Roberto Muggiati na Paris de 1961: encontros com atrizes e jazzistas. Foto Acervo RM |
por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo)
Em fevereiro
de 1961 eu morava na Place Dauphine, na Île de la Cité, aquela ilha no centro
do mapa de Paris. Parece um navio puxando uma barcaça menor, a Île Saint-Louis.
Encontrei um hotelzinho barato, o City Hôtel, no gargalo da praça, que dava
para o Pont Neuf. Se a Ilha era o coração de Paris, a Place Dauphine era “a
vagina de Paris,” segundo o jornalista Jacques Lanzmann.
Um
triângulo equilátero, a praça era fechada na base pelo Palais de Justice, que
eu passei a frequentar. O julgamento do açougueiro ciumento que matou a mulher
a cutiladas – era como assistir de graça àqueles filmes legais de André
Cayatte, tipo Somos Todos Assassinos. A Notre-Dame, catedral das catedrais,
ficava por ali, seus portais esculpidos, as mandalas multicoloridas de seus
vitrais, suas torres gêmeas e as soturnas gárgulas confidentes de Quasímodo.
Naquele inverno
ameno – a temperatura passou dos 20ºC e banhistas afoitos mergulharam nas águas
do Sena – eu descia toda manhã para o bico da ilha, o Square du Vert-Galant,
apelido dado ao sedutor rei Henrique IV. O feito talvez tenha inspirado. Foi
ali que Cortázar localizou o misterioso crime do conto “Las Babas del Diablo”,
que Antonioni transplantou para um parque londrino em Blow-Up – Depois Daquele
Beijo.
Os livros
que eu lia na pracinha verdejante eram os últimos lançamentos beats da City
Lights, vendidos no Le Mistral, livraria da rive gauche que dava para as
rosáceas da Notre-Dame. Ou a literatura socialista da livraria Maspéro, onde
comprei Aden-Arabie, de Paul Nizan, que começava assim: “Eu tinha vinte anos.
Não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida.”
Minha
primeira incursão literária em Paris foi um desastre. Apresentei-me a uma aula
sobre zen-budismo no Collège de France. Um colegiado de anciãos de terno me
encarou desconfiado. A aula era em chinês antigo e eu saí batido, trombando com
uma garota americana, mal informada como eu. Bunny, cabelos de milho, morava
num quarto sem janela. É algo que você nunca deve fazer em Paris: morar num
quarto sem janela. Mesmo bolsista pobre, eu morava numa mansarda no quinto e
último andar do City Hôtel, a janela cortada no telhado de ardósia inclinado. A
vista dava para o Sena e o Museu do Louvre. Toda noite eu fazia os vinte
minutos a pé que separavam meu hotel do Centre de Formation des Journalistes.
Atravessava sempre pelo grande mercado dos Halles, que Zola batizara de “o
ventre de Paris”. A cada noite escolhia um cenário: as hortaliças vicejantes,
as verduras e os legumes de uma variedade infindável; ou as carcaças inteiras
de bois, penduradas em ganchos e enfileiradas numa linha de montagem vermelha e
sanguinolenta; os peixes e frutos do mar, em seus leitos de gelo picado e todos
os matizes de cinza e azul.
Encontros
Era
difícil conhecer escritores em Paris. Atrizes de cinema e músicos de jazz a
cada esquina. Cheguei a uma proximidade perturbadora de Brigitte Bardot,
Françoise Arnoul e Marina Vlady, musas sonhadas na distante Curitiba. Conversei
na porta de um teatro com Farley Granger, ator de Festim Diabólico e Pacto
Sinistro de Hitchcock. Toda manhã eu via Bud Powell tomando café e água mineral
na terrasse do Deux Magots; estive a centímetros de Thelonious Monk, no Blue
Note.
Escritores,
só mesmo os mortos do cemitério do Père Lachaise, que visitei com o cineasta
Joaquim Pedro. Uma exceção: o poeta beat Gregory Corso, com quem bati longos
papos nos cafés. Na porta do Beat Hotel pedi uma entrevista a Allen Ginsberg,
mas ele saiu correndo. No Old Navy Café, em St Germain, fazia ponto Arthur
Adamov, um franco-russo ligado ao Teatro do Absurdo que nem os franceses
conheciam. (Morreu de uma overdose de barbitúricos dez anos depois.)
Tempos
depois fiquei sabendo que Julio Cortázar frequentava o Old Navy. Gabriel García
Márquez, seu fã, o viu ali certa vez, escrevendo horas a fio, mas não ousou
interrompê-lo. O peruano Vargas Llosa, contou em Travessuras da Menina Má, que
costumava receber quentinhas pela porta dos fundos do restaurante México Lindo,
onde tinha um amigo na cozinha. Entrei muitas vezes no México Lindo, pela porta
da frente. Fico a imaginar, um futuro Prêmio Nobel de Literatura comendo os
restos do meu prato...