Mostrando postagens com marcador Muggiati e a experiência de 20 noites sem dormir. Revista Piauí. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Muggiati e a experiência de 20 noites sem dormir. Revista Piauí. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Questões hospitalares - VINTE NOITES SEM DORMIR - Jornalista de 85 anos transforma sua fratura de fêmur numa experiência de vida enriquecedora. Por ROBERTO MUGGIATI


Brazilian Capira. Lena e Roberto Muggiati à maneira do American Ghotic. Arte de Roberto Mendonça Muggiati sobre
foto de Cláudia Alves.
 
Muggiati no Hospital Miguel Couto. Como
no blues de Duke Ellington, "pedras na minha cama". Foto: Beatriz Suassuna


O texto de Roberto Muggiati, aqui reproduzido ("Meu fêmur, meu sono"),
está publicado na Revista Piauí,
edição de novembro de 2023, número 206.


"Para combater minha resistência à página em branco,
imprimi numa folha a4, repetida em quinze linhas, a frase
'O escritor escreve'. Foto de Cláudia Alves

A privação do sono é uma das piores torturas. Vemos nos filmes antigos mocinhos e durões com uma lâmpada esfregada na cara para revelar um segredo ou confessar uma falta. Resistem por algum tempo, mas acabam sempre cedendo.

Não há lugar mais barulhento e iluminado do que uma enfermaria de hospital. Deixe logo na entrada suas esperanças de um sono reparador: não dormirá nunca. Como seu organismo não é de ferro, você terá pequenos lapsos de cochilo – ultrarrápidos, embora pareçam durar uma eternidade. O que você faz então? Ao contrário do ditado, a invenção é que é a mãe da necessidade. E cada um inventa como pode. Mas vamos logo ao clássico quem-o quê-quando-onde et cetera.

No quarto de dormir no meio da noite quebrei o fêmur. Ou o fêmur quebrou sozinho. No começo eu nem sabia que era o fêmur. Acordei no chão, do lado da cama, estatelado como um saco de batatas podres. Não conseguia mover a perna direita, que doía muito. Gritei de dor e pânico, acudiu Lena, minha mulher. Com imenso esforço conseguimos colocar a perna – reta e rígida como se estivesse entalada – sobre meu catre de solteiro. 

Liguei para o 192, o Samu atendeu prontamente. Entreouvi a conversa da enfermeira-maqueira com a central. Ela ripostou: “Mas o Getúlio Vargas fica no Irajá! Estamos na Rua das Laranjeiras...” E, pouco depois, para mim: “Vamos levar o senhor para o Miguel Couto. Já estamos a caminho da sua casa.”

Estremeci ao ver como o meu destino podia ser desgovernado por um socorro inepto.

"Tive de ser transportado no ar, de mão em mão, por porteiros e faxineiros em fila indiana"

Com muita dificuldade me retiraram da colmeia de 60 m² que ocupo no primeiro andar do bloco de apartamentos dos fundos (“Mas é uma casa de boneca!”, exclamou meu personal de computador na sua primeira visita.) Tive de ser transportado no ar, de mão em mão, por porteiros e faxineiros em fila indiana ao longo dos corredores estreitados, tetos rebaixados, portas arredondadas e outros caprichos arquitetônicos da proprietária original. Ao som da sirene da ambulância eu ia vendo o céu azul perfeito daquele começo de manhã do 15 de fevereiro desfilar sobre minha cabeça – Rua das Laranjeiras, Cosme Velho, Lagoa, Hípica, Hipódromo da Gávea, com suas amendoeiras ainda floridas. Os pavilhões do Hospital Miguel Couto estão encaixados dentro dos muros do Hipódromo, depois da primeira curva oposta da pista de corridas. A ambulância encostou na entrada da emergência e a maca me conduziu até a Sala de Trauma onde Lena me acompanhou para o cadastro de triagem. Começou aí uma pequena odisseia que acabaria exigindo três viagens ao raio x para atender aos pedidos do médico.

