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segunda-feira, 1 de março de 2021

Afinal, uma Billie real • Por Roberto Muggiati


Escrevi há pouco aqui sobre a atualidade do gênio de Billie Holiday. Mais uma prova disso chegou às telas na sexta-feira, 26 de fevereiro, The United States vs. Billie Holiday, que redime o cinema de um dos piores filmes biográficos, O ocaso de uma estrela (1972), com uma equivocada Diana Ross no papel de Lady Day. Billie agora não só canta com sua própria voz, como tem uma interpretação à altura por Andra Day, premiada nesse domingo com o Globo de Ouro de melhor atriz. 

O diretor do filme é Lee Daniels, que em 2001 se tornou o primeiro afroamericano a produzir sozinho um filme vencedor do Oscar. A história se baseou no livro do jornalista Johann Hari Chasing the Scream: The First and Last Days of the War on Drugs e mostra a perseguição movida pelo Departamento de Narcóticos contra a cantora por causa do sucesso de sua canção-de-protesto  Strange Fruit, sobre o linchamento de negros nos estados sulinos. Agentes infiltrados chegam a mover uma operação de caça à cantora, chefiada por um afrodescendente com o qual ela tem um tumultuado caso amoroso. A estreia do filme no Brasil está marcada para 18 de março. 

Veja o trailer AQUI

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Minha parceria com Lady Day • Por Roberto Muggiati


O sistema de som do supermercado Pão de Açúcar de Botafogo sempre me recebeu com Billie Holiday cantando uma das 230 faixas que gravou na Columbia entre 1933 e 1944, geralmente um Lado A com o sax tenor de Lester Young, tipo All of Me ou This Year’s Kisses. Agora, morando em Laranjeiras, vejo a banca de vinis do Miranda perpetuar Lay Day com umas trinta capas de seus LPs no mostruário de cinquenta. E ainda outro dia entreouvi na veterinária: “Como é mesmo o nome da gatinha? Billie?” “Sim, da cantora, Billie Holiday.” São amostras cariocas que se repetem mundo afora, fixando Lady Day como uma das maiores figuras cult do nosso tempo.


Orgulho-me de ter participado da sua história. E isso só aconteceu graças à experiência adquirida na Manchete. Quando a editora Zahar me convidou em 2003 para fazer uma nova tradução da autobiografia de Billie, Lady Sings the Blues, sugeri acrescentar um epílogo. A edição original, publicada em 1956, não cobria os três anos e meio derradeiros da cantora, que morreu em 17 de julho de 1959. O livro não foi daqueles trabalhos convencionais de ghost writer. Amigos de longa data – ela era madrinha do único filho dele – Billie e o jornalista William Dufty compartilhavam ideias progressistas e lutavam por justiça social. Ele já conhecia a maior parte da história de Lady Day quando se sentaram para fazer o livro. O modo descontraído de ser e de falar de Billie foi admiravelmente captado pelo escritor de ouvido musical. A primeira frase do livro é exemplar; “Mamãe e papai eram só duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito anos, ela dezesseis e eu três.” Os 24 capítulos do livro receberam títulos de canções de Billie. O último se chamava God Bless the Child. Completei a trágica história de Billie com um epílogo intitulado Please Don’t Talk About Me When I’m Gone, uma de suas canções favoritas. Raros artistas construíram seu repertório com tanto rigor. Ela preferia cantar várias vezes o mesmo standard, a fazer concessões às chamadas novelties, como Mack the Knife ou La Vie en Rose. 

Pesquisando nas muitas biografias da cantora que continuavam – e continuam – saindo, encontrei fatos ignorados sobre seu intenso final de vida. Numa de suas últimas turnês à Europa, ela se apresentou em uma sala do teatro La Scala de Milão – imaginem só, Lady Day invadindo o sacrossanto espaço da divina Callas! Foi o marido Louis McKay, que vivia às suas custas, quem insistiu na ideia da autobiografia, visando a um filme: estavam em moda as biografias de cantoras como Jane Froman (interpretada por Susan Hayward) e Ruth Etting (Doris Day). A primeira estrela cogitada para o papel de Billie foi Dorothy Dandridge, uma morena light que fizera sucesso em Carmen Jones. Depois se falou em Ava Gardner e – pasmem! – na loura gelada Lana Turner... Só em 1972 o filme, Ocaso de uma estrela, chegaria às telas, numa versão equivocada, com Diana Ross, uma negra de alma branca, no papel de Billie e – pior – destroçando suas canções. 

