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sexta-feira, 17 de julho de 2015

Ghiggia: o jogador que transformou Carlos Heitor Cony em ateu...

por José Esmeraldo Gonçalves

"Apenas três pessoas, com um único gesto, calaram o Maracanã com 200 mil pessoas; Frank Sinatra, o Papa João Paulo 2° e eu. Acredito que poucas pessoas o farão neste século". 

A frase de Ghiggia é tão certeira quanto seu chute contra as traves de Barbosa, aos 34 minutos do segundo tempo, no dia 16 de julho de 1950. Sessenta e cinco anos, ontem.
Por uma dessas inexplicáveis coincidências, Alfredo Ghiggia morreu no data em que deixou sua marca no Maracanã, quando o Brasil perdeu do Uruguai por 2x1. Aos 88 anos, último jogador vivo entre os participantes do jogo que deu a Copa ao seu país, o autor do gol da vitória uruguaia sofreu um ataque cardíaco, em casa, enquanto assistia a uma reprise do jogo Internacional x Tigres pela Libertadores das Américas.
O escritor e jornalista João Máximo, que foi chefe-de-redação da Fatos & Fotos, já disse que aquele gol de Ghiggia pode ter sido recebido em silêncio por todos no estádio mas estava destinado a ecoar para sempre. "Nunca na história do futebol mundial, um único lance acarretou tantas discussões, tantas análises, tantas evocações, talvez porque nenhum, como este, tenha transcendido sua simples condição de fato esportivo para alçar-se às dimensões do drama e mitologia, para converter-se em um momento histórico na vida de uma nação". Já Carlos Heitor Cony, escritor e jornalista, também ex-combatente da velha Manchete, foi bíblico ao relembrar o gol do uruguaio: "Deixei de acreditar em Deus no dia em que vi o Brasil perder a Copa do Mundo no Maracanã". E Cony dá as razões para sua "consagração" em ateu : "Duzentas mil pessoas viram quando Ghiggia fez o gol. Foi um lance claríssimo, sem qualquer confusão que pudesse suscitar dúvidas. Pois bem, depois do jogo não encontrei uma só pessoa que descrevesse aquele lance da mesma maneira. Então, como acreditar na versão de meia dúzia de apóstolos, os poucos que viram Cristo ressuscitar, meio na penumbra, num local ermo e obscuro?"
Paulo Perdigão, um entre tantos jornalistas e escritores que transitaram pelas redações da Manchete nas ruas Frei Caneca e Russell, escreveu o livro "Anatomia de uma derrota" (L&PM), sobre o fatídico 16 de julho de 1950. Mas não se trata de um livro qualquer. Perdigão, um dos 200 mil torcedores que testemunharam a tragédia, era obstinado pelo tema. Em 1975, ele publicou na revista EleEla um conto no qual volta ao passado, coloca-se atrás do gol de Barbosa e tenta alertá-lo para o que sabia que ia acontecer: a investida fatal de Ghiggia. Um segundo antes de o uruguaio desfechar seu chute, Perdigão, o viajante do tempo, grita Parem tudo!. "Nos olhos de Barbosa" - escreveu em "Anatomia de uma derrota" - "vislumbrei por uma fração de segundos uma resposta acolhedora. Pelo menos ele entendeu o apelo. Exatamente. O grito atingiu-o como um raio". (...) "Meu grito distraíra a atenção de Barbosa, num ínfimo instante. O suficiente para que Ghiggia tomasse partido do pequeno ângulo entre o goleiro e a trave esquerda e desferisse o tiro fatal". 
Perdigão encerra o conto com uma dramática confissão: 
"Pois na dolorosa viagem ao fundo da minha neurose, descobri porque no dia 16 de julho de 1950 comecei a morrer em vida. E aqui tenho essa verdade a carregar para o resto dos meus dias. O Uruguai não derrotou o Brasil!. Eu, somente eu, fui o responsável pelo gol de Ghiggia". 
Pesquisador determinado, Perdigão trabalhava em uma monografia sobre o PRK-30, o famoso programa da Rádio Nacional, quando ao revirar os arquivos da emissora encontrou quatro discos de 78 rotações contendo a narração completa de Brasil 1x2 Uruguai. Percebeu que relato era tão esclarecedor, em meio às infinitas e variadas versões do jogo e do gol, como cita Cony, que decidiu transcrevê-lo no livro, na íntegra, A narração do jogo mostra que o gol de Ghiggia não foi assim tão imprevisível.
No primeiro tempo, o Uruguai perdeu gols feitos, colocou bola na trave. Ghiggia, por várias vezes, desceu ameaçador pela direita. O tom de voz do locutor. assustado, e a reação da torcida, temorosa, mostravam que a Celeste não estava no Maracanã a passeio.
O gol de Friaça, a 1min e 21s do segundo tempo (acima, reprodução do livro "Anatomia de uma derrota"), trouxe otimismo ao estádio e reacendeu o clima de "já ganhou" que antecedeu a final da Copa..
Mas o gol de Schiaffino, aos 20min e 13s, aliás com a participação de Ghiggia, devolveu a tensão ao jogo. Pela primeira vez naquela tarde, o Maracanã "ouviu o silêncio", mas caberia a Ghiggia, 14 minutos depois, calar definitivamente o estádio.
Elegante, o "carrasco" uruguaio sempre mostrou respeito pelo goleiro Barbosa, a quem defendeu em inúmeras entrevistas ao longo da vida. Ghiggia explicava que durante a partida recebera muitas bolas pela direita e levantara cruzamentos sobre a área. Ele tinha certeza de que o goleiro brasileiro esperava que ele repetisse a jogada e por isso se deslocou ligeiramente para cortar uma possível bola centrada. Ao perceber tarde demais que o chute viria no canto esquerdo, Barbosa pula, toca a bola, mas não consegue desviá-la.
E foi assim que o gol à direita das cabines de rádio entrou para a história para não sair mais. Virou o "gol de Ghiggia", o Ghiggia que transformou Carlos Heitor Cony em ateu.
Alguma lição ou dever de casa, o dia traumático deixou. Ao sair do Maracanã naquele 16 de julho, nenhum torcedor imaginaria que nas duas décadas seguintes o Brasil ganharia três Copas. Talvez por isso o tempo tenha concedido uma aura épica à derrota de 50. que seduziu ou assombrou gerações que nem eram nascidas na época. Virou lenda, como as grandes derrotas.
 Nada a ver com um certo e patético 7x1, do Mineirão, que o Maracanã foi poupado de receber. Aquele foi apenas o dia em que a farsa se eternizou como farsa.
Velório de Ghiggia no Salão dos Passos Perdidos, Palácio Legislativo, em Montevidéu: honras para um herói do Uruguai. Foto: Presidência do Uruguai

