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domingo, 26 de junho de 2022

Pasquim: o gigante dos nanicos • Por Roberto Muggiati


CAPA DA TURMA - A arte do autodeboche: em sentido anti-horário, Fortuna, Sérgio Cabral, Luiz Carlos Maciel, Ziraldo, Haroldo Zager, Jaguar, José Grossi, Flávio Rangel, Paulo Francis.


CARTUM DE JAGUAR -O cartunista devorou o livro.

Há 53 anos, em 26 de junho de 1969, uma quinta-feira, chegava às bancas o primeiro número de uma nova publicação semanal em formato de tabloide que, apesar do nome escrachado – ou por causa dele – mudaria a história do jornalismo brasileiro. Esta ousada aventura cultural, empreendida apenas meio ano depois do AI-5, que calou a boca da mídia, é muito bem contada no livro recém-lançado do jornalista gaúcho Márcio Pinheiro Rato de redação/Sig e a história do Pasquim (Matrix, 190 páginas). 

LANÇAMENTO DO LIVRO - Márcio Pinheiro autografando na Argumento do Rio com Reinaldo Figueiredo e Roberto Muggiati.

“O sonho de todo jornalista é ter um jornal. Viver sem patrão, sem imposições ou censuras, sem compromissos com questões comerciais e/ou industriais. Sem limite de espaço para emitir suas opiniões e expressar a sua verdade como ela é vista”. 

Depois desse pontapé inicial, Márcio prende a bola. “Isso é utopia.” No entanto, no meio daquele ano emblemático, um punhado de bravos rapazes da imprensa – todos riquíssimos em talento e paupérrimos em dinheiro – ganhou de bandeja uma oportunidade de ouro, nascida de uma pequena tragédia:  a morte prematura, aos 45 anos, de Sérgio Porto, em 30 de setembro de 1968. Jornalista brilhante, mais conhecido por seu codinome alter ego Stanislaw Ponte Preta, Sérgio tinha, entre suas incontáveis atividades, um jornal de humor todo seu, financiado pela Distribuidora Imprensa, A Carapuça, que ele batizou de “semanário hepático-filosófico” – escrito, na verdade, por seu clone estilístico, Alberto Eça. Com a morte de Sérgio Porto, a Distribuidora Imprensa convidou o jornalista gaúcho Tarso de Castro, então com 27 anos, para ser o editor da Carapuça. Conta Márcio Pinheiro: “Tarso não concordou, mas fez uma contraproposta: aceitaria o comando do jornal, mas mudaria o nome e, mais ainda, a orientação editorial”. Tarso chamou para assessorá-lo dois colegas da Última Hora: Sérgio Cabral, editor de política, e Jaguar, o cartunista principal. Outros começaram a subir no barco: Luiz Carlos Maciel, ligado em contracultura; Paulo Francis, um crítico cáustico de tudo e de todos; os cartunistas Millôr Fernandes e Fortuna, que se juntariam a Claudius, do quinteto inicial; os colunistas Sérgio Augusto e Ivan Lessa.

A maior dificuldade inicial foi encontrar um nome para o semanário. Conta Márcio Pinheiro: “O nome do jornal muito provavelmente foi inventado por Jaguar, como uma maneira de se proteger de uma possível esculhambação externa. ‘Já que vão nos chamar de pasquim, vamos antes usar o nome. Terão de inventar outros nomes para nos xingar.’”

A quarta capa do livro faz uma síntese do Pasquim em estilo futebolístico: “Luiz Carlos Maciel, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Henfil e Paulo Francis, Sérgio Cabral, Ziraldo, Jaguar e Martha Alencar, Sérgio Augusto e Miguel Paiva. Esse timaço, fora outros nomes não menos importantes, fizeram história no Pasquim. O primeiro técnico responsável pela estratégia de ataque foi o jornalista gaúcho Tarso de Castro.

O jornal nasce em junho de 1969 sob o signo do deboche, indo contra todas as formalidades linguísticas e visuais dos demais periódicos brasileiros. E, claro, pegando pela frente aquela famosa ditadura que não só dava botinada na imprensa, como distribuía cartões amarelos e vermelhos a rodo.

Nos primeiros seis meses o semanário marcou goleadas editoriais, com entrevistas fora dos padrões da mídia e abordagens de temas nada palatáveis aos milicos, saindo de uma tiragem de 28 mil exemplares para se tornar um dos maiores fenômenos editoriais do setor e alcançar, em algumas edições, vendas de mais de 250 mil exemplares. Sem assinaturas. Apenas em pontos de venda e bancas de jornal.

Os altos e baixos do jornal, a repressão, os dribles na censura, as grandes sacadas, o fim da carreira em 1991 e muitas curiosidades são contadas neste livro, pelos olhos de um outro jornalista e fã dessa criação que tinha o ratinho Sig como sua mascote. E que foi campeã de inteligência, genialidade e muito humor.”

O grosso do dinheiro da Distribuidora Imprensa vinha da venda avulsa da revista Manchete, que esgotava rapidamente nas bancas toda semana. Altair de Souza, um capitalista com alma de comunista, comprou meia dúzia de caminhões e sem nenhum risco, concentrando as vendas no miolo urbano de Rio e São Paulo, arrecadava montanhas de dinheiro. A tal ponto que o gráfico proprietário da Manchete, Adolpho Bloch, que vivia às turras com seus “papagaios” bancários, apelava sempre para o Altair quando precisava de grana viva para pagar seus elevados custos com instalações industriais, jornalísticas e administrativas, máquinas de impressão, encargos trabalhistas e mil e uma outras despesas.

