HISTÓRIA
POR ROBERTO MUGGIATI
ILUSTRAÇÃO GUILHERME FREITAS
1963
O CASO PROFUMO
Sexo, drogas e espionagem:
havia algo de podre no Reino (des) Unido
No Brasil, tudo acaba em pizza. Na Inglaterra, os
criminosos são punidos. Mas, às vezes, acabam
em espetáculo (lembram o superladrão Ronald
Biggs, que virou superstar e veio morar no Brasil?).
É o caso agora de Stephen Ward, pivô do
Escândalo Profumo. Há 50 anos, ele escapou à
punição suicidando-se. Hoje, com aura de mártir, volta aos refletores
em Stephen Ward The Musical, assinado por Andrew Lloyd Weber, o
criador de Jesus Cristo Superstar, Evita e O Fantasma da Ópera.
Resumo da história: em julho de 1961, numa festa na casa de
campo de um lorde, o ministro da guerra britânico, John Profumo, foi
apresentado à dançarina Christine Keeler, de 19 anos. Casado com
a atriz de cinema Valerie Hobson, Profumo, 46
anos, era um político em ascensão no partido
conservador. O famoso osteopata e pintor Stephen
Ward (retratou o Duque de Edimburgo
e o Duque e a Duquesa de Kent), 48 anos, foi
quem apresentou Christine a Profumo. Ward
também apresentou Christine, sua amiga, a
Eugene Ivanov, adido naval da URSS em Londres.
Na verdade, Christine era uma garota
de programa; Stephen Ward, um proxeneta;
Ivanov, um espião da KGB – e Profumo, um
grande otário. O ministro em poucas semanas
se deu conta do risco da situação e rompeu com
Christine, mas o estrago já havia sido feito.
Quase dois anos depois, um problema de
Christine com a justiça trouxe o caso à tona. E
estourou nos jornais. "WAR MINISTER SHOCK" foi uma das primeiras
manchetes. O escândalo – em que um ministro britânico (justo
o da guerra) e um espião soviético dividiam a cama com a mesma
mulher – acontecia num momento nevrálgico da Guerra Fria, pouco
depois da Crise dos Mísseis de Cuba, em que Kennedy e Kruschev
quase desencadearam o holocausto nuclear. (No imaginário popular,
ocorria o boom de James Bond, com o primeiro filme da série em
cartaz, O Satânico Dr. No) Em março de 1963, Profumo declarou reservadamente
à Câmara dos Comuns que “não houve nenhuma impropriedade”
em suas relações com Christine Keeler. Em 5 de junho, ele
voltou atrás e admitiu que havia mentido. Renunciou ao ministério,
à cadeira no Parlamento e ao seu posto no Conselho Privado. Graças
ao Caso Profumo, os conservadores perderam o gabinete para
os trabalhistas nas eleições do ano seguinte e entrou em cena, como
primeiro-ministro, Harold Wilson, aquele cinquentão sorridente
que tirava fotos de cachimbo na boca com os Beatles.
RELATÓRIO BEST-SELLER
Publicado em 25 de setembro de 1963 pela imprensa oficial de
Sua Majestade, o relatório oficial de Lord Denning tornou-se um
best-seller: vendeu mais de 100.000 exemplares, sendo 4.000 na primeira
hora. Saiu na íntegra como suplemento do Daily Telegraph e foi
descrito pela BBC, em 1999, como “o mais picante e deleitável relatório
oficial já publicado.” Eu morava em Londres na época (veja box) e
também engrossei a imensa fila diante de Her Majesty’s Stationery
Office para comprar o meu. Está meio desbotado,
com a lombada um pouco avariada e as folhas
amareladas, mas ainda rende ótima leitura. Vou
compactar alguns trechos. Lorde Denning descreve
admiravelmente os personagens:
• “A história tem de começar com Stephen
Ward, 50 anos. Filho de um clérigo, era osteopata
com consultórios em 38, Devonshire Street, W1.
