por José Esmeraldo Gonçalves (especial para a Contigo!) (*)
Foi há 20 anos. Verão de 1995, mais precisamente, dia 14
de janeiro. Ao fim de um show no palco da casa de espetáculos Reggae Night, em
Santos (SP), a banda Legião Urbana desplugou os instrumentos do que seria seu
último concerto de rock.
Na plateia, ninguém sequer imaginou que fosse o fim. Se
avisado, o espectador que acertou uma lata de cerveja na cabeça de Renato Russo
(1960-1996) talvez tivesse poupado o vocalista naquela noite. Provavelmente apenas
um dos integrantes da banda, o guitarrista Dado
Villa-Lobos, 49, tenha intuído definitivamente, após o último acorde, que
não dava mais para fazer shows ao vivo. O grupo vinha de uma longa turnê, estava
exausto, embora impulsionado pela animação da plateia santista, que gritava o
nome da Legião. O contraste no clima da apresentação era a apatia do vocalista.
Quando foi alvejado, Renato protestou, parou de cantar e passou a andar pelo
palco, antes de se deitar no tablado. “Não demorou para que nos perdêssemos
completamente devido à ausência de uma voz que nos guiasse”, recorda Dado que,
em um raro vídeo desse show, aparece tentando comandar o grupo - além do
baterista Marcelo Bonfá, 50, estava no palco a Banda Tralha, como apoio, com os
músicos Gian Fabra 55, Fred Nascimento, 51 e Carlos Trilha, 45 – com um “ar
assustado”, segundo sua própria descrição. Com o plateia já impaciente, Renato
voltou cambaleante mas inspirado, fez discurso, reconquistou o público e levou
a banda a concluir o show. Ao final, incidente à parte, os fãs deliravam. Tudo
deve ter parecido quase normal. Mas não para a Legião que, nas semanas
seguintes, passou a recusar todos os convites para apresentações ao vivo,
incluindo a participação em uma noite especial no Hollywood Rock, um dos mais
badalados festivais da época. O grupo preferia não correr o risco de assinar
contratos e não poder cumpri-los. Eles voltariam a se reunir, em estúdio, um
ano depois, para a gravação de “A Tempestade”, o último álbum. Aquele concerto em
Santos entrou para a história como o sinal mais crítico do drama interno que o
grupo vivia desde que o líder da banda, Renato Russo, recebera um diagnóstico de HIV positivo.
“Ele, naturalmente, ficou mais ciclotímico, com altos e baixos, tinha momentos
em que se drogava muito, bebia muito”, diz Dado. Entre o diagnóstico e a morte
do vocalista, passaram-se seis anos. A quem se surpreende com o fato de o grupo
ter se mantido vivo em meio a uma inimaginável pressão emocional, Dado justifica:
“Depois do “Quatro Estações”, lançado em 1989, a Legião se consolidou como uma
entidade com vida própria. Estava ali a instituição. Foi logo depois da turnê
de lançamento desse disco que Renato Russo descobriu-se doente. Criou-se uma
questão que, na minha cabeça, foi definitiva. Era clara a necessidade de se
manter o grupo independentemente do que fosse acontecer. A Legião devia
permanecer ativa, o Renato ocupado”, recorda Dado. O sentimento do grupo era um
só: haviam chegado juntos até ali, atravessariam juntos a última ponte. “Naquele
período, a gente gravou os LPs “Cinco”, “O Descobrimento do Brasil” e “A
Tempestade”. E o Renato gravou dois discos solo”, lembra Dado que, às vésperas
de completar 50 anos, que fará em junho, lança o livro “Dado Villa-Lobos,
memórias de um legionário” (Mauad Editora), escrito na primeira pessoa, em
parceria com os historiadores e amigos Felipe Demier e Romulo Mattos.
Dado recebeu a Contigo! em seu estúdio no bairro do
Horto, na Zona Sul do Rio de Janeiro, montado em uma casa tombada, de 1894, que
ele adaptou internamente. É onde passa a maior parte do seu dia. O mesmo espaço
é o cenário do programa “Estúdio do Dado”, do canal por assinatura Bis, no qual
o guitarrista recebe amigos compositores que mostram suas músicas preferidas.
Perto do estúdio, há um campo de futebol onde o ex-Legião costuma jogar uma
pelada com os amigos. “A ideia do livro surgiu, na verdade, durante uma dessas
peladas. Dois anos atrás, o Felipe Demier, fã da Legião Urbana, perguntou por
que eu não escrevia minhas memórias. Foi algo que me fez pensar. Ao mesmo
tempo, eu via que a história da banda estava se dissipando através de
informações de terceiros que, de repente, não eram adequadas. Resolvi colocar
tudo a limpo”, diz Dado, para quem revisitar a própria história valeu como um
balanço de uma trajetória de vida intensa e ligada à Legião. Por
coincidência, exatamente ao virar cinquentão. “Essa questão da idade começa a
me perturbar um pouco fisicamente. Tenho uma tendinite aqui há meses (risos).