Os cavalinhos correndo, e nós, cavalões, morrendo. Penso no poema de Manuel Bandeira, Rondó do Jockey Club, de 1936: “Os cavalinhos correndo,/E nós, cavalões, comendo…/Tua beleza, Esmeralda,/Acabou me enlouquecendo./Os cavalinhos correndo,/E nós, cavalões, comendo.../O sol tão claro lá fora/E em minhalma – anoitecendo!” 

Sua lembrança me levou de volta ao mesmo ponto geográfico onde, em tempos mais amenos, nos últimos anos do Rio como capital federal, eu assistia aos cavalos fazendo o cânter no paddock. Nada desse desvairado giro em que um maqueiro irresponsável me abandonou no corredor da tomografia, enquanto me chamavam para o raio x em outra ala. Fiz forfait. Quando me devolveram à Sala de Trauma, o médico berrou: “Sacanagem! Não fizeram o raio x, só a tomografia!” Isso não teria acontecido se avisassem à Lena que, como minha responsável, não só poderia, mas deveria me acompanhar ao longo dos exames. 

Levado de novo ao raio x, teria de voltar ainda outra vez para uma chapa de perfil que esqueceram de fazer. A essa altura eu era dominado por uma única sensação – a dor lancinante do fêmur quebrado e da perna imobilizada. Jogavam meu corpo da maca para o metal gelado da mesa do raio x e vice-versa sem a menor compaixão. Eu tinha entrado no hospital no começo da manhã, agora já passava das quatro horas. Não sentia fome, não tinha tomado sequer um copo d’água.

Estava no limbo, na ala conhecida como “amarelinha”, ainda na maca, aguardando um leito na enfermaria de ortopedia. Só então consegui que me aplicassem um remédio para aplacar a dor. A injeção subcutânea de Tramal na barriga me daria um enjoo épico: nas 24 horas seguintes vomitei tudo o que ingeria, engolindo às vezes de volta aquilo que acabava de vomitar. Já era noite quando me instalaram no leito 01 da enfermaria 203, que eu ocuparia durante meus vinte dias de hospital. 

"Um detalhe singular: dos vinte pacientes da enfermaria 203, eu era o único que não tinha sido vítima do automóvel"

Naquele cercadinho de 2m x 3m, me flagrei algumas vezes cabeceando, quase pegando no sono, mas logo despertava. Como na maluca descida de serra nos anos 60, no dkw do meu pai, em que me via cabeceando e acordando a cada curva da Estrada de Santos. E lembrei do “pescoção” – como chamávamos o longo mutirão para fechar as edições de fim de semana do jornal. Essas digressões foram varridas pelo vozeirão tonitruante do vizinho de enfermaria recitando a prosopopeia do seu acidente. Foi o único que me deu um cartão de visita, o nome esdrúxulo quase me levou a perguntar: “Oviran, gotas ou comprimidos?” – mas recolhi a piada, parecia um sujeito de maus bofes. Seu relato rolava em loopings: 

O maluco jogou o carro na contramão, não tinha nenhum carro parado na calçada, só uma caçamba de entulho cheia. Não é que ele mandou a caçamba quase um quarteirão adiante? O Miguel Couto é um grande hospital, vem gente do mundo inteiro aprender com seus médicos, mas meu dedão do pé direito gangrenou e tiveram de amputar... 

O maluco jogou o carro na contramão... 

Lamentava seus vícios – o cigarro, a cachaça, as mulheres – e prometia arrependimento eterno: “Agora sou de Deus, só Ele salva!” Foi um dos muitos que conheci no hospital capazes de resolver com extrema simplicidade o problema da religião. Era o caso dos evangélicos, até então eu não conhecera nenhum pessoalmente. “Só Deus salva”, e estamos conversados, era só pagar o dízimo de 30%. Muito diferente da profunda crise mística por que passei na adolescência quando li A Montanha dos Sete Patamares, a autobiografia do monge trapista Thomas Merton. Alguns destes “bíblias” eram casados com minhas cuidadoras – elas também crentes e pagantes fiéis do “pedágio da fé”. Descobri que esses pastores, que usavam terno no culto, adoravam gravatas. Para agradar suas mulheres, presenteei dois ou três com algumas peças do meu acervo. Tendo morado os anos elegantes na Europa, eu possuía uma coleção, das melhores grifes. Um deles, um diácono, profissão porteiro, não sabia dar nó, quem preparava sua gravata era a mulher. 

