"Vinte anos depois, revi o espaço. Ele continua ali, imutável. Mas o tempo no seu entorno se esfacelou completamente" (RM). Foto: Divulgação |
por Roberto Muggiati
Algo como a abertura de Rebecca me perseguiu durante anos: “Na noite passada sonhei que voltei a Manderley.” A protagonista retorna para encontrar a faustosa mansão senhorial arrasada por um incêndio, com suas ruínas cobertas pelo mato.
No teatro reaberto. Foto Rodrigo |
Durante vinte anos sonhei que voltava ao Teatro Adolpho Bloch. Ontem à noite, não foi um sonho, foi tudo real: voltei fisicamente ao teatro da Manchete, reaberto pela primeira vez desde que a empresa pediu falência em 1º de agosto de 2000. Não encontrei a sala em escombros, mas vistosa como sempre, com suas paredes e pisos de madeiras nobres e as confortáveis poltronas de veludo vermelho.
Portal do Teatro Adolpho Bloch, que se integrava à piscina e ao antigo restaurante do terceiro andar do prédio da Rua do Russell. Reprodução Manchete |
Enquanto assistia ao simpático show O Musical da Bossa Nova, foram passando por minha cabeça os principais momentos que vivi naquela bolha cenográfica cheia de memórias, cujos imensos portais ao fundo do palco se abriam, ao final do espetáculo, para a piscina e a esplanada de mármore onde aconteciam as grandes recepções da Manchete.
Bibi Ferreira, Grande Otelo e Paulo Autran em O Homem de La Mancha. Reprodução Manchete |
O Teatro Adolpho Bloch foi inaugurado em grande estilo num sábado, 13 de janeiro de 1973, com o musical O Homem de La Mancha, com Paulo Autran, Bibi Ferreira e a genial atuação, no papel de Sancho Pança, de Grande Otelo (o apelido foi dado pelo grande Orson Welles.). A paixão de Adolpho pelo palco vinha da infância, quando seu pai, um gráfico na Ucrânia, imprimia libretos musicais que o menino distribuía na Ópera de Kiev. Corre até a lenda de que, antes de liberar com o arquiteto Oscar Niemeyer as plantas do prédio da Rua do Russell, onde instalaria sua editora – em terreno escavado com dinamite anos a fio numa pedreira que chegava quase à beira-mar – Adolpho fez questão de examinar meticulosamente os detalhes do teatro, que ainda se dava ao luxo de ser rodeado por paisagismo de Burle Marx.
Fascinado por seu novo brinquedo, Adolpho deixou algum tempo de lado as revistas e até as preocupações bancárias. Num gesto espantoso, liberava-nos mais cedo nas quintas-feiras, com a condição de que fôssemos assistir à matinê do Homem de la Mancha – e não havia como escapar, os espias do DP (Departamento do Pessoal, na Bloch nunca se pensou em Recursos Humanos...) ficavam de olho para que ninguém escapasse. No dia seguinte, com os olhos brilhando, pedia nossas impressões sobre o musical.
Por conta da canção O sonho impossível, houve até um episódio insólito, que só poderia acontecer mesmo na Bloch. Adolpho costumava reunir seu petit comité no fim da tarde das sextas-feiras para a leitura e aprovação do seu artigo semanal. Cony era o encarregado de botar no papel, mas as ideias da coluna eram exclusivas da cabeça ímpar do grande Adolpho. Ele chegava com as laudas e pedia que eu lesse o artigo, “na sua voz da BBC...”, valorizando o fato de que eu trabalhara três anos no Serviço Brasileiro da rádio estatal britânica. O grupo incluía Murilo, Zévi, Arnaldo, Cony e um ou outro incauto que passava desprevenido pelo corredor. No auge da Manchamania, Adolpho cismou de incluir no seu artigo um trecho da canção O sonho impossível. Nenhum de nós, intelectuais de fina estirpe, conhecia a letra. O Cony lembrou que uma recepcionista do teatro sabia a música de cor e não se cansava de entoá-la. Convocou-se incontinenti a Mary, que era irmã do Lourival, chefe da fotocomposição – o nepotismo funcionava em todos os escalões na Bloch. Com seu uniforme azul claro que lembrava o de uma aeromoça das linhas estatais da Albânia, muito séria, em posição de sentido, Mary escandiu à perfeição a letra do Sonho impossível. No dia seguinte, era promovida para um cargo administrativo num dos andares mais altos da empresa.
