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domingo, 31 de março de 2024

O papel sujo dos principais veículos da mídia brasileira antes, durante e depois do golpe de 1964 e o alto preço que o jornal Última Hora pagou por não seguir a manada

 

Estadão e Folha: a vibração na mídia golpista


O conspirador sorridente na capa

Jornalisdmo-exaltação dos "influencers'' que ajudaram a destruir a democracia brasileira 

Correio da Manhã: a julgar pela capa, o golpe excitou a redação

Diário de Noticias exaltava o "fim da crise". Engano:
a crise apenas começava e duraria 21 anos.

O Dia acreditou na fake news da "ameaça comunista",


O Globo festejou as cassações

"Pornografia" conservadora e explícita na capa de O Cruzeiro.

Última Hora pagou caro por contestar o golpe.

por José Esmeraldo Gonçalves

Em 1964, o termo fake news não existia. Surgiria muito tempo depois durante a campanha eleitoral de Donald Trump contra Hillary Clinton. Em 2017 chegou ao pódio no dicionário Collins como "a palavra do ano". 

A extrema direita mundial faz amplo uso político e ideológico do recurso da mentira para disseminar informações e imagens falsas. No Brasil, utilizar fake news nas redes sociais é um dos pilares da estratégia de comunicação de Bolsonaro, dos jornalistas que o apoiam, dos políticos aliados e dos seus asseclas com intensa atuação na internet.

Se em 1964 a expressão ainda estava para ser criada, a falsificação dos fatos e das suas intepretações foi a tática da  direita brasileira que, a partir de 1963, intensificou uma milionária campanha de opinião pública contra o governo do presidente João Goulart. Livros, jornais, revistas, emissoras de rádio, telejornais e cine jornais descreviam as reformas de base propostas por Jango como algo que iria transformar a vida dos cidadãos em um inferno comunista. Segundo a imprensa, com as reformas agrária, fiscal, educacional, bancária e urbana os brasileiros poderiam perder terras, casas e apartamentos, emprego, renda e até igrejas. 

A ofensiva da direita tinha tanto alcance que não esquecia nem mesmo as "amplificadoras", um serviço de alto-falantes muito presente nos postes e praças de pequenas cidades do interior que não possuiam emissoras de rádio. Políticos e líderes empresariais locais alinhados com a conspiração recebiam panfletos institucionais produzidos no Rio de Janeiro pelo IPES (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), organizações financiadas por Washington, por multinacionais com atuação no Brasil, por empresários, fazendeiros, construtoras, pelo menos uma companhia aérea, bancos e dinheiro público desviado por governadores e prefeitos de estados e prefeituras engajados na preparação do golpe. Todos esses setores foram presenteados com privilégios e tiveram seus pleitos atendidos durante a ditadura. A propósito, os grandes conglomerados do segmento financeiro começaram a se formar na segunda metade dos anos 1960 quando o governo militar forçou pequenos bancos que prestavam serviço regional a venderem suas patentes a instituições de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. 

A imprensa que apoiou os militares não ficou de fora da "retribuição" pela participação na campanha que "justificou" o golpe. E, com a instalação da ditadura, permaneceu aliada da "revolução", como era intitulado o ataque fatal à democracia. A Folha de São Paulo foi o exemplo extremo desse apoio mesmo quando ficaram evidentes e denunciados pela imprensa internacional a prática da tortura e o assassinato de opositores. O jornal dos Frias contribuiu com o financiamento da famigerada OBAN (Operação Bandeirantes) que institucionalizou a tortura e o assassinato de opositores da ditadura. Ao longo dos anos, vários grupos de comunicação receberam grandes verbas publicitárias e até facilitação para importar equipamentos sem pagamento de impostos ou com financiamentos confortáveis. A história comprovou que a Folha cedeu viaturas para apoiar operações de caça mortal aos militantes que lutavam contra o regime e chegou, anos depois, no começo do governo Geisel, a receber a visita de Golbery do Couto e Silva que tinha a missão de indagar dos proprietários sobre o que precisavam para superar a concorrência, leia-se, o Estadão, que, na ocasião, embora tivesse apoiado o golpe, era menos subserviente. A TV Globo, não por acaso, foi inaugurada em 1965 e o grupo se tornou uma espécie de porta-voz não oficial dos militares. Uma trágica e exemplar lembrança foram os dramáticos depoimentos compulsórios de militantes "arrependidos" e, não raro, torturados, produzidos pela AERP (Assessoria de Relações Públicas), orgão que cuidava da comunicação da ditadura, e veiculados no horário nobre da Globo. 

