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quinta-feira, 20 de maio de 2021

Onde anda você, Silvinha Maconha? • Por Roberto Muggiati


Não sou saudosista, curvo-me à dinâmica do tempo. De repente o futuro acontece e vivo um presente intenso que logo vira matéria de memória. Com uma diferença: aos 20 anos, eu não valorizava cada segundo como valorizo hoje, aos quase 84. Uma coisa é certa: os anos 1950 foram divinos...

Foi ouvindo jazz numa tarde de domingo na Boate do Hotel Plaza que conheci Silvinha Maconha. Voltava para Curitiba de uma daquelas viagens boca-livre da época, o Congresso Nacional dos Jornalistas em Fortaleza. Oportunidade também de fazer turismo. Em Fortaleza, fiz um empolgante passeio de jangada e, no aristocrático Clube Náutico, dancei com a filha do governador Parsifal Barroso. No Recife, conheci a Praia da Boa Viagem e provei o sarapatel famoso do Buraco da Otília. Em Salvador fui à Lagoa do Abaeté e depois comi um peixe frito inesquecível numa birosca de sapê na praia de Itapoã. O Rio ficou para o fim de semana, antes de pegar o batente segunda à noite na Gazeta do Povo. Era setembro de 1959, havia algo no ar além dos aviões de carreira: a corrida espacial URSS vs EUA. No dia 14, a sonda Luna 2 tornava-se o primeiro objeto da Terra a atingir a Lua. O foguete foi esterilizado para não contaminar o querido satélite com bactérias terrestres – vejam só como nós, terráqueos éramos atenciosos, até os comunistas... No dia 20, domingo, fim de tarde, eu e dois amigos jornalistas da minha idade ocupávamos uma mesa estratégica no Bar do Hotel Plaza, em Copacabana. Aconteciam ali jam sessions que ficaram famosas, jovens músicos como os irmãos Castro Neves começavam a fazer o seu nome. O jazz era a trilha sonora da nossa geração, que pautava seu estilo de vida naquele dos beats.

Ainda não se falava em revolução sexual, mas ela nos aguardava ali na esquina. Eu já me via totalmente fora do esquema ancestral noiva virgem + diploma = casamento. Sonhava com uma paixão existencialista, amor e sexo no mesmo pacote. E foi assim que surgiu do nada, no bar do Plaza, a garota da hora, sacudindo a cabeça ao suingue do bebop. Estava a poucas mesas de distância, eu a vi, ela me viu, nossos olhares não se desgrudaram mais. Como eram longos aqueles improvisos de jazz... No primeiro intervalo, fui até ela e a convidei à nossa mesa. Ofereci do nosso uísque, éramos aqueles rapazes curitibanos de terno e gravata que bebiam com o litro de Scotch na mesa. A música nos impedia de conversar, era tudo o que queríamos. Saímos para tomar um ar, a tarde caía na Prado Júnior, a rua lavada por uma pancada prenunciando a primavera. 

– Para onde vamos? – tateei.

– Hotel Cardoso. Chame aquele táxi ali. 

O táxi pegou a Avenida Atlântica rumo ao Vidigal. Ainda em Copacabana, minha companheira de viagem abre intempestivamente a janela do táxi e saúda a Princesinha do Mar com um generoso jato de vômito. Bebendo a tarde toda de barriga vazia, o upgrade da cerveja para o uísque foi fatal. O Cardoso, vovô dos motéis cariocas, ficava no começo da Niemeyer, perto do local onde plantariam o Sheraton nos anos 70. Um hotelzinho modesto, três andares, sem elevador, muito distante da futura arquitetura de motel de ostentação brega que assolaria o Rio. Minha amiga encontrou no banheiro um pequeno tubo amarelinho de Kolynos e o esgotou escovando os dentes com os dedos. Existencialistas com toda razão, fizemos o que mandava o nosso coração.


Na volta, pediu que a deixasse na domingueira que ainda rolava na casa de Aníbal Machado, na Visconde de Pirajá. Não trocamos telefones, acho que ela nem ficou sabendo meu nome. E como foi que eu descobri quem ela era? Acho que alguém disse aos meus amigos curitibanos no bar do Plaza: “Aquela é a famosa Silvinha Maconha.” Com o tempo, fui sabendo mais. Ruy Castro, que fez a arqueologia daqueles tempos em Ela é carioca/Uma Enciclopédia de Ipanema, traçou um miniperfil da musa: 

“A própria Silvinha ‘Maconha’ (n. 1934) tinha esse nome não por fumar maconha (pelo menos na época, ninguém a via usar o produto), mas por parecer ainda mais ‘marginal’ que a média das moças do Arpoador. Era morena, usava óculos escuros de Marlon Brando em O selvagem e tinha uma cicatriz no queixo (caíra da garupa de uma moto.) O que a tornava diferente das outras era o fato de ser bem liberal a respeito de com quem ia para o banco do jipe ou do Chevrolet – um dos privilegiados, Jomico Azulay, sete anos mais moço do que ela, definiria sua noite com Silvinha como ‘o mundo antes e depois de Copérnico’. Mas era também querida e respeitada: escrevia contos, recitava Jacques Prévert  (‘Rappelle-toi, Barbara/ Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là...’) e era assídua às jam sessions do Beco das Garrafas. As amigas a viam como ‘mais livre’, só isso.”

Que pena, não vi o mundo antes e depois de Copérnico com Silvinha, mas guardo do episódio – talvez justamente por causa dos seus desacertos – uma bela lembrança.

Outro dia me veio à cabeça: “A Silvinha, com 87 anos, seguramente já tomou a segunda dose da vacina”. Onde anda você, Silvinha Maconha? Você bem que podia me aparecer para trocarmos figurinhas sobre aquela tarde de setembro que nem sei mais ao certo se aconteceu...