sábado, 31 de outubro de 2009

Um gol, um dia de mágoa, uma imagem e uma viagem


Você já deve ter visto a imagem centenas de vezes. 1950, Brasil e Uruguai decidem a Copa Jules Rimet. Ghiggia recebe a bola de Júlio Perez, corre, aproxima-se do gol, Bigode acompanha a jogada, pensa, talvez, que virá um cruzamento para a área, mas o uruguaio chuta direto a gol e vence o goleiro Barbosa. Uruguai campeão do mundo. O filme em 16mm, que a televisão tantas vezes exibe, mostra Barbosa caído. Um zagueiro leva a mão à cabeça em sinal de puro desespero. Aquele zagueiro era o titular Juvenal, que morreu ontem, aos 86 anos, na Bahia. Além da atuar na seleção, jogou no Palmeiras, Flamengo, Pelotas, Bahia, entre outros clubes. Como todos os craques daquela brilhante seleção, vice-campeã do mundo, Juvenal carregou pelo resto da vida a fama e o trauma de ser um dos protagonistas de uma derrota que entrou para a história. Sobre aquele dia de mágoa, que só agora, na última viagem, se apaga no coração de Juvenal, Carlos Heitor Cony citado na introdução do livro Anatomia de uma Derrota, de Paulo Perdigão (a propósito, dois outros craques, Cony e Perdigão, amigos que atuaram na revista Manchete), escreveu. "Deixei de acreditar em Deus no dia em que vi o Brasil perder a Copa do Mundo no Maracanã. Duzentas mil pessoas viram quando Ghiggia fez o segundo gol do Uruguai. Foi um lance claríssimo, sem qualquer confusão que pudesse suscitar dúvidas: havia apenas Ghiggia, Bigode, Juvenal e Barbosa. Pois bem: depois do jogo, não encontrei uma só pessoa que descrevesse aquele lance da mesma maneira. Então, como acreditar na versão de meia dúzia de apóstolos, os poucos que viram Cristo ressuscitar, meio na penumbra, num local ermo e obscuro?"
Se é lugar-comum, vale assim mesmo: que Juvenal, descanse em paz. A expressão é apropriada aos craques de 50, marcados e atormentados em vida pela derrota que o Brasil jamais entendeu e aceitou. Um sentimento que nem o Penta apagou. Vá entender... (nas reproduções, a cena do célebre documentário de Milton Rodrigues e a ficha de Juvenal dos arquivos da antiga CBD)