Muito competente, tinha pacientes famosos. Era
também um talentoso pintor de retratos e pessoas
importantes posaram para ele. Sua conversa rápida
e fácil atraia muita gente, mas repelia outros. Gostava
de conhecer ocupantes de altos postos. Era, ao
mesmo tempo, extremamente imoral. Costumava
atrair garotas bonitas de 16 ou 17 anos, geralmente
de boates – seduziu muitas delas – e as fazia amantes
de seus amigos influentes. Atendia também a amigos com gostos
pervertidos, promovendo açoitamentos e outras cenas de sadismo.
Participava de festas com orgias sexuais revoltantes. Finalmente,
admirava o regime soviético e simpatizava com os comunistas. Ficou
muito amigo de um russo, Eugene Ivanov.”
• “O capitão Eugene Ivanov era adido naval assistente na embaixada
da Rússia em Londres, um posto apenas diplomático. Chegou
ao país em 27 de março de 1960, mas o Serviço de Segurança descobriu
que era também um oficial da inteligência russa. Seu inglês era
razoável e podia conversar com facilidade. Mas bebia bastante e era
mulherengo. Impressionava-se com pessoas da aristocracia. Não
perdia tempo em defender o lado russo. Avisava logo seus interlocutores:
'Tudo o que vocês disserem vai direto para Moscou. Meçam
suas palavras.' Stephen Ward e o capitão Ivanov se tornaram grandes
amigos. Iam a restaurantes, jogavam bridge, encontravam amigos e
garotas. Ivanov preenchia um novo papel na técnica russa: dividir o
Reino Unido dos Estados Unidos, desmoralizando ministros ou altos
funcionários para que o serviço secreto britânico parecesse incompetente.
Se esse era o alvo do capitão Ivanov, tendo Stephen Ward como
seu instrumento, ele foi muito bem sucedido.”
• “Christine Keeler, com 21 anos, saiu de casa aos 16 e logo se
empregou num cabaré de Londres onde seu trabalho era caminhar
pelo palco sem roupas. Stephen Ward a conheceu e a convidou para
morar em sua casa. Ele a apresentava a homens influentes com os
quais ela mantinha relações sexuais. Christine tinha indubitáveis
atrativos físicos.”
• “O Sr. Profumo foi ministro da guerra de julho de 1960 a junho
de 1963. Aos 48 anos, tem uma inestimável folha de serviços ao país.
Quaisquer indiscrições que tenha cometido e quaisquer falsidades que
tenha contado, nenhum depoente que ouvi deu provas de duvidar da
sua lealdade. O Sr. Profumo casou-se em 1954 com a Srta. Valerie Hobson,
atriz talentosa, e o apoio que ela lhe deu em seus dias difíceis é um
dos aspectos mais redentores nos acontecimentos que vou descrever.”
• “Lorde Astor conheceu Stephen Ward em 1950 quando o procurou
como paciente depois de um tombo durante uma caçada. Em
1956 Lorde Astor alugou a Ward um chalé na sua propriedade de Cliveden.”
(No fim de semana de 8 e 9 de julho de 1961 os convidados
de Lorde Astor se encontraram com as convidadas de Stephen Ward
na piscina da propriedade. Foi quando Profumo conheceu Christine
Keeler.) “Todos estavam em roupas de banho, mas nada indecente
aconteceu. O capitão Ivanov deixou Cliveden no começo da noite de
domingo e deu carona para Christine. Foram para a casa de Stephen
Ward e lá beberam bastante e houve algum tipo de relação sexual.
Mas o capitão Ivanov nunca se tornou amante de Christine. Aparentemente,
durante aquele fim de semana o Sr. Profumo se sentiu muito
atraído por Christine Keeler. Nos dias seguintes, marcou encontros
com ela, visitou-a na casa de Stephen Ward e teve relação com ela
lá. Certa vez, a levou a passear em um carro do ministério. Em agosto,
quando sua mulher estava na Ilha de Wight, ele levou Christine para
sua própria casa, em Regent’s Park. Um dos pontos mais críticos da
minha investigação é este: teria Stephen Ward pedido a Christine
Keeler para obter do Sr. Profumo informação sobre quando os norte-
americanos forneceriam a bomba atômica para a Alemanha? Ninguém
em sã consciência teria pedido a alguém como Christine Keeler
que obtivesse esse tipo de informação do Sr. Profumo.”