É irônico, portanto, saber que o revolucionário Pasquim foi lançado com o dinheiro da Manchete, bíblia da classe média conservadora. Não só isso, como sua redação – sem nenhuma despesa com aluguel, luz, gás e água – ficava nas instalações da própria Distribuidora Imprensa.

Tudo isso ruiria da noite para o dia por conta de uma desastrosa entrevista do compositor Juca Chaves, de origem judaica (seu sobrenome era Czaczkes), que se queixou da revista Manchete  e sentenciou: “Acho que o Adolpho Bloch é antissemita.” Judeus de origem ucraniana, os Bloch tinham justamente vindo para o Brasil a fim de escapar dos incontáveis pogroms antissemitas praticados no Império Russo. Solidário com Adolpho (e não querendo perder a galinha dos ovos de ouro), o dono da Distribuidora Imprensa comunicou que não só deixaria de distribuir o Pasquim, como a redação deveria deixar suas dependências. O primeiro problema foi prontamente resolvido: o tabloide passaria a ser distribuído pela Abril. Já o de reinstalar a redação levaria o Pasquim a arcar com os custos de um novo endereço, à rua Clarisse Índio do Brasil, em Botafogo. A entrevista saiu no número 26, em 18 de dezembro de 1969. Conta Márcio: “Somados a esses problemas, começavam também os primeiros movimentos do racha interno. (...) 

Porém, apesar do clima pesado, a ameaça mais concreta e assustadora ocorreria em março. Uma bomba havia sido colocada na sede do jornal e só não explodiu por incompetência e inabilidade de quem a colocara lá, muito provavelmente gente ligada aos órgãos de repressão. ”

A censura também começava a apertar: “Quem estreou no papel na redação foi Dona Marina, uma senhora cordial, civilizada, que se aproximaria da patota e, claro, logo perderia o emprego. ” Foi substituída por um general que, por acaso, era o pai de Helô Pinheiro, a garota de Ipanema inspiradora de Tom e Vinícius. O general exercia o seu metiê numa barraca de praia debaixo de um guarda-sol. Admitia que “não entendia nada do que estava nos textos do Paulo Francis. Depois, de calção e toalha, ia ele próprio devolver o material já devidamente rabiscado na redação do jornal. Tamanha displicência se transformaria em problema e o general também seria afastado. Em uma dessas idas e vindas à praia, ele deixou passar a entrevista de uma antropóloga americana que garantia haver racismo no Brasil. (...) Depois da falha do pai da garota de Ipanema, o Pasquim passou a ser censurado em Brasília no Centro de Informações do Exército, onde as chances mínimas de camaradagem e de negociação eram quase nulas. Uma situação que se estenderia até 1975.”

Veio então o episódio da prisão, em setembro de 1970. O motivo foi uma reprodução da tela famosa do Grito do Ipiranga, de Pedro Américo, em que, no balão rabiscado por Jaguar, D. Pedro I, ao invés do “Independência ou Morte!”, bradava “Eu quero mocotó”, o irreverente bordão da canção de Jorge Ben no V FIC que valeu ao seu intérprete no Maracanãzinho, o maestro Erlon Chaves, a prisão e muito aborrecimento. “Seriam presos pelo Doi-Codi Tarso de Castro, Luiz Carlos Maciel, Ziraldo, Jaguar, Sérgio Cabral, Paulo Francis, Flávio Rangel, Fortuna, o fotógrafo Paulo Garcez, José Grossi, o diretor de publicidade, e o funcionário Haroldo Zagler. Caberia aos que não foram detidos – Martha Alencar, Millôr Fernandes, Henfil e Miguel Paiva – a responsabilidade de se envolver com a edição do jornal e a missão de manter o Pasquim vivo nas bancas.” A ausência dos principais redatores sequer podia ser noticiada – eles teriam sido derrubados por uma misteriosa epidemia de gripe...

Com a abertura política e a volta dos exilados em 1979, o Pasquim se politizou e adotou Fernando Gabeira como seu porta-voz. Mas a distensão também levou – por uma questão de sobrevivência – a grande mídia a se “pasquinizar”. Havia ainda a luta pelo poder dentro do tabloide, um vertiginoso carrossel de egos inflados rumo ao tiroteio mortal no Curral OK – tudo isso acabaria levando o gigante da imprensa nanica a se volatilizar num processo de autofagia em 1991. Mas vale dizer, parafraseando Vinicius, que, em seus 22 anos de vida, o Pasquim “foi eterno enquanto durou.”

Encerro com uma observação sobre o estilo. “Estilo” nas mãos de um jornalista? Sim, o grande talento aflora na ponta do iceberg do jornalismo cultural brasileiro; os restantes 1/7 da sua massa submersa não passam de um indigente arremedo de press-release. E aqui outra observação que fiz ao próprio Márcio, surpreendendo-o: jornalistas da área musical como ele, Tárik de Souza, Antônio Carlos Miguel e o cartunista ex-Casseta e contrabaixista Reinaldo Figueiredo, que assina o prefácio de Rato de redação, têm sua prosa modelada, ainda que inconscientemente, por todo aquele jazz que ouviram a vida inteira.