Pippin,1974. Musical levou ao palco do Teatro Adolpho Bloch Marília Pêra, Marco Nanini, Maria Sampaio, Tetê Medina e Carlos Kroeber e bailarinos. Reprodução Manchete |
O Pagador de Promessas, com Tony Ramos, Fátima Freire e Carlos Koppa, entre outros atores. Reprodução Manchete |
Christiane Torloni em Salomé. No elenco, nomes como Luís Mello, Tuca Andrada, Claudia Schapira e Caco Ciocler. Foto Vania Toledo/Divulgação |
Seguiram-se no repertório do teatro outros sucessos, nenhum tão retumbante quanto O Homem de la Mancha. Veio Pippin, algo meio estranho à nossa cultura. Depois, a comédia de Neil Simon Tudo bem no ano que vem, com Glória Menezes e Tarcísio Meira. E então o bem brasileiro O pagador de promessas. E o musical sobre Mozart, sucesso da Broadway, Amadeus. Depois de um período difícil, o teatro reabriu em 1997 com Salomé, de Oscar Wilde, uma vitrine para Cristiane Torloni, no auge da carreira.
Lembro a noite do casamento, no Teatro Adolpho Bloch, da filha do Oscar Bloch Sigelmann, Eveline, com o filho da Lily Safra, Cláudio Cohen, herdeiro do Ponto Frio. O padrasto do noivo, Edmond Safra, presidente do American Express, fretou um avião para trazer celebridades europeias às núpcias. Cabeças cobertas de quipás importados de Nova York. O noivo quebrando nas tábuas do palco a taça envolta em guardanapo de linho, aos gritos de “Mazel tov!” Horas depois, três da madrugada, Cláudia, a irmã da noiva, morre tragicamente num acidente de carro na Gávea.
Houve uma noite atípica em 1996, quando a Bloch, para fazer média com Antônio Ermírio de Moraes, programou sua peça Brasil S.A. O grande empresário se ungira da missão de explicar o país para os leigos através de uma trilogia teatral. A lembrança é vaga, mas foi numa segunda-feira, depois do fechamento da Manchete. Um verdadeiro dilúvio abateu-se sobre o Rio, lembro apenas dos comes-e-bebes, mas creio que, por motivos logísticos, a peça não chegou a ser apresentada.
Tivemos ainda projeções de filme no teatro, programadas pelo próprio Adolpho. A epopeia Masada, sobre a resistência heroica dos judeus no ano de 66 numa fortaleza localizada no topo de um penhasco rochoso isolado, na extremidade ocidental do deserto de Judeia, onde cerca de 800 zelotes travaram a última batalha contra cerca de 5000 romanos. Pior é que, antes da escolha do filme, fomos vê-lo na cabine da Universal, num beco ao lado do consulado americano no Rio. O filme tinha quase quatro horas de projeção. Passei a grafar seu nome como Maçada. Outro filme importante que passou no teatro foi A lista de Schindler. Por mais comovente que fosse a cinematografia de Steven Spielberg – ou talvez por isso mesmo – não foi uma noite muito alegre. Revivemos com o coração dilacerado toda a maldade sadista dos nazistas e a noção de como o ser humano pode ser cruel para com o próximo.
A última vez que estive no Teatro Adolpho Bloch também não foi das mais recreativas. Em 1998, logo depois que o Brasil perdeu a Copa na França e as bolsas do mundo começaram a despencar após a derrocada dos tigres asiáticos – e a folha de pagamentos da Bloch travou – tivemos uma reunião de toda a empresa no Teatro Adolpho Bloch. Teoricamente, os patrões tranquilizariam os empregados sobre seu des(a)tino. Adolpho e Oscar tinham morrido em 1995. Jaquito estava hospitalizado nos Estados Unidos fazendo uma cirurgia cardíaca. A empresa era representada ali, no vermelho simbólico daquelas poltronas de veludo, por Jacqueline Kapeller e Carlinhos Sigelmann, que não encontravam palavras para dizer... o que? E a plebe rude via apenas uma luz no fim do túnel que, na verdade, era um trem expresso que vinha a mil na contramão para atropelá-la.
Vinte anos depois, revi o espaço. Ele continua ali, imutável. Mas o tempo no seu entorno se esfacelou completamente. Por esse motivo, eu seria o último a ridicularizar os relatos recorrentes de que, na calada da noite, os fantasmas do Adolpho e do Oscar – e de outros menos cotados – são vistos passeando por estas plagas. Acredito piamente nisso.