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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Um domingo em Paris com o irmão da Isadora


por Roberto Muggiati

Aproveito o espaço amigo do Panis para continuar meu projeto de memórias em retalhos (ou aos borbotões), enquanto não baixa a amnésia ou não chega o temível Alemão.

Remexendo em velhos papéis, encontrei um ingresso de uma versão teatral de Don Quixote que assisti em Paris no final de 1961. Foi na Akademia Raymond Duncan, na rue de Seine, e o irmão de Isadora fez todos os papeis, até o de Rocinante. Paris então era uma aldeia e Raymond, aos 87 anos – com as vestes da Grécia clássica que passou a usar a partir dos vinte anos – era uma figura folclórica nas ruas de Saint-Germain.

Um pouco da sua história: nasceu em San Francisco em 1874, filho de um banqueiro e da filha de um senador, o terceiro de quatro irmãos. Isadora era a caçula, já bailarina notável na adolescência. Embora ambos fossem voltados para a natureza, Raymond se fixou no passado helênico, enquanto Isadora injetou a modernidade no mundo da dança. Sua morte trágica, aos 50 anos, estrangulada pela écharpe que ficou presa a uma roda do carro conversível em que viajava, ajudou a ampliar a lenda.

Raymond Duncan na Akademia

Raymond casou com uma grega, Penélope Sikelianos, e passou a viver em pleno estilo da Grécia clássica: além das togas e sandálias, sua casa nos arredores de Atenas vivia num ar de antiguidade. Ele mesmo a mobiliou, com suas habilidades de carpinteiro, ceramista e tecelão.

Duncan com Penélope e Menalkas.
Foto Akademia
Raymond voltou brevemente aos Estados Unidos no começo do século com Penélope; os dois passaram uma temporada no noroeste do Pacífico com os índios da tribo Klamath. Quando visitavam Nova York, em 1910, seu filho Menalkas, vestindo roupas gregas, foi detido na rua e recolhido pelo juizado de menores. No ano seguinte, o casal voltou a Paris e fundou uma escola, a Akademia, no 31 rue de Seine, oferecendo aulas grátis baseadas na ideia da academia platônica – “uma casa aberta para cada novo esforço no teatro, na literatura, na música e nas artes plásticas”. O objetivo maior de Raymond Duncan era “uma completa técnica do viver”. Na Akademia ele mantinha também uma gráfica, onde imprimia seus livros e jornais, numa tipologia criada por ele mesmo. Esta gráfica foi focalizada em 1955, num documentário de Orson Welles, A volta ao mundo com Orson Welles: Saint-Germain-des-Près. 

Raymond Duncan morreria em 1966 em Cavalaire-sur-Mer, na França, aos 91 anos. A Akademia continuou ativa até os anos 1970, graças ao trabalho da sua segunda mulher.

Fui à sua performance quixotesca numa tarde gélida de domingo, início de dezembro, com minha amiga Elizabeth Gallotti, que estudava teatro em Paris. Moderninhos, levamos a excentricidade de Raymond Duncan na chacota e rimos ao longo de todo o espetáculo.

Roberto Muggiati, Paris, novembro de 1961. Foto: Arquivo Pessoal
Estudante de jornalismo em Paris, eu me tornaria editor de revistas como Manchete, Fatos&Fotos e Veja. Elizabeth casou com um diplomata, se tornou a embaixatriz Vieira de Mello e depois foi Chefe do Cerimonial do governador Leonel Brizola, que chique, não? (Foi ela quem organizou a inesquecível cerimônia de posse de Murilo Melo Filho no PEN Club.).

Duncan, já idoso, e a sua segunda mulher: margem do Sena, Paris. 

Hoje, pensando melhor, não vejo nenhum ridículo em Raymond Duncan. Foi um homem excepcionalmente íntegro, um corajoso defensor de suas ideias, seguindo sua vida sem se importar com o mundo preconceituoso e repressor em que ainda vivemos.