A inteligência britânica acompanhava os passos do ministro da
guerra e sabia de tudo. O secretário do gabinete aconselhou Profumo
a terminar a relação e ele o fez numa carta para Christine em 9 de
agosto de 1961. Tudo teria ficado em silêncio não fosse um traficante,
amante de Christine, ter arrombado sua porta a tiros e levado a call girl
para os tribunais e as manchetes.
CHRISTINE FALA
Passados 50 anos, a própria Christine desmente o Relatório Denning.
Em entrevista ao Daily Mirror (9 de junho de 2013), ela admite
que foi manipulada pelo médico para trair seu país. Disse que Ward
usou o primeiro encontro na sua casa entre ela e “Jack” para roubar
documentos secretos da pasta do ministro detalhando a entrega de
armas nucleares à Alemanha. “Profumo nunca revelou que teve cartas
secretas roubadas, por arrogância, incompetência ou para esconder
sua negligência.” Christine contou ainda ao Mirror: “Não lembro
bem como era fazer sexo com Jack, a não ser que foi furtivo no começo,
depois se tornou cada vez mais prazeroso e subitamente acabou.
Parece incrível que nossa relação tenha resultado em tanta tragédia
e tanto dano.” Ela se diz uma inocente útil, enganada por Ward. “Fui
recrutada por um homem esperto e carismático, mas perigoso.” Conta
que foi a encontros com espiões infiltrados no próprio establishment,
como Sir Anthony Blunt (curador dos museus reais), Sir Roger Hollis
(chefe do MI5) e outros: “Podem imaginar como era chato para mim
ficar ouvindo toda aquela conversa sobre Moscou, Washington e
bombas nucleares?”
No rastro do escândalo, o michê de Christine Keeler subiu astronomicamente.
Ela foi para a cama com bonitões do cinema como
Warren Beatty, George Peppard, Maximilian Schell e os veteranos
Robert Mitchum e Douglas Fairbanks Jr. Costumava circular na noite
com sua amiga Mandy Rice-Davis, 19 anos, que também se envolveu
no escândalo. Ficou famosa por uma frase, no tribunal, quando
lhe disseram que Lorde Astor negara qualquer relação com ela: “He
would, wouldn’t he?” (“Ele falou, não foi?”) A frase entrou na 3ª edição
do Oxford Dictionary of Quotations (1979). Em 1983, Christine
publicou uma autobiografia, Nothing But. Na época vendia telefones
em Fulham, depois gerenciou uma lavanderia em Battersea. Na década
de 1990, foi morar no litoral sul da Inglaterra e trabalhou como
cozinheira numa escola de moças. Em 2001 ainda tinha o que contar
e lançou uma segunda autobiografia, The Truth at Last.
Peter Wright, agente da contrainteligência britânica MI5, interrogou
longamente Christine sobre o Caso Profumo. Em sua autobiografia,
Spycatcher (Caçador de espiões, Bertrand-Brasil, 1988),
ele disse que se surpreendeu ao ver uma garota de programa inculta
usar o termo nuclear payload (carga útil nuclear) referindo-se
a mísseis. Christine foi imortalizada pela foto icônica do australiano
Lewis Morley, feita em maio de 1963, em que aparece nua,
escanchada numa cadeira do designer dinamarquês Arne Jacobsen.
Tanto a cadeira como a foto entraram para o acervo do Victoria
& Albert Museum de Londres. Uma frase atribuída a Christine
também ficou célebre: “Eu assumi os pecados de todo mundo, de
toda uma geração, na verdade.”
PSICODRAMA
Um filme britânico sobre o Caso Profumo foi lançado em 1989,
Scandal, dirigido por Michael Caton-Jones e estrelado por Joanne
Whalley (Christine Keeler), John Hurt (Stephen Ward), Ian McKellen
(John Profumo), Britt Ekland (Mariella Novotny) e Bridget Fonda
(Mandy Rice-Davies). Um destaque do filme foi a canção Nothing Has
Been Proved, composta e produzida pelos Pet Shop Boys e cantada por
Dusty Springfield. John Dennis Profumo, o 5º Barão
Profumo do Reino da Sardenha, depois da
renúncia prestou serviços voluntários limpando
latrinas em Toynbee Hall, uma instituição
de caridade no East End, a zona mais pobre
de Londres. (Lembra o fim de Jeremy Irons
em Perdas e danos). Com o tempo,
tornou-se o principal angariador de fundos da instituição e conseguiu restaurar em parte sua reputação.
