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domingo, 27 de novembro de 2016

Roberto Muggiati escreve: 1979, com Elis, em Montreux



Por ROBERTO MUGGIATI

O sucesso do filme Elis – repetindo aquele do musical – me leva a tirar do baú, com exclusividade para o Panis, as memórias do meu encontro com a inesquecível cantora no Festival de Jazz de Montreux de 1979.

Foram dias mágicos, lembro cada momento.

Diretor da revista Manchete, fechei mais uma edição naquela segunda-feira e segui para o Aeroporto do Galeão. Ia cobrir a Noite Brasileira em Montreux a convite da WEA. No check-in, uma algazarra monumental, por conta, é claro, do Hermeto. José Neto, responsável pela logística, despachava o arsenal de percussão do irmão famoso. De um arame esticado entre dois toscos postes de madeira pendiam panelas, caçarolas, frigideiras, especialmente “afinadas” pelo maestro — como se o palco dos festivais não oferecesse os mais sofisticados apetrechos profissionais... Ensaiei uma tímida conversa com o Bruxo, foi o começo de uma bela amizade. (Oito anos depois, no álbum Só não toca quem não quer, Hermeto dedicou-me a faixa Viagem.)

Na primeira escala, em Dacar (calor senegalesco não é mera figura de retórica), bati um papo com o saxofonista Nivaldo Ornelas, gente finíssima. Sobrevoando o Mar da Cantábria, entre a França e a Espanha, conversei com a vocalista da banda, Zabelê, casada com o baterista, Nenê. Na escala de Paris, o crítico Armando Aflalo mostrou-me sua matéria sobre os 20 anos da morte de Billie Holiday. Comprei um International Herald Tribune em que o crítico Michael Zwerin exaltava o gênio de Hermeto e tocava fanfarras para sua estréia europeia. (Zwerin tocou trombone nas gravações da Tuba Band de Miles Davis, precursora do Birth of the Cool.)

Depois de uma hora de estrada, entre montanhas verdejantes salpicadas de vaquinhas brancas, cheguei ao hotel em Montreux, joguei as malas no quarto e sai correndo para o Festival. Ainda atordoado pelo voo de 20 horas, eu me vi de repente em pleno ventre da baleia, debruçado sobre o palco onde o Weather Report tocava Birdland — Wayne, Zawinul, Pastorius, o resto é História...

Como a Noite Brasileira, na sexta-feira, 20 de julho de 1979, teve os ingressos esgotados, houve um espetáculo extra, à tarde. Nos dois shows, Elis precedeu Hermeto no palco, e não o contrário, como escreveu muita gente. Tenho certeza disso porque escrevi meu relato menos de 72 horas depois na Manchete. Elis “abriu” para Hermeto sem problemas. Não tinha frescuras de diva e aquele, afinal, era um festival basicamente instrumental. Elis estreava na WEA depois de 15 anos na Polygram e sabia que Montreux era uma vitrina fabulosa. Deu o melhor de si, com uma blusa de lamê violeta que deixava os braços à mostra, saia vermelha de dançarina flamenca, e uma orquídea lilás nos cabelos, lembrando Billie Holiday. Seu grupo era bastante jazzístico: o marido, César Camargo Mariano, aos teclados; Hélio Delmiro, guitarra; Luizão Maia, baixo; Paulinho Braga, bateria; Chico Batera, percussão. André Midani, presidente da WEA, deu suas impressões daquela Noite Brasileira no livro Música, ídolos e poder: Do vinil ao download (2008). Segundo ele, Elis “suava aos montes, estava pálida e ofegante, como que carregando o mundo nas costas.” Engatinhando nos fundos do palco, Midani socorreu Elis com um copo de água, que ela “bebeu de um jato e voltou ao microfone.”
Terminado o último show de Hermeto, Elis subiu ao palco para cantar com o Bruxo ao piano. Asa Branca, Corcovado e Garota de Ipanema (confiram no YouTube) são talvez os treze minutos mais intensos na história da MPB. Elis trocou sua fantasia de vamp por um vestidinho claro com estampas florais. Segundo os catastrofistas de plantão, Hermeto tentou derrubar Elis. Nada disso: seus acordes entortados e a polirritmia delirante só valorizaram o canto de Elis, àquela altura senhora de todas as artes e engenhos vocais. Ela acariciou várias vezes a alva juba leonina de Hermeto, trocaram abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim, em comunhão física e espiritual.

Elis teria dito: “E pensar que Ella Fitzgerald pisou nesse mesmo palco há apenas uma semana! Lembrei que sou filha de uma lavadeira, fiquei transtornada, queria morrer!” (Ella também era filha de lavadeira.) Insatisfeita com seu show, Elis fez Midani jurar que nunca lançaria aquelas gravações. Eu desconhecia o turbilhão de ideias e emoções por que passava Elis quando desci com ela para um tête-à-tête no Bar des Musiciens, onde o marido César jameava com os gringos.

A convite de Mazzola, produtor da WEA, tive esta oportunidade única, uma conversa informal com Elis, tomando champanhe, ela com o mesmo vestidinho singelo imortalizado nos clips com Hermeto. Falei horas, dei-lhe uma cópia do meu livro Rock: el grito y el mito, na versão da Siglo Veintiuno, editora de Borges e Cortazar. Na época, por um saxofone tenor Selmer eu estava à beira de jogar fora 25 anos de jornalismo. Estimulado pelas borbulhas, despejei sobre Elis — interlocutora paciente — todas as minhas dúvidas existenciais. Oito anos mais moça que eu, pareceu-me de uma tranqüilidade zen, totalmente em paz com a vida. No dia seguinte, sábado, ainda encontrei Elis, num almoço na casa de Claude Nobs, organizador do Festival de Montreux. Sob o sol do verão suíço, ela conversava no jardim com Al Jarreau, havia o projeto de reunir os dois num álbum.

Domingo cedo, vi Elis pela última vez no voo de Genebra a Paris, da frente do avião ela me deu um tchauzinho. No aeroporto Charles de Gaulle, nossos caminhos se separaram, ela foi sumindo aos poucos num imenso túnel de vidro que levava ao avião para Tóquio. Elis e Hermeto seguiram para um festival no Japão, eu voltei ao Rio para contar a história de Montreux.

Dois anos e meio depois — como o Brasil inteiro — fui surpreendido pela notícia de sua morte, aos 36 anos. Vi em casa pela TV o enterro no Cemitério do Morumbi, no Rio era feriado de São Sebastião, 20 de janeiro. Elis, Elis, por que nos abandonou? — pensei, lembrando sua serena presença naquela noite em Montreux. Vida estranha: eu pensava que o suicida era eu...