Um detalhe singular: dos vinte pacientes da enfermaria 203, eu era o único que não tinha sido vítima do automóvel. Três garotos tinham dormido na direção, um deles caiu com o carro no Jardim de Alah, no Leblon, e quase morreu afogado no canal. Outro foi atropelado pelas costas na calçada por uma moto desgovernada, empurrada por um ônibus. Há pouco tempo, num dossiê que postei no blog Panis Cum Ovum (Automorte: A Megapandemia), eu listei as vítimas famosas desde que o automóvel começou a circular em meados do século XIX. Entre elas, as duas princesas do século, Grace de Mônaco e Diana, o ator James Dean, o escritor Albert Camus, o pintor Jackson Pollock, os cantores Francisco Alves, Maysa, Gonzaguinha. A escritora Margaret Mitchell, ainda em meio às vendas colossais de E o Vento Levou, morreu atropelada por um taxista bêbado quando ia ao cinema. Na Califórnia, o cineasta alemão F. W. Murnau morreu aos 42 anos num Rolls-Royce dirigido por um criado filipino de 14 anos. Na Riviera Francesa, a dançarina Isadora Duncan, aos 50 anos, teve o pescoço quebrado quando sua echarpe se enroscou na roda de um carro esporte. As estatísticas são assustadoras: a cada 24 segundos o automóvel mata uma pessoa sobre a face da Terra (a faixa etária mais atingida está entre 5 e 29 anos).

 "Não me surpreenderia se organizassem competições de “comidinha de hospital”, nos moldes do Comida di Buteco". 

A hospitalização revolucionou minha vida social. Conhecido na Manchete como O Eremita, vivi os últimos anos praticamente trancado, fazendo traduções, matérias jornalísticas ou anotando minhas memórias no blog Panis Cum Ovum. No Miguel Couto tive contato compulsório com centenas de pessoas: médicos, enfermeiras, pacientes e o que mais aparecesse. No meio da madrugada acendiam-se todas as luzes e adentravam ruidosamente os garis (e as garis) hospitalares da Comlurb, lépidos e fagueiros: ao abrigo das balas perdidas da rua, ganhavam ainda uma taxa de insalubridade. As baterias de led no teto agrediam meus olhos, mais vulneráveis à luminosidade depois da cirurgia de catarata.

Um exército de enfermeiras trocava nossas fraldas e nos dava banho. A maioria era de bravas mulheres negras que ganhavam uma miséria e moravam na periferia, a horas de viagem do hospital. Com o marido desempregado, encarcerado ou sumido, garantem a sobrevivência dos filhos.

Não posso esquecer o pessoal da alimentação. Nos hospitais cariocas entopem você de comida, nada menos do que seis refeições: café da manhã, colação (palavra do tempo das minhas avós), almoço, merenda, jantar e ceia. A farra começa às sete da manhã e termina às dez da noite. Cada enfermaria e uti tem a sua dietista, que leva em conta as menores idiossincrasias dos pacientes. Zelosas do seu ofício, as dietistas fiscalizam quem não está se alimentando devidamente. Não me surpreenderia se organizassem competições de “comidinha de hospital”, nos moldes do Comida di Buteco.  

Toda aquela fartura começou a me apavorar. Atado ao leito, não tinha como processar o que comia – se comesse tudo o que me serviam. Passei a evitar alimentos sólidos e preferir os suplementos, iogurtes, pudins e sucos. Impossibilitado de ir ao vaso – e sequer de usar uma “comadre” – não conseguia defecar na horizontal. Era algo que contrariava a lei da gravidade. Só ao voltar para casa, valendo-me de um poderoso laxante, depois de uma noite inteira de esforços insanos, consegui normalizar aos poucos as funções intestinais.