Os 50 anos são uma idade redonda, um marco, o que significa que já entrei no
segundo tempo. Eu faço psicoterapia para descobrir quem eu sou e a idade entra
na pauta. Quero manter o espírito alerta, sempre, um corpo que funcione.
Continuo jogando futebol mas não com a frequência de antigamente. Pratico uma
hora e meia de ioga diariamente e faço ciclismo”, conta. Para ele, gravar
centenas de horas de depoimentos para o livro e rever fotos e fatos da carreira
valeram como uma terapia extra. “Não só repensar a banda, mas a minha infância,
viagens, a chegada em Brasília, os primeiros contatos com a geração que
formaria depois a Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude e até os dias de
hoje. À medida em que ia colocando as coisas no papel passei a me entender mais
e ver, de uma perspectiva de hoje, o que fui. E a partir daí sigo a vida com
mais tranquilidade”, avalia com a convicção de quem vira uma página que
permanecia aberta.
Tranquilidade talvez seja, a propósito, uma palavra-chave na
vida e carreira de Dado Villa-Lobos. Provavelmente, o traço da sua
personalidade que explica a persistência com que lidou com a própria
trajetória. “O trabalho na Legião tinha muitos momentos mágicos, a criação, a
definição das linhas melódicas. Eram os melhores momentos. Agora, eu também
acho que tive um papel de contrapeso, de equilibrar as demandas, negociar os
primeiros contratos, ir atrás de advogados e tentar um patamar mais estável
para a banda”, conta Dado, admitindo que ter um pé na realidade foi importante
nessa fase. Já do ponto de vista artístico, o desafio era fazer as gravadoras
entenderem a linguagem musical da Legião. “Não éramos uma banda para divertir,
mas para alcançar a cabeça das pessoas. Tínhamos o nosso som, a nossa energia,
aquele âmago não poderia ser diferente. O Renato tinha isso muito claro. E essa
marca está na primeira frase do primeiro LP que gravamos: “Tire
suas mãos de mim/ Eu não pertenço a você/ Não é me dominando assim que vc vai me
entender”. .. (da canção “Será”).
Dado avalia que 1990 foi o ano em que a banda alcançou
seu auge. O LP “Quatro Estações” batia a marca de 730 mil cópias vendidas em
menos de um ano. Renato Russo estava na capa da Veja como o novo “rei do rock”.
Paradoxalmente, foi o ano em que tudo começou a terminar. Renato, levado pelo
alcoolismo, havia acabado de sair de uma clínica de recuperação. Além disso,
segundo Dado, o vocalista temia estar contaminado pelo vírus da aids e, por
isso, os médicos pediram um exame de sangue. “Eu estava junto quando nosso
empresário, o Rafael Borges, foi pegar o resultado”, relembra. Mais tarde, o
vocalista revelou a amigos que foi contaminado pelo namorado, o americano Scott
Hickmon, já falecido, que se relacionara com um paciente terminal de aids. Em
um trecho do livro, Dado conta que foi visitar Renato e que conversaram sobre o
assunto. No papo, depois da introdução tímida – “bom, sua condição é essa, né”?
– Dado, que teve sua diabetes diagnosticada aos 11 anos e, desde então, a
controla com insulina, lembrou ao amigo, em uma tentativa de quebrar a tensão
do momento, que também tinha uma “condição instável”, embora sem a mesma
gravidade. “Cara, estamos nessa condição, então vamos nessa”, disse Dado. A
resposta de Renato veio com uma dose de humor resistente. “Somos os dois
“éticos” da banda, você diabético e eu aidético”, disse o vocalista, rindo.
