Contigo/Reprodução |
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por José Esmeraldo Gonçalves (*)
Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, não mostrava
para a mãe, Lucinha Araújo, 78, as letras das canções que criava. Pelo menos,
não em primeira mão. Ele costumava escrever nas madrugadas. Do seu quarto, em
uma cobertura no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, Lucinha ouvia o barulho
da máquina de escrever Olivetti. Quando o dia amanhecia, Cazuza ainda dormindo,
ela recolhia da cesta de papeis rascunhos amassados, incompletos, das poesias
que o Brasil canta desde os anos 1980. Meticulosa, guardava-os em uma pasta. A
canção “Exagerado”, lançada há exatos 30 anos, deveria ser um daqueles
rascunhos. “Mas não foi uma das letras que eu recolhi. Não cheguei a
vê-la. Cazuza era filho único. As mães tendem a ficar em cima e eu era muito
disso, então, ele não me dava muita satisfação”, diz Lucinha. “Mãe, eu não
quero que você mexa nas minhas coisas”, ele reclamava. Segundo Lucinha, Cazuza
finalizava as letras e mandava direto para os parceiros. No caso de “Exagerado”,
que ela conheceu quando já estava gravada, o co-autor Leoni, 54, cantor e baixista que
foi do Kid Abelha e Heróis da Resistência. “Quando escutei a primeira frase da
música – ‘Amor da minha vida / Daqui até
a eternidade / Nossos destinos / Foram traçados na maternidade’ - fiquei
achando por um instante, doce ilusão, que era em minha homenagem. Mas no verso
seguinte - ‘Paixão cruel, desenfreada/Te trago mil rosas
roubadas/ Pra desculpar minhas mentiras’ – já vi que não podia ser”, conta
Lucinha, rindo, sobre a canção que, na verdade, foi composta para Ezequiel
Neves, já falecido, jornalista, compositor, produtor e amigo do filho. Lucinha
define “Exagerado” como a música que mais retrata o espírito de Cazuza. “Agora,
devo dizer que adoro “Um Trem para as Estrelas”. Acho linda, genial, nossa!, um
grito social contra a injustiça”, vibra.
Ela recebe a equipe da Contigo! na sua sala na Sociedade
Viva Cazuza, que atende crianças portadoras de HIV, no bairro de Laranjeiras,
onde cumpre uma rotina diária de trabalho. Atrás da poltrona, há um pôster do
cantor desenhado em grafite. Em um pequeno prédio ao lado, fica o Espaço
Cazuza, onde estão guardados objetos pessoais, discos, fotos, a mesa e a
Olivetti, arrumados tal como no tempo em que o compositor criava, naquela mesa,
canções memoráveis. Vê-se, por tudo isso, que os 25 anos da morte de Cazuza lembram,
para ela, muito mais a presença do que a ausência do filho. Por conta da
comemoração das três décadas de “Exagerado”, o cantor e compositor recebeu
várias homenagens. A recriação do Circo Voador, no Arpoador, que foi o palco da
geração de Cazuza, foi uma delas. Em uma sexta-feira, 12 de junho último, antigos
parceiros cantaram Cazuza e emocionaram Lucinha. Essas ocasiões estão longe de
ser, para ela, um ‘revival’ de tristezas. “Não, vejo com alegria. É o que
sobrou para mim depois que meu marido (João Araújo, produtor, ex-diretor da
gravadora Som Livre) morreu. Eu vivo para cultuar a memória do meu filho e para
trabalhar na Sociedade Viva Cazuza, que também completa 25 anos em outubro
desse ano. Então, tudo isso, para mim, é um misto de prazer e dor, acho que dá
para entender. As pessoas me perguntam como tive coragem de assistir ao filme “O
Tempo Não Para”, ao musical “Pro Dia Nascer Feliz” e a shows que relembram meu
filho. Costumo responder que é a história da minha vida, tenho que ver, posso
chorar, não chorar. Não sou masoquista, essas homenagens me dão forças para
continuar enquanto eu tiver saúde”.
Durante o espetáculo no Circo Voador,
Lucinha viveu mais um desses momentos de reencontro com a sua história: o
lançamento de “Exagerado 3.0”, uma nova versão da música, com a voz original do
cantor e a participação de Dado Villa Lobos, 49, e João Barone, 52. Em uma
iniciativa da Vivo, com parte da renda destinada à Sociedade Viva Cazuza, foi
produzido um clipe especial para o Dia dos Namorados, onde Cazuza, vivido pelo
ator Emílio Dantas, 22, faz o papel de Cupido.