"A última noite foi inesquecível: acionei o controle para erguer a cabeceira do leito, ele escapou da minha mão e eu me vi guindado às alturas"

Mais où sont mes madeleines d’antan? [Mas onde estão minhas madeleines de antigamente?] Todo tipo de pragas havia se abatido sobre mim, mas eu não imaginava aquela que se deflagrou justo na minha volta para casa. Ouvira falar da Abolição do Paladar como um dos efeitos colaterais da Covid, mas não sabia que era um flagelo tão terrível, no meu caso, decorrente da anestesia e do excesso de remédios. Já nos últimos dias de hospital eu sentira alguns sinais truncados em meu apetite. No primeiro café da manhã doméstico, pedi que me servissem madeleines. Mordi a primeira e refuguei, o café tinha gosto de água suja. Quando perdi totalmente o sabor, uma batata frita parecia um pedaço de graveto. O suco de um limão-taiti inteiro, sem açúcar, doía de tanta doçura. Aquele inferno gustativo durou quase três semanas e as pessoas achavam que eu estava de frescura.

Minha fratura aconteceu no pior momento possível, na quarta-feira anterior ao Carnaval. Tudo parou. Minha cirurgia só foi marcada para a sexta-feira após as Cinzas, e acabou cancelada porque não havia bolsa disponível com meu sangue – um dos mais banais, o Rh negativo. Só fui operado na terça-feira, o último dia de fevereiro. A cirurgia durou uma hora e, devo reconhecer, foi um sucesso. O Miguel Couto é uma referência e um milagre da eficácia em traumas ortopédicos. Com o humor que ainda me restava o batizei de Couto D’Or. Uma semana depois eu deixava o hospital. A última noite foi inesquecível: acionei o controle para erguer a cabeceira do leito, ele escapou da minha mão e eu me vi guindado às alturas, com a ameaça de ser catapultado para fora da cama. Socorreu-me Sônia, acompanhante de um paciente vizinho. Minha irmã a contratou para ser minha cuidadora na volta à casa. Estou devendo a Sônia um almoço no restaurante Mirante Rocinha, que, garantiu ela, “é show, dá match”.

Minha reação inicial ao acidente foi de revolta. O que fizera eu para merecer aquele castigo? O ano começou com uma crise de depressão braba da Lena. Na segunda-feira chuvosa de 9 de janeiro, eu a internei na UPA de Botafogo, um fiapo de gente com menos de 35 kg. As tevês transmitiam ininterruptamente imagens tétricas da tentativa de golpe no domingo, em Brasília. Na sexta-feira 13 a transferiram para o Rocha Maia, um hospital eficiente e tranquilo, ela saiu de lá com 8 kg a mais. Ia visitá-la quase todo dia, feliz por ver que havia saído do buraco. Sempre tive o hábito de caminhar, pela necessidade física e também filosófica, à maneira de Rousseau. Até 2020, morando havia 37 anos em Botafogo, caminhei pelas planuras da Paróquia de São João Batista da Lagoa. Ao mudar para o Baixo Glicério, tornei-me um flâneur das ladeiras escarpadas e escadarias de Laranjeiras. Vangloriei-me das novas façanhas numa postagem intitulada Tomando caipivodca e lendo P. G. Wodehouse na Montanha Mágica de Laranjeiras num momento de crise aos 85 anos: só eu... Acho que provoquei a sorte e a velha húbris voltou a me assolar – o dicionário define o conceito, da Grécia antiga, como confiança excessiva, orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência, que acaba com frequência punida pelos deuses.

Só depois que me informei melhor a respeito do fêmur, cheguei à conclusão de que foi ele o vilão de toda aquela história. É o osso maior e mais volumoso do corpo humano, suporta uma pressão de 1 230 kg por cm² e, num homem de 1,80 m (meu caso), chega a medir 50 cm. Nas ocorrências de fratura do fêmur, o laudo apontava como causa “queda da mesma altura”. Eram inumeráveis as fraturas espontâneas do fêmur. 

O fêmur também mata. Enquanto eu escrevia, a tevê noticiava a morte, aos 78 anos, da cantora Cynara, que formava com as irmãs Cyva, Cylene e Cybele o Quarteto em Cy, criado em 1964. Internada para uma cirurgia de fratura do fêmur, morreu de insuficiência respiratória. Com Cybele, Cynara defendeu sob vaias no Maracanãzinho a canção Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, no polêmico Festival Internacional da Canção de 1968.

