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terça-feira, 19 de abril de 2022

Os áudios da barbárie

por José Esmeraldo Gonçalves

"Quem uma vez pratica a tortura se transtorna diante do efeito da desmoralização infligida. Quem repete a tortura quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico e psíquico tamanho que é capaz de torturar até as pessoas mais dedicadas da própria família"

D.Paulo Evaristo Arns ouviu o comentário de um general contrário à tortura. O cardeal usou a advertência no texto de apresentação de "Brasil; Nunca Mais - Um relato para a História". Lançado em 1985, o livro resultou da pesquisa "Brasil: Nunca Mais (BNM), onde um pequeno grupo de especialistas dedicou mais de cinco anos a trazer à luz uma das págionas mais trágicas do Brasil. 

Os pesquisadores levantaram os processos que passaram pela Justiça Militar, especialmente aqueles levados ao Superior Tribunal Militar (STM), entre abril de 1964 e março de 1979, e microfilmaram mais de 1 milhão de páginas. Todo o material foi copiado e guardado fora do Brasil em função das ameaças que o grupo recebia. O livro demonstrou que a tortura era uma prática inserida na política reressiva da ditadura. Fazia parte, não foi contestada, expandiu-se. Estava tudo lá na documentação reunida: "pau-de-arara", "pimentinha", "cadeira do dragão", "afogamento", "geladeira" etc. Tão comum que as Forças Armadas construíram até uma didática, um método educacional. Algumas instituições montavam cursos para torturadores diplomandos, uma espécie de submersão nas técnicas mais crueis. Um dos capítulos do livro extrapola o horror e detalha a tortura em crianças, mulheres e gestantes. 

Nos últimos dias, o Brasil reencontrou esse passado recente e sangrento em áudios que o historiador Carlos Fico, da UFRJ, resgatou dos porões do STM (Superior Tribunal Militar). Fico encaminhou o material a Miriam Leitão - ela própria ex-presa política e vítima de torturas nos anos 1970. A jornalista - revelou o dossiê na sua coluna no jornal O Globo. A denúncia ganhou ampla e oportuna divulgação em todas as mídias.  Nunca é demais mostrar às novas gerações a face da ditadura e o quanto é absurdo clamar pela volta de um regime criminoso, como se vê em escalões de arautos dos poderes atuais e de seus apoiadores. A mídia só vacilou no uso de títulos e chamadas que apontam os áudios como "as primeiras provas" que "atestam" que houve tortura no Brasil. Não são. A tortura foi comprovada antes em relatos, evidências,testemunhos e documentos. A Comissão da Verdade encontrou laudos falsos feitos por legistas da ditadura em corpos de presos torturados até à morte. Não restou dúvida, como atestam dois exemplos entre milhares, de que presos como Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho foram barbaramente torturados e mortos pela ditadura. Assim como não resta dúvida de que os áudios descobertos por Carlos Fico são um documento histórico impressionante. Ao lado de vozes de ministros militares, algumas formais outras que revelam certa indignação, é emocionante ouvir a fala trêmula e incisiva do advogado Sobral Pinto, que defendeu muitos presos políticos, ecoando graves denúncias de tortura.. Naquele dia, a Justiça Militar foi colocada diante da verdade mais incoveniente para a ditadura que todos ali exaltavam e patrocinavam: a barbárie.