Em novembro de 1956, numa volta triunfal aos palcos, Billie apresenta-se no Carnegie Hall. No intervalo de cada canção, o jornalista Gilbert Millstein lê trechos da autobiografia. No final de 1957, ela é documentada admiravelmente em vídeo em “The Sound of Jazz”, da CBS, cantando Fine and Mellow com os três grandes do sax tenor – Lester Young, Coleman Hawkins e Ben Webster – nove minutos preciosos da cantora em close num preto-e-branco intimista.

A morte de Lester Young em março de 1959, aos 49 anos, foi um choque brutal para Billie. Por um quarto de século os dois viveram a grande love story musical do jazz. Foi ele quem a apelidou de Lady Day. E ela retribuiu, apelidando-o de Prez. Billie ridicularizava a quantidade de realeza entre os jazzistas – Counts, Dukes, Kings. Earls... “Porra, quem manda mesmo neste país é o Presidente!” E Lester tornou-se The President, ou simplesmente Prez.  A partir dessa grande perda, Billie começou a definhar. Depois de um colapso em 31 de maio, acabou numa tenda de oxigênio. Mal saiu, voltou a fumar. Seu problema principal era a cirrose hepática, mas o coração, os rins e outros órgãos estavam comprometidos por sua péssima condição física. Hospitalizada, foi flagrada por posse de heroína – possivelmente “plantada” por uma enfermeira. 

O teatrólogo Edward Albee escandalizou o mundo em 1960 com sua peça A morte de Bessie Smith, baseada na história real da cantora que sangrou até morrer num hospital de Memphis que se recusou a atender uma paciente negra. O que aconteceu com Billie foi ainda mais brutal. Cito do epilogo:

“No dia 12 de junho ela foi presa e acusada da posse de narcóticos. Tiraram-lhe tudo: o rádio, o toca-discos, as flores, as revistas de fofocas e de quadrinhos, uma caixa de chocolates, um sorvete italiano, o telefone, e dois guardas foram postados diante da sua porta. Dizem até que levaram graxa preta e almofada de carimbo para tirar suas impressões digitais. Billie foi algemada à cama de hospital por dois detetives.”

Um depoimento à revista de fofocas Confidential, escritor por William Dufty, rendeu a Billie 750 dólares. Ela ocultou na sua vagina as quinze notas de cinquenta dólares presas num rolo com fita adesiva. No livro de 2002 Jazz and Death, o médico Frederick J. Spencer argumenta: “O esconderijo secreto de Billie Holiday pode ter contribuído para sua morte. Provavelmente tinha um cateter urinário inserido como parte do tratamento, uma avenida potencial para que a infecção alcançasse a bexiga. Esconder qualquer substância na vagina aumentaria esse risco. Se uma infecção subisse pelo trato urinário até a bexiga ou os rins, qualquer complicação seria fatal. Isso ocorreu sob a forma de ‘edema dos pulmões’, uma consequência comum do repouso prolongado numa cama. A aeração inadequada das bases dos pulmões leva ao edema, o que aumenta a carga de esforço sobre o coração. A condição de Billie já era séria demais sem esta tensão.”

Das dezenas de reedições americanas e traduções nos mais variados idiomas, a que eu fiz para a Zahar em 2003 é a única que conta a história completa de Billie Holiday. Verifiquei pela Estante Virtual que ainda existem exemplares da tradução de 1985 da Brasiliense, mas a edição da Zahar está praticamente esgotada – o que mostra a sua boa aceitação. Sinto-me gratificado por ter acrescido, às 204 páginas da autobiografia original, onze páginas de novas informações. Entre elas a antevisão que Billie teve do seu destino ao afirmar: “Você não é ninguém nos Estados Unidos antes de morrer. A partir daí, você é a maior.”

terça-feira, 5 de junho de 2018

1000 tons de preto • Por Roberto Muggiati

Fabiana Cozza: criticada por ser clara demais para...

...interpretar Dona Ivone Lara em musical. Fotos:Divulgação

“Renuncio por ter dormido negra e, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos.”

