Repórter no período da ditadura, Carlos Chagas revela em seu novo livro traições na cúpula do regime militar a partir de textos e matérias suas publicadas na imprensa nacional
O jornalista é o historiador instantâneo. Muitas vezes um historiador privilegiado, “testemunha ocular da História” – como se proclamava o Repórter Esso. Carlos Chagas se fez jornalista aos 20 anos, em 1958, e assistiu de dentro às grandes transformações da política brasileira. Cobriu a campanha de Jânio Quadros, acompanhou sua breve e caótica presidência de oito meses, a tumultuada posse de Jango, com a experiência frustrada do parlamentarismo, a ascensão e queda da esquerda festiva e o avanço dos tanques sucateados que impuseram o regime de 31 de março – ou de 1º de abril, dia da mentira. O regime de exceção se fingia provisório, mas iria durar 21 longos anos.
Carlos Chagas nunca se restringiu à mera notícia. Espírito reflexivo, alma de pesquisador, apurou em todas as fontes para calçar de equilíbrio e imparcialidade seus aguçados comentários. Na introdução de seu novo livro A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe: 1964-1969 – A História Contada por Jornais e Jornalistas, ele diz: “As primeiras versões dos acontecimentos são as que menos se afastam da realidade. Porque, depois, vêm as biografias e os depoimentos, geralmente arrumando o que se passou de acordo com interesses e preferências de seus autores. E porque, mesmo errando, e muito, a imprensa transmite à opinião pública os fatos no momento em que se verificam, ainda a melhor forma de evitar deformações posteriores.”
Valendo-se de textos seus e de matérias publicadas na imprensa nacional – e de sua rica experiência pessoal – Chagas narra a evolução (ou involução) da ditadura em seus primeiros seis anos: a sanha autofágica de militares sedentos de poder. Sempre em destaque no jornal O Globo, Chagas ganharia a proximidade do marechal Costa e Silva: “Já ‘eleito’ pelo Congresso, apesar de deter o controle das Forças Armadas, ele ainda temia a possibilidade de Castello tirar-lhe o tapete.” Para evitar confrontos, Costa empreendeu uma volta ao mundo: Europa, Ásia e Estados Unidos. O Globo incumbiu Chagas de cobrir a viagem. Com a ordem peremptória do dr. Roberto Marinho: “Não se afaste do Costa e Silva. Fique nos mesmos hotéis que ele ficar, viaje nos mesmos voos, compareça aos mesmos restaurantes.” Em Washington, Chagas viu o marechal dar uma dura no ex-embaixador, Lincoln Gordon, um dos principais articuladores do golpe de 64: “Olha aqui, Mister, o senhor não se meta no meu governo. Pode se retirar.”
O jornalista passa a confiar no político. Vê Costa e Silva assinar contrariado em dezembro de 1968 o AI-5, golpe final na democracia. Em maio de 1969, assume a Secretaria de Imprensa da Presidência da República, esperançoso no projeto de constitucionalização que o marechal empreende, apoiado no gênio jurídico do vice-presidente Pedro Aleixo. Mas a linha dura prevalece, a saúde do velho marechal baqueia, uma junta militar assume e em 30 de outubro de 1969 o general Emilio Garrastazu Médici assume a Presidência. Relata Chagas:
“Naquele fim de semana começaram os boatos. Costa e Silva estava mal ou morrera? Tratava-se de um golpe de estado? Permaneci sábado (31 de agosto) e domingo no Palácio e estive em casa para apenas algumas horas de sono. Os telefones não paravam. Jornalistas daqui e do exterior queriam a informação que apenas no domingo conseguiria confirmar e anunciar: acometido de trombose cerebral, o presidente estava temporariamente impedido de chefiar o governo. Aquela demora em declarar o óbvio, contudo, jamais me levara a supor que se tramava um dos mais execráveis golpes na crônica da República: o impedimento de um presidente para obstar a constitucionalização, mantendo-se a ditadura em sua forma mais abjeta, a de uma Junta Militar. Semanas mais tarde, sem recuperar a voz e os movimentos do lado direito, mas lúcido, percebendo tudo o que se passava à sua volta, Costa e Silva ouviria do comandante Peixoto uma das mais significativas perguntas da história recente do país: ‘O senhor queria assinar a reabertura do Congresso e a emenda constitucional acabando com o AI-5?’ As lágrimas jorrariam do rosto daquele inválido e emotivo presidente da República, já então atropelado por uma Junta Militar, que lhe usurpara o poder e com a qual jamais concordara.”
Chagas registrou aquele momento trágico, que o marcou para sempre, no livro 113 Dias de Angústia, proibido pela censura em 1970: “Eu vi o sorvete cair da mão da criança no momento exato em que ela ia levá-lo à boca. A consciência de que viver é muito perigoso tornou-se muito mais forte. Concluí que a gente tem que estar sempre resistindo. Não há trégua. No início eu tinha ilusões, achava que tudo ia melhorar. Em vinte ou trinta anos, a situação seria outra. A mágoa é comprovar que a vida da maioria do nosso povo continua muito difícil.”
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