Dias difíceis viriam, mas a banda se apegou à tarefa de produzir o disco que
Dado aponta como o mais difícil da carreira e que, naquelas circunstâncias,
teria que superar o mega sucesso do antológico “Quatro Estações”. O doença de
Renato Russo foi mantida em sigilo. Eventuais internações não chamavam tanta
atenção e eram atribuídas ao alcoolismo e às drogas usuais na vida do
vocalista. A Legião vivia seu drama silencioso entre as quatro paredes do
estúdio. “A criação acontecendo com intensidade e aquela atmosfera predominando
no ambiente. As canções todas eram carregadas pelo momento, pela despedida”,
conta Dado, admitindo que tudo isso ”bateu” no último disco, como ficou
evidente em canções como “A Via Láctea”, na qual Renato clama sobre a “febre
que não passa” e canta “a tristeza não é passageira”. Àquela altura, começavam
a circular rumores de que o vocalista da Legião seria soropositivo. No disco, a
voz dele sinaliza a fraqueza, mas sua performance foi avaliada pelo críticos,
de um modo geral, com respeito ao seu talento. Dado relembra nas suas memórias
o último dia em que viu o amigo, em outubro de 1996. “Quando eu entrei no
quarto, vi um corpo esquálido como o de um prisioneiro judeu no holocausto, em
uma cama de hospital e sob lençóis brancos. Eu fiquei em estado de choque. Ele
se virou e o médico lhe perguntou, apontando para mim: “Renato, quem é esse
cara aí?” E ele respondeu, antes de se virar de bruços novamente: ´’É o
guitarrista da minha banda”. Eu não aguentei: entrei no banheiro e comecei a
chorar”. Renato morreu três dias depois. Para Dado, foi um momento de imensa
tristeza. Ele confessa que se sentia exaurido. Mas, passado o choque e os
tributos a Renato Russo e à Legião, ele e o baterista Marcelo Bonfá descartaram
em uma coletiva qualquer possibilidade de a Legião seguir em frente sem Renato
Russo. Era a hora de encarar uma nova etapa. “Interessante é que, ainda dentro
da Legião, vendo que aquilo já estava de um jeito, procurei fazer outras coisas,
buscar novidades. Abri uma loja no Leblon, a Rock It, criei um selo, fui tocar
com outras pessoas, buscar uma renovação. Procurei manter o espírito olhando
para a frente”, diz, sem negar que a Legião está profundam ente ligada à sua
vida e carreira. Foi durante uma apresentação da banda, no Napalm, em 1983, em
São Paulo, que ele conheceu a designer Fernanda, 57. Autora do projeto gráfico
do primeiro LP da Legião, ele foi empresária do grupo até 1986. Dado e Fernanda
estão casados desde então e têm dois filhos: Nicolau, 27 e a Miranda, 25. Nenhum
dos dois optou pela carreira musical. “É, nenhum foi pra música. Miranda é
estilista. Nicolau estudou cinema na PUC mas hoje é um grande jogador de
pôquer. Profissionalizou-se há cerca de três anos. Participa direto de
torneios, já venceu alguns. Ele acabou de chegar de Madri e seguirá para Las
Vegas onde participará do mundial. Foi surpreendente a escolha, mas vi que para
ele era sério”, diz Dado, que foi pai cedo, ainda aos 22 anos. “Era o auge da
banda, isso nos sacrificou um pouco, sim. Viajávamos muito, Fernanda ficava, eu
ia. Mas tentava estar presente ao máximo. Eles moram conosco até hoje. Não são
casados. Não tenho perspectiva imediata de ser avõ, mas daqui a pouco...
(risos). A nossa relação com eles é ótima. A adolescência era aquele período
conturbado normal, muito embate, mas o tempo reaproxima. São meus amigos,
viajamos juntos, temos um diálogo de adultos. Eles me cobram certas coisas, eu
cobro deles’, conta Dado.
Quase duas décadas depois do fim da Legião, a música
continua sendo seu compasso. Além de estar no palco, criar canções novas, tocar
com vários grupos e conduzir o programa do Bis, Dado tornou-se um especialista
em musicar filmes. Tem no currículo longas como “Bufo & Spalanzani”, “Pro
Dia Nascer Feliz”, além do seriado “Mandrake”. A expertise o leva a promover um
workshop de música, on line, de 12 capítulos, na Escola São Paulo. “Gosto do
desafio de pegar um filme novo, buscar soluções, colocar a música, isso me
motiva”, diz. Recém-saído do processo de literalmente revirar um baú de
recordações, ele não é saudosista. Mas, antes de apagar as luzes do estúdio, ao
fim da entrevista, deixa escapar uma crítica, com uma nota de nostalgia, sobre
o rock, gênero que guiou sua vida e talento. “Acho que hoje, basicamente, é um
gênero que não está repercutindo nas pessoas. Vejo a garotada indo mais para um
lado por, mais luminoso. Acho que mudou o modelo e não só no Brasil. Não tem
mais aquele grupo que vai transformar o planeta. Minha experiência hoje é de
ver as pessoas muito conformadas no palco, querendo entreter determinado
público. Não há mensagem, não há ideologia”, conclui.
(*) Com trechos extras