A Manchete, que fez intensa cobertura das obras que formavam a face ufanista do "milagre econômico", foi beneficiada com centenas de páginas publicitárias e enxurrada de matérias pagas pelo governo. Mesmo antes do 'milagre", uma das edições especiais da revista publicadas com a cobertura do golpe foi gentilmente fortalecida por uma matéria paga de dezenas de páginas sobre a "pujança" do Estado da Guanabara então governado por um dos líderes do golpe, o governador Carlos Lacerda. É justo registrar que Adolpho Bloch, em certo momento, foi considerado persona non grata pelo núcleo duro dos militares. O motivo: seu apoio incondicional ao amigo Juscelino Kubitschek, cassado e exilado pela ditadura. Ao voltar ao Brasil, JK foi convidado por Adolpho a ocupar um gabinete especial na sede da Manchete, na Rua do Russell, onde permaneceu até 1976, quando faleceu em um suspeito acidente na Via Dutra. JK foi velado no hall do edifício da Bloch. Mas a Manchete soube restabelecer habilmente o contato com o governo federal. Oscar Bloch, com trânsito na área econômica do Planalto, tornou-se o "embaixador" do setor de publicidade da editora junto aos generais e tecnocratas da ditadura, ao mesmo tempo em que a vida voltou a seguir sem sobressaltos na boca do caixa do Banco do Brasil. 

Em outras evidências de que o longo braço da ditadura alcançou o setor corporativo, concorrentes incômodos e que tinham ligações com o governo anterior, como Panair e TV Excelsior, foram sumariamente eliminados. Aliás, muito se apurou na Comissão da Verdade e muito veio à tona sobre os métodos crueis da ditatura. Faltou, contudo, um levantamento rigoroso sobre a corrupção durante os anos de chumbo. Perseguições a empresas, como as citadas acima, concorrências dirigidas por militares, escândalos financeiros abafados, favorecimentos, desvios de verbas, superfaturamento e outros ítens faziam parte do vasto repertório de trambiques da ditadura. Para muitos, os "anos de chumbo" foram "anos de ouro". 

Há até um caso curioso. Nos anos 1970, quando os generais proibiram a importação de automóveis e outros produtos, sob o pretexto de incentivar a industria nacional, o decreto tinha uma exceção que fez a festa dos ricaços. Importados, principalmente Mercedes, além de carrões Chevrolet, Ford e modelos esportivos eram, embora em número limitado, vistos nas ruas do Rio, São Paulo e outras capitais. Como, apesar do decreto, rodavam alegremente? Simples: consulados e embaixadas podiam importar carros para uso próprio. Só que os 'ixpertos' logo descobrirm a brecha. Nunca foram instaladas aqui tantas representações de países pequenos, especialmente da África. Embaixadas e consulados sem muita visibilidade importavam os automóveis e os repassavam a empresários mediante generosas propinas. Com direito a um benefício extra: os veículos continuavam rodando com documentos diplomáticos e, assim, escapavam de eventuais multas e fiscalizações. Depois de um certo prazo estipulado pelo decreto, o automóvel de luxo podia ser normalmente vendido no mercado. O setor imobiliário também viveu seus dias ilegais de glória. Posturas municipais eram facilmente contornadas desde que os empreendedores fossem amigos da "revolução". Da mesma forma, a política ambiental não existia e o grande símbolo da destruição foi a Transamazônica e a ocupação desordenada da floresta por colonos financiados com verba pública. A curva de desmatamento e queimadas na Amazônia teve seu marco inicial patrocinado e acelerado pela ditadura. Já os inúmeros escândalos eram abafados na mídia pela censura ou até pela conivência de jornais e revistas. Ficou faltando expor e detalhar a roubalheirada da "redentora". 

Apesar de tudo o que sofreu, a democracia continua sob riscos. A ascensão da extrema direita potencializada pelo bolsonarismo fez com que parte da população e dos meios de comunicação perdessem o pudor e passassem a defender abertamente a volta da ditadura (que a Folha, aliás, chama de "ditabranda") e a implantação de um novo regime militar. O que a direita expressou em faixas durante manifestações foi levado à prática a partir do momento em que Lula ganhou as eleições. Documentos, testemunhos e gravações de áudio e vídeo revelam a agressiva preparação do golpe e o que seria seu gatilho: os ataques de 8 de janeiro.  Seis décadas depois de 1964, as bancadas golpistas eleitas em 2022 no rastro do neofascismo redivivo são fortes e conseguem, quase que semanalmente, aprovar no Congresso leis e dispositivos que fragilizam a democracia, apesar da resistência e vigilância da minoria de deputados e senadores progressistas. Nesse momento, clubes militares celebram a ditadura em almoços tão festivos quanto significativos. Alguns grupos de mídia parecem normalizar o risco sem temer o ctrl + c e ctrl + v de um dos mais longos e trágicos períodos da história do Brasil. 

Lula, contra a posição de muitos brasileiros que o apoiaram e de tantos que ficaram pelo caminho, decidiu ignorar a história.

Optou por "conciliar".

Conciliar é precisamente o verbo que explica a eterna fragilidade da democracia brasileira.