Vi na internet a notícia de um idoso que encontrou fechada uma oficina em Registro, no interior de São Paulo, e foi perguntar para o morador vizinho a que horas o local abriria. Ignorado, o homem, de 82 anos, questionou: “Você está surdo?” Seu interlocutor o agrediu a socos e chutes: “Vou te matar, seu velho nojento!” Jogado sobre um monte de pneus, o idoso quebrou o fêmur e morreu.

Em agosto morreu no Rio de Janeiro Marília Carvalho, de 81 anos, em consequência da fratura do fêmur e da bacia ao ser empurrada no chão, no bairro da Tijuca, por um doente mental.

"Foi por puro instinto de preservação que me agarrei às sessões de fisioterapia, por mais dolorosas que fossem"

Uma das cenas mais impressionantes do cinema é a briga dos macacos em 2001: Uma Odisseia no Espaço, usando como tacapes fêmures achados em ossadas. Kubrick armou a imagem genial – uma elipse de zilhões de anos-luz – em que um fêmur arremessado ao Céu se transforma numa nave espacial deslizando rumo a uma estação lunar, ao som do Danúbio Azul. Cruzado com uma tíbia debaixo da caveira, o fêmur é o emblema da bandeira dos piratas. Os corsários voltaram com força total nos últimos anos graças à série de filmes e parques temáticos da Walt Disney Piratas do Caribe. Nos devaneios desencadeados pelo desconforto da posição rígida na cama e pela impossibilidade de dormir, pensei em minha filha Natasha, que mora na Alemanha há sete anos. Brincando o Carnaval carioca com amigos, ela costumava me telefonar a altas horas: “Pai, cante uma daquelas da antiga!” Eu conhecia muitas – da odalisca, do gago, do bebum, da balzaquiana –, mas geralmente atacava com esta marchinha de 1947:

Eu sou o pirata da perna de pau/Do olho de vidro, da cara de mau/Eu sou o pirata da perna de pau/Do olho de vidro, da cara de mau/Minha galera/Dos verdes mares não teme o tufão/Minha galera/Só tem garotas na guarnição/Por isso se outro pirata/Tenta a abordagem/Eu pego o facão/E grito do alto da popa:/“Opa! Homem não!”

Era um sucesso de Nuno Roland, uma das vozes de ouro da Era do Rádio. Várias vezes fui vê-lo nas matinês de domingo do Cine Avenida, em Curitiba. Anos depois, Nuno Roland, diabético, feriu o pé, que gangrenou, e levou à amputação da perna. Morreu sem tempo sequer de botar a perna de pau...

Para terminar com o fêmur, fiz em sua homenagem um daqueles meus haicais safados, parodiando a exaltação dos ruralistas ao agro: O fêmur é fálico/O fêmur é flibusteiro/O fêmur é pop.

Viver é muito perigoso, já dizia o velho Rosa. Ainda bem que não me aprofundei sobre minha fratura, a do cólon do fêmur. As estatísticas são terríveis. Ao contrário das outras, ela oferece um quadro bem mais grave e complicado. Não basta imobilizar o osso para curá-la. O tratamento é feito através de cirurgia, com a colocação de placas, parafusos ou próteses metálicas, e a recuperação completa é lenta. Muitos pacientes não conseguem voltar a andar e se tornam dependentes de ajuda. Sua imobilização crônica costuma provocar complicações como embolia pulmonar, trombose venosa profunda, úlceras da pele, pneumonia e infecções urinárias. O índice de transtornos graves a curto e médio prazo pode elevar a mortalidade durante o primeiro ano a até 20%. 

Foi por puro instinto de preservação que me agarrei às sessões de fisioterapia, por mais dolorosas que fossem. Tive a sorte de cair nos braços de uma terapeuta excepcional, Danielle Aguiar. Com 23 anos de prática, alia a eficiência profissional a um forte espírito de compaixão. Dani sabe exatamente como tratar cada paciente. No meu caso, trabalhou alternadamente a musculatura, a postura e o equilíbrio. Ao fim de quatro meses sob seus cuidados, voltei a andar como antes. 