Trabalhou lá até morrer em 2006, aos 91 anos. Sua mulher,
Valerie Hobson, interrompeu uma brilhante carreira de atriz em 1954
ao casar com Profumo. Seu último filme, o 45º, foi Um Amante Sob Medida,
dirigido por René Clément e estrelado pelo galã Gérard Phillipe.
Morreu em 1998 aos 81 anos.
A vida de Stephen Ward tem tudo para dar um belo musical. Foi
médico, entre outros, de Winston Churchill, Frank Sinatra e Elizabeth
Taylor. Na Segunda Guerra, na Índia, o capitão Ward tratou o
Mahatma Gandhi de dores de cabeça e da coluna cervical. Aos 17
anos rompeu com a família e foi para Londres. Vendeu tapetes, baús
de chá indianos, assinaturas da revista The Spectator e foi tradutor da
Shell em Hamburgo. Em 1934, aos 22 anos, a mãe o persuadiu a estudar
medicina. Formou-se no Kirksville College of Ostheopathy and
Surgery no Missouri, nos Estados Unidos. Segundo o jornalista Philip
Knightley, “Ward ajudou a dar à luz bebês em fazendas remotas,
praticou cirurgias em mesas de cozinha, cuidou de ossos quebrados
em tornados e ministrou injeções contra a febre tifoide durante as
enchentes que devastaram a junção dos rios Ohio e Mississipi.”
Stephen Ward não resistiu às pressões do Caso Profumo e
envenenou-se com barbitúricos. Estava em coma quando recebeu
o veredicto de culpado da acusação de viver de “ganhos imorais”
ao prostituir suas amigas Christine Keeler e Mandy Rice-Davies.
Morreu três dias depois da sentença, em 3 de agosto de 1963. O Caso
Profumo foi o divisor-de-águas entre a velha e a nova Inglaterra.
Como registrou em março de 1963 a revista Time: “Na ilha onde o
tema era há muito tempo tabu entre a sociedade educada, o sexo explodiu
na consciência nacional e nas manchetes. ‘Estamos virando
maníacos sexuais?’ pergunta o Daily Herald. ‘A castidade está fora de
moda?’ pergunta uma revista escolar para adolescentes. ‘As virgens
ficaram obsoletas?’ é a pergunta feita pelo solene New Statesman. As
respostas variam, mas uma coisa é clara: a Grã-Bretanha está sendo
bombardeada por uma barragem de franqueza em relação ao sexo.”
O Caso Profumo foi também o grande psicodrama da Guerra
Fria, uma tragédia que Shakespeare teria escrito se vivesse nos anos
1960. A partir do dia 3 de dezembro, esta história será revivida todas
as noites no palco do Aldwych Theatre, em Londres. E – quem sabe
no ano que vem? – nos melhores teatros de Rio e São Paulo.
MEMENTO
Embalos de sábado à noite em Londres, 3 de agosto de 1963,
morei em Londres de agosto de 1962 a junho de 1965, trabalhando
no Serviço Brasileiro da BBC). Eu bebia num pub de Chelsea bem
próximo ao hospital St. Stephen’s, onde o médico Stephen Ward, o
agente catártico do Caso Profumo, estava em coma depois de uma
tentativa de suicídio. O escândalo ocupava todo dia as manchetes.
Lembro bem daquela noite por causa de uma quadrinha rabiscada na
parede do banheiro do pub, que nunca mais esqueci: “L’ha detto Dante/
lo confermó Petrarca/ la fica di una donna/ ha la forma di uma barca.”(Já
disse Dante/ e confirmou Petrarca/ a xota de uma dona/ tem a forma de
uma barca.) No domingo, acordei de ressaca. Ao sair às ruas aturdido,
vi os cartazes das bancas de jornais berrando: Stephen Ward tinha
morrido naquela noite.