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sábado, 20 de agosto de 2022

Cony e a Montanha dos Sete Patamares • Por Roberto Muggiati

O lançamento do romance póstumo de Carlos Heitor Cony A Paixão segundo Mateus (Nova Fronteira) me levou a revisitar meus fantasmas religiosos da adolescência. Cony costumava dizer: “Sou ateu com nostalgia de uma fé que nunca tive”. Seminarista até os 19 anos, largou a batina antes de ser ordenado padre. Teve, portanto, uma convivência com o claustro, ao contrário de mim: abandonei a religião depois da Primeira Comunhão, traumatizado com aquela experiência atroz, na paróquia de Santa Teresinha em Curitiba. Primeiro, a confissão: você era obrigado a fornecer à entidade oculta por trás da treliça um cartel mínimo de pecados. Que noção de pecado pode ter uma criança de oito anos? Um menino mais esperto se forrou de balas Zequinha e bolas de gude “traficando” pecados para os menos imaginativos. Depois, o clima de pavor que cercava a ingestão da hóstia sagrada (“Muito cuidado para não morder o corpo do Senhorrrr!”...) Terminada a cerimônia sequer fui para o desjejum, apesar do convidativo Toddy com biscoitos. Saí atordoado para a rua, para o sol da liberdade, e passei muitos anos sem botar os pés numa igreja.


Foto Thomas Merton Center
Aos dezesseis anos, quando comecei a ler meus primeiros livros em inglês, caiu em minhas mãos The Seven Storey Mountain,  em que Thomas Merton (1915-68), um enfant du siècle, filho de neozelandês e norte-americana nascido nos Pirineus franceses, relata sua busca inquieta por um sentido da vida nos agitados anos 1930. Resume o escritor Clifton Fadiman: “De uma próspera família da classe média, Merton passou a infância na Inglaterra, França e nos Estados Unidos. Aluno da Universidade de Columbia, era popular e bem-sucedido. Interessado por literatura e arte moderna, entusiasta de sessões de jazz, viu-se de repente tomado por uma inquietante preocupação com os problemas sociais do seu tempo e com sua salvação pessoal. Isso o levaria a abandonar totalmente a excitação e confusão do mundo.”

Em dezembro de 1941, ele se tornou monge trapista na Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani, no Kentucky, da ordem cisterciense, conhecida pelo voto do silêncio. Ao longo de três décadas, Merton escreveu mais de setenta livros, a maioria sobre espiritualidade. Poeta, ativista social e estudioso de religiões comparadas, defensor do pacifismo e do ecumenismo, é considerado o construtor da ponte unindo as doutrinas do Ocidente e do Oriente.

Foi em Bancoc, na Tailândia, durante uma conferência ecumênica, que Merton morreu, em 10 de dezembro de 1968, aos 53 anos. Sua morte foi atribuída ao curto circuito de um ventilador, encontrado sobre seu corpo. Como não houve autópsia, ficou sem explicação o ferimento na base do crânio, com forte sangramento. Ironicamente, o pacifista Merton teve seu corpo transportado para os Estados Unidos num avião militar que voltava do Vietnã. 

A década foi marcada por uma série de assassinatos políticos: o líder revolucionário do Congo Patrice Lumumba (61), John Kennedy (63) Malcolm X (65), o líder revolucionário marroquino Ben Barka (65), Carlos Marighela (69). O Secretário Geral da ONU, Dag Hammarskjöld, morreu em 1961 em Zâmbia num desastre aéreo – seu avião teria sido abatido a tiros. Em 1968, foram assassinados Robert Kennedy e Martin Luther King; o pintor Andy Warhol quase morreu depois de levar três tiros de uma feminista radical. A Teoria da Conspiração acabaria encampando a “eletrocussão acidental” de Thomas Merton entre os assassinatos políticos de 1968 no livro de Hugh Turley e David Martin O martírio de Thomas Merton: uma investigação (2018). 


Voltando ao livro que abalou meus alicerces na adolescência. A capa é notável, pintada por James Sante Avati (1912-2005), o “Rembrandt das capas de paperbacks”, que também assinou a famosa capa da edição de bolso de O apanhador no campo de centeio. Com um monge embuçado em primeiro plano, temos, num estilo realista bruto, uma visão social panorâmica da América do entreguerras, uma vintena de pessoas espalhadas por uma paisagem caótica de pedras e sombras.