No dia 27 de abril, na terceira revisão no Miguel Couto, recebi alta. Era a véspera dos 45 anos de meu casamento com Lena, resolvi fazer algum tipo de comemoração. No playground do condomínio existe uma casinha de madeira que lembra vagamente a casa da famosa tela American Gothic (1930), de Grant Wood. Numa viagem pelo Centro-Oeste americano, ele viu uma casa em estilo gótico rural e resolveu pintar o tipo de pessoa que poderia morar nela. Retratou, com a casa ao fundo, um fazendeiro segurando uma forquilha ao lado da filha, que veste um avental. Resolvi parodiar a tela. Com o entusiasmo dos tempos em que produzia fotos na revista Manchete, juntei as indumentárias mais adequadas que tínhamos em nosso limitado guarda-roupa. Lena e eu posamos na casinha do playground e nossa cuidadora, Cláudia Alves, nos fotografou com seu celular. 

Mandei as fotos para meu filho, que mora em Edimburgo e é chegado às artes gráficas. Ele já conhecia o American Gothic de uma visita ao Art Institute of Chicago. Nasceu assim Brazilian Caipira. Um detalhe: no seu Photoshop, não usou o camafeu da tela original no pescoço da moça, respeitou a improvisação que eu mesmo fiz, com um pedaço de papelão recortado e filigranas desenhadas com liquid paper. Penduramos nosso quadrinho comemorativo das Bodas de Rubi num lugar de honra da sala de estar.

As vinte noites que passei sem dormir no Miguel Couto eu usei para “escrever” na minha cabeça. Logo me dei conta de que estava compondo as palavras no vazio. Como quase todo mundo, eu sempre escrevera usando alguma ferramenta: um lápis ou caneta, nas primeiras redações infantis; aos 12 anos já tinha minha máquina de escrever portátil. Hoje, se pertencesse à tribo dos whatsappers, poderia gravar minhas impressões num celular, mas não era o caso. Em casa, continuei atrelado a uma cama hospitalar. Lembrei da restrição que eu fazia a Kafka em sua frase de abertura de A Metamorfose: “Ao acordar de sonhos inquietos certa manhã, Gregor Samsa se viu transformado na sua cama numa criatura horrenda.”  Eu implicava com “na sua cama”, achava redundante – afinal, onde é que um cidadão acorda toda manhã? Agora eu abarcava aquele in seinem Bett com toda a concretude do mísero retângulo que seria minha prisão por mais de dois meses, até que juntasse forças para escapar à letargia pegajosa do leito, uma atração fatal que eu associava ao Aspiro ao Grande Labirinto, o livro de Hélio Oiticica. Eu me apegara de tal modo à cama que as escaras e feridas do longo contato com o colchão eram as escamas da “criatura horrenda” de Kafka.

Um blues de Duke Ellington ilustrava também admiravelmente minha situação, Rocks in My Bed: My heart is heavy as lead/because the blues has done spread/rocks in my bed./Of all the people I see/why do they pick on poor me/and put rocks in my bed?/All night long I weep/so how can I sleep/with rocks in my bed [Meu coração está pesado como chumbo/porque a deprê espalhou/pedras na minha cama./De toda essa gente que vejo por aí/e foram escolher logo a mim, esse pobre coitado/para despejar pedras na minha cama?/A noite toda eu choro/então como posso dormir/sobre as pedras espalhadas na minha cama]. Passei ao todo 68 noites e dias carregando aquela cama como um caracol carrega sua concha. Sem alternativa, concentrei-me em escrever “além das nuvens”, evocando um dos últimos filmes de Antonioni. Voltei ao teclado ainda com desconforto e dores na perna. Para combater minha resistência à página em branco, imprimi numa folha a4, repetida em quinze linhas, a frase “O escritor escreve”. Percebi então que tinha muita coisa na cabeça e uma voracidade desmesurada para colocar tudo no papel, sem esquecer a minha mania de abrir parênteses e me entregar a divagações (Lena me apelidou de Doutor Divago...).