Reprodução O Globo
Assim a atriz Fabiana Cozza anunciou sua desistência de interpretar o papel principal do musical "Dona Ivone Lara: um sorriso negro", por ser considerada clara demais” para viver o papel da famosa sambista. Filha de pai negro e mãe branca, Fabiana se declara uma mulher negra e se posiciona politicamente como tal. Ela afirmou ainda: “Quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.”




Seu dilema lembra o da cantora de jazz Billie Holiday (1915-59), uma mulata clara, na época em que, nos estados mais reacionários, o público não aceitava a integração racial.


Billie Holiday: discriminada em orquestras "brancas" e "negras'.

Em meu livro de 2008, "Improvisando soluções" (Best Seller), relatei as formas de segregação que ela “viveu na carne quando começou a excursionar com a orquestra de Artie Shaw, formada só por músicos brancos. As plateias dos estados norte-americanos mais conservadores não admitiam mistura racial em grupos musicais. Se Billie negra teve problemas apresentando-se com orquestras brancas, ela não deixou também de ter problemas quando excursionava com a orquestra negra de Count Basie. Seu tom pálido de pele morena, acentuado pelos refletores, induzia o público a acreditar que fosse branca. Muitas vezes Billie teve de passar graxa no rosto para escurecer a pele e ‘passar por negra.’”

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Exclusivo: o jornalista Roberto Muggiati é flagrado ao lado de Billie Holiday no Telezoom, Leblon



Essa as revistas de celebridades perderam. Billie Holiday foi vista ontem à noite no Leblon. Mais precisamente, no Espaço Telezoom, na rua Dias Ferreira. A cena chamou a atenção de cerca de 50 pessoas. E causou muita supresa. Imaginava-se que a cantora tivesse falecido no Hospital Metropolitano de Nova York, na manhã de 17 de julho de 1959, há exatos 50 anos. Mas foi Billie Holiday, em som e alma, que chegou ao Telezoom por volta das oito horas da noite, levada pelo jornalista, escritor e músico Roberto Muggiati, com quem tem um visível caso de amor - os amigos dizem que é paixão bem resolvida - há décadas. Billie quase não falou, preferiu cantar. Muggiati foi seu competente porta-voz. Leblon é território de paparazzi, mas a única fotógrafa a registrar essa noite de blues e do jazz foi Jussara Razzé. O Panis pagou caro pela exclusividade, mas valeu o investimento. Veja as fotos. E Jussara ainda cedeu à TV Panis, que pode ser acessada no campo à direita, um clipe emocionante que registra a noite em que Billie Holiday reinou no bairro que já foi do Cazuza.
Durante duas horas, Muggiati falou sobre a vida e carreira da amiga, seus dramas, suas fraquezas, sua incomparável voz. "Não diria que Billie é a maior cantora do mundo. Não sei bem o que significa ser a maior. Diria que ela é única", situou o jornalista, com maior precisão. Billie, ao lado, nada comentava, apenas, para deleite da plateia, ilustrava a palestra do amigo com algumas das canções que ele citava. E emocionou. Como quando soltou a voz em Lover Man, balada escrita para ela sobre uma mulher que não conheceu o amor. Muggiati falava sobre os amigos da cantora, enquanto Valéria Martins jogava no telão trechos de filmes e raras gravações de show. Em um dos filmes, de 1947, Billie aparece ao lado de Louis Armstrong. A platéia viu em Muggiati uma ponta de ciúme quando ele chamou a atenção sobre olhares nada musicais, mas de admiração e cobiça, que Armstrong dirigia à cantora. Um amigo jornalista, cansado do chavão "imperdível" para definir espetáculo idem, passou a adotar nos seus textos o adjetivo inexplicável, que considerava vários degraus acima do reles imperdível. Pois a presença da Billie Holiday no Telezoom foi inexplicável. Os jornais de hoje devem estar falando dos tais 50 anos da morte de Billie. Esqueçam. Perguntem a Renato Sérgio, Lenira Alcure, João Luiz Albuquerque, Maria Alice Mariano, Dalce Maria, Ana Lúcia Bizinover, Ana Beatriz, Jussara Razzé, Regina Lins e Silva, Valéria Martins...
Billie vive, eles viram.