Presidente Sarney. E assim foi feito. As fontes de tipologia russa foram importadas das máquinas de impressão Mergenthaler, na Alemanha. Os textos para a revista – uma espécie de vitrine do Brasil, no melhor papel couché – foram escritos pelos principais redatores da casa. Coube a Miriam Malina passar tudo para o russo. Ela havia estudado direito internacional na Universidade Patrice Lumumba, em Moscou, de 1961 a 1968. De volta ao Brasil, foi submetida  a torturas que a obrigaram a sofrer várias cirurgias e a andar de muletas por muito tempo. Depois da abertura política, Mirim encontrou um lugar na Manchete. Adolpho Bloch nunca deixou que raça, credo ou ideologia o impedissem de contratar os jornalistas que queria. E Miriam foi uma peça fundamental na revista que ele acabaria entregando pessoalmente a  Mikhail Gorbachev, o político que – com a sua Perestroika – operou uma das maiores mudanças na política global do século 20.

O lançamento em Moscou de uma Manchete escrita inteiramente em russo envolveu outras peripécias. Adolpho Bloch e sua mulher Anna Bentes estavam em Brasília com os pacotes de revistas, prontos para embarcar no avião presidencial que os levaria a Moscou, quando um diplomata russo apontou um erro de digitação na página de abertura em que aparecia o texto do Presidente Sarney. Em vez de “Mensagem ao povo soviético” lia-se “Mensagem ao povo brasileiro”. Adolpho pensou em imprimir tudo de novo, mas não havia tempo. A solução foi imprimir a frase correta em etiquetas autoadesivas que seriam coladas manualmente sobre a frase errada. A tarefa acabou sobrando para Anna Bentes. As etiquetas foram mandadas da gráfica de Parada de Lucas para a sucursal de Paris. No hotel, durante a escala da viagem até Moscou, Anna pacientemente colou as etiquetas exemplar por exemplar. O trabalho continuou em Moscou. Valeu a pena. Adolpho entregou a revista na primeira audiência que Sarney teve com Gorbachev. O líder soviético ficou tão impressionado que, durante o jantar que ofereceu no Kremlin, saiu do seu caminho e rompeu o protocolo para conversar com Adolpho. O empresário brasileiro contou que tinha nascido em Jitomir, na Ucrânia, em 1908, e relatou como seu pai, dono de uma tipografia, havia impresso dinheiro para o governo provisório de Kerenski, pouco antes de os comunistas tomarem o poder. Gorbachev comentou: “Seu russo continua perfeito.”

Como de praxe, o líder soviético também tinha o seu apelido entre nós: “Gorba o russo”, para fazer pendant (outro de nossos francesismos) com “Zorba o grego”. Essa piada Adolpho não pôde contar a Gorbachev. A maioria dos apelidos na Manchete era exclusividade da redação.