As muitas frases que compusera na minha cabeça equivaliam às alternate takes dos primeiros lps de jazz. Eram as tentativas dentre as quais apenas uma, a master take, seria lançada no disco original. De certo modo, derrubavam o mito da livre improvisação e mostravam que existia na cabeça do jazzista um desígnio formal prévio que fazia dele uma espécie de “compositor instantâneo”. Nas nove takes que o pianista Bill Evans gravou do tema de Luiz Eça The Dolphin, as diferenças entre os improvisos são praticamente imperceptíveis.

"Recuperei também o prazer da escrita e retomei projetos que havia deixado de lado: minha autobiografia A Vida É uma Reportagem"

Esse mecanismo se repetia em mim: havia na minha cabeça uma “matriz” programada para descrever este ou aquele sentimento ou situação. Lembro como o mestre do Nouveau Roman, Alain Robbe-Grillet, escritor frio e cerebral, abriu as comportas da emoção ao narrar um acidente aéreo do qual escapara com a mulher em 1961. Derramou lágrimas de crocodilo ao lembrar a queima, na bagagem, de um bracelete que dera à mulher para comemorar os dez anos do seu encontro casual num trem do Expresso do Oriente, em Istambul. 

Depois de alguns dias de trabalho, cheguei a um copião que era uma verdadeira colcha de retalhos. Comecei então a eliminar impiedosamente trechos inteiros que considerava inúteis. Depois, operei cortes meticulosos e cirúrgicos na escrita. Apelei para a Teoria do Iceberg do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” 

A fratura do fêmur foi um abalo sísmico, um divisor de águas, uma cesura epistemológica na minha vida. Acredito que consegui reconstituí-la com objetividade nesta narrativa, sem abrir mão do emocional. Recuperei também o prazer da escrita e retomei projetos que havia deixado de lado: minha autobiografia A Vida É uma Reportagem, o romance noir Mistério na Glicério, o romance-da-praia Zen & Corn Flakes e o romance-da-Serra Jardins de Pedra.

A autobiografia, além da trajetória pessoal, detalha a profissional: setenta anos de carreira, do começo na Gazeta do Povo de Curitiba, passando pelo Centro de Formação de Jornalistas de Paris (1960-62), pelo Serviço Brasileiro da bbc de Londres (1962-65), de volta ao Brasil para 35 anos de Editora Bloch no Rio de Janeiro – fui o editor da revista Manchete que mais tempo ficou no cargo –, além de uma temporada na equipe inicial de Veja, nos anos cruciais de 1968-69. E, ainda, os profícuos anos de free lancer no pós-falência da Manchete, a partir de 2000. Com direito a revelações exclusivas sobre os bastidores do jornalismo brasileiro na segunda metade do século xx. 

Tudo isso sem horários, prazos ou qualquer angústia de obrigatoriedade. Misturado ao lazer: cinema, particularmente o filme noir; jazz, em especial o bebop; e os escritores que sempre me acompanharam – o Bardo e a Bíblia, o Trio do Século (Kafka, Joyce, Proust), o Bruxo (do Cosme Velho) e o Vampiro (de Curitiba), Rosa, Drummond, Bandeira, Clarice; Fitzgerald, Hemingway, John Fante, Cheever & Carver, Conrad, Simenon, Patricia Highsmith, Dylan Thomas, o Svevo de Zeno. E Salinger, o único – além de Albertine Sarrazin (O Astrágalo) – que faz uma referência ortopédica específica num título, no conto Uncle Wiggily in Connecticut – uncle, tio, soa como ankle, tornozelo, que a heroína torce ao correr atrás de um ônibus com o namorado. Todas essas predileções atuam, ainda que inconscientemente, como influências no meu processo de escrita. 

Sinto hoje como se estivesse descobrindo pela primeira vez o ato de escrever. Não como um ofício, um apostolado, ou uma missão, mas como uma atividade lúdica.

Agrada-me muito a expressão de Boris Vian para a passagem do tempo, o lento e silencioso rolar da “espuma dos dias”. E escolho como fecho uma frase da Baronesa, Isak Dinesen (cujo sobrenome batizou o asteroide 3318 Blixen): 

“A Vida e a Morte são duas urnas fechadas, cada uma delas contendo a chave que abre a outra”.