O texto da quarta capa, naquela linguagem vívida e atraente dos paperbacks, me atraiu irresistivelmente à leitura:

O Coração de um Homem

Cândida, reveladora e extremamente honesta, esta é a impressionante biografia de um jovem bem preparado que levava uma vida emocionante e sofisticada até os 26 anos de idade, quando ingressou num mosteiro trapista. Sua história se desloca de Paris ao Harlem, de células comunistas a uma cela de monge, de sessões de jazz até o silêncio da Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani no Kentucky, de James Joyce a Duke Ellington. Sua revelação sensível e exuberante de uma profunda experiência espiritual fez dele um dos livros mais vendidos do nosso tempo.

“É para um livro destes que os homens se voltarão daqui a cem anos a fim de saber o que se passava no coração dos homens neste século cruel.”  Clare Booth Luce, jornalista, fundadora da revista Time. 

O mundo me levou para outros caminhos e a tentação da vida monástica ficou para trás. Só recentemente fiquei sabendo que existe um mosteiro trapista no Brasil. No pós-guerra, cinco monges da Abadia de Genesee, no estado de Nova York, partiram para fundar um mosteiro em nosso país. A comunidade começou no município da Lapa, Paraná, mudando-se em 1983 definitivamente para a cidade de Campo do Tenente. Veja o site oficial, 

AQUI http://www.mosteirotrapista.org.br/

Thomas Merton teve uma relação especial com o Brasil. Sua biografia no site da Wikipedia reserva um capítulo especial, que transcrevo aqui:

 No Brasil Thomas Merton tinha vários amigos e publicou um grande número de livros. Muitas são as pessoas, leigas ou religiosas, que consideram as leituras de seus livros marcos importantes das suas vidas espirituais. Foram lançados mais de 40 livros em português, graças ao envolvimento de intelectuais – como Alceu Amoroso Lima – e de monjas e monges beneditinos – como Dom Basílio Penido, Dom Timóteo Amoroso Anastácio, Dom Estêvão Bettencourt e, principalmente, da irmã Maria Emmanuel de Souza e Silva.

A história sobre o início de uma relação de trabalho e de uma amizade é contada no livro Thomas Merton: o homem que aprendeu a ser feliz, pela Ir. Maria Emmanuel. Ao longo de 13 anos trocaram mais de uma centena de cartas, cartões postais, "santinhos" e livros. Parte das cartas de Merton enviadas à Ir. Maria Emmanuel estão registradas no livro The Hidden Ground of Love: Letters on Religious Experience and Social Concerns (Letters, I).

Merton se correspondeu com outros brasileiros como Alceu Amoroso Lima, Dom Hélder Câmara, abades beneditinos, religiosas e religiosos e simples leitores, ao longo de sua vida. Ele também se interessava por vários autores brasileiros - em especial pelos poetas Manuel Bandeira e Jorge de Lima.

O continuado interesse por Merton, sua vida e suas ideias, levou à fundação, em 10 de dezembro de 1996, da Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton - SAFTM.

Após ter cessado por longos anos a publicação de suas obras no Brasil, existindo apenas dois títulos em 1996, foram reeditados em 1999 os livros A Montanha dos Sete Patamares, Novas Sementes de Contemplação e Ascensão para a Verdade logo seguidos pela publicação de outros títulos nos anos subsequentes. Hoje já são 16 os títulos disponíveis, tendo se estabelecido um novo interesse em dar continuidade à publicação de antigas e novas obras. Além desses existem quatro livros sobre Thomas Merton. Os quase 30 outros títulos esgotados podem ser encontrados em sebos de todo o país.

Bem mais recentemente, fiquei sabendo que outro redator de Manchete, Irineu Guimarães – um défroqué (sem batina) que levou a experiência do claustro muito mais a fundo do que Cony – também se voltou para os trapistas. Foi ele quem traduziu o livro francês Les Mystères de la Trappe, edição bilíngue em latim e português, uma obra-prima da paciência, fruto do seu conhecimento do latim, publicada no Brasil em 1997 com o título Os Cistercienses. 

Veja aqui a vida no mosteiro trapista de Campo do Tenente, no Paraná, num documentário da TV Estado.

https://www.youtube.com/watch?v=8bhFoienNss