Lucinha costuma dizer jamais imaginou que tivesse tanta capacidade
de superação. “Eu criei essa força pelo meu filho, tenho certeza. Cazuza era
muito corajoso. Eu ficava impressionada. Quando ele estava doente, eu achava
que não tinha o direito de chorar porque ele, que estava passando por tudo
aquilo, mostrava uma força que eu invejava. Enfrentou tudo de cabeça erguida,
não teve não teve vergonha de se expor. Perdi um filho, um marido, tive câncer
há 12 anos, vivo com dez stents e um marca-passo, mas eu falo para as pessoas,
‘gente, eu já vivi bastante, meu filho quando ficou doente tinha pouco mais de
25 anos’. Eu acho que não tenho o direito de não ser forte”, diz ela, que
admite, contudo, um momento as fortes lembranças a abalaram, recentemente. Até
janeiro deste ano, Lucinha vivia no duplex em que a família morou durante
décadas. Sozinha, desde 2013, quando João Araújo faleceu – foram 56 anos de
casamento -, ela optou por se mudar para um apartamento menor, no mesmo prédio.
“Era enorme. E João morreu ali, Cazuza morreu ali. Lembranças demais, não é?”,
justifica.
Os momentos mais difíceis não comprometem, contudo, a convicção de
que deve seguir em frente. “Não me dou o direito de chorar mais do que 15
minutos, aí eu tomo um banho, vou viver, tem muita gente que depende de mim,
muita criança com HIV e que não sabe quem foram o pai e a mãe. Tudo isso me dá
uma responsabilidade de viver enorme”, diz. “Mas eu só pareço que sou forte. É
que não me dou ao direito de fraquejar. O mundo está aí, estou viva, vou viver
da maneira que o João e o Cazuza gostariam que eu vivesse. Também não tenho
mais tanto tempo assim (risos), vou fazer 80 anos em 2016. Não tenho assim um futuro
tão longo. Então vou viver o que me resta, da melhor maneira”. Por isso, ela
não abre mão de encontrar os amigos. “Eu sempre sai muito. João sempre foi
muito divertido. E por força da profissão dele, a gente ia a tudo que é boate e
shows. Depois que fiquei viúva, meus amigos não me deixaram. Por exemplo,
praticamente toda semana vou a uma roda de samba na casa da Paula Lavigne. Fico
lá a noite toda cantando ao lado de artistas como Pretinho da Serrinha e Xande
de Pilares. Adoro me divertir, gosto de viajar. Gilberto Gil e Flora Gil são
meus amigos, já fui seis vezes com eles para a Europa, acompanhando turnês,
viajando de ônibus. Adoro, me divirto. Depois volto para a minha vidinha no meu
apartamento, sozinha”, conta ela, que, após os livros “Só as Mães São Felizes, “O
Tempo Não Para” e “Preciso Dizer Que te Amo” (que vai ser atualizado e
reeditado pela Editora Globo), prepara, agora, a biografia de João Araújo, que
será lançada ainda este ano. “Eu queria que ele tivesse escrito esse livro. O
João tinha muitas histórias para cantar, mas era muito modesto. Já fizemos mais
de 60 entrevistas com gente importante que ele lançou para a música
brasileira”, conta ela que, além da motivação afetiva, tem um propósito
importante na destinação dos seus projetos. “Tudo o que envolve Cazuza, dos
direitos autorais aos shows, filme, musical, parte da venda digital da
regravação “Exagerado 3.0”, livros e propagandas, vai para as crianças da
Sociedade Viva Cazuza, onde já vivemos altos e baixos, hoje estamos numa maré melhor,
a prefeitura do Rio ajuda, mas é fundamentalmente é a obra de Cazuza que cobre”, revela Lucinha que,
ao ser fotografada diante do pôster do filho no seu escritório – desenho feito
por um artista de rua sobre uma foto de Flávio Colker. Ela comenta que não
consegue imaginar o filho, hoje, quando teria 57 anos. “Não consigo vê-lo como
um senhor de idade (risos). Se bem que o Frejat tem pouco menos e não
envelheceu, quase, está bem. O Leoni está igualzinho. Mas ele seria de
vanguarda. Estaria muito chateado com o país atual. Cazuza pediu para o Brasil
mostrar a cara, coisa que não aconteceu até hoje. Mas ele estaria compondo e
botando a arte dele a favor do povo. Isso eu tenho certeza”, conclui.
(*) Texto publicado na revista Contigo, de 23 de julho de 2015, edição 2079, reproduzido aqui com informações originais e trechos extras especiais para o blog.
ATUALIZAÇÃO em 12/9/2015 - Em outubro, a Sociedade Viva Cazuza comemora 25 anos de atividade. Na última quinta-feira, 12/9, o MAM foi o palco de um leilão que arrecadou fundos para a instituição. Da platéia, Lucinha assistiu à demonstração de apoio de 1.500 amigos à instituição beneficente, em noite organizada por Paula Lavigne e Malu Barreto.