Nota do Paniscumovum - Na cobertura da imprensa sobre o recente apagão, predominou o foco político, a ótica marcadamente eleitoral. Este blog abordou o assunto através de vários posts e comentários de leigos no assunto, naturalmente, onde, e aí se justifica, o ângulo foi igualmente político. Por isso, agradecemos e publicamos a seguir dois artigos do engenheiro José Antonio Feijó de Melo. Sai o curto-circuito político e entra uma análise técnica. Está aí o que faltou dizer.
Eng. José Antonio Feijó de Melo
Recife,16 de Novembro de 2009
Curioso o nosso País, onde importantes acontecimentos dos quais se poderiam retirar conclusões e ensinamentos valiosos tornam-se apenas campo de disputa entre “os a favor e os contra”, no mais puro estilo de debate “perde-ganha”, onde na verdade todos acabam perdendo.
O saudoso Noel Rosa já cantava que “O samba, a prontidão e outras bossas são nossas coisas, são coisas nossas”. Pois é, esta é uma das “outras bossas” tão caracteristicamente autênticas da nossa cultura, o arraigado maniqueísmo.
No Brasil, tudo tem de se ajustar a esta regra. “Ou se é a favor ou se é do contra”, não importando o verdadeiro mérito da questão que estiver em jogo.
Como não poderia deixar de ser, este maniqueísmo encontra o seu mais fértil campo de reprodução nas relações entre governo e oposição, sejam eles quais forem, em qualquer época que for, qualquer que seja o tema em discussão. Se o governo propõe, a oposição é contra. Se a oposição propõe, o governo é contra. Em geral, em nenhum momento, oposição ou governo admitem que o outro lado pode estar propondo, ou realizando, algo positivo para o País, que seja para o benefício de todos e que assim devesse merecer apoio, até mesmo contribuição para o seu aperfeiçoamento. Não, a regra é ser contra e tentar desmontar o que o outro lado pretende fazer. É claro que esta atitude está espalhada por toda sociedade: imprensa, organizações sociais, empresariado, enfim todos, até os cidadãos individualmente.
O apagão ocorrido no último dia 10 constitui um exemplo perfeito desta “nossa bossa” maniqueísta. Com efeito, de imediato a grande imprensa procurou definir o culpado e logo postulou que este é o governo. Então, os líderes da oposição seguiram na mesma linha, atribuindo ao governo todas as responsabilidades pelo ocorrido, inclusive procurando tirar vantagem eleitoral com a tentativa de “fulanizar” tais responsabilidades.
E como sempre acontece nesses casos, logo surgiram técnicos e pseudo-técnicos que, por meio de declarações à imprensa partiram para condenar os supostos responsáveis pelo setor elétrico, naturalmente o governo, afirmando que o apagão ocorreu por falta de investimentos e/ou pela falta de modernização das instalações, com a introdução de sistemas informatizados, entre outras propostas sem fundamento.
Até mesmo o governo assumiu posição precipitada através do Sr. Ministro das Minas e Energia que, parecendo querer se colocar na defensiva, resolveu diagnosticar como causa do apagão a queda de um raio. Uma coisa que de fato ele não podia saber, mesmo porque não lhe cabia saber, pois o governo não tem responsabilidade direta sobre a operação do sistema elétrico brasileiro e nem dispõe de informações em tempo real sobre o assunto. Isto sem se falar na complexidade técnica intrínseca que envolve o caso.
Portanto, pode parecer incrível, mas ninguém, nem os políticos, nem a imprensa, aí incluídos os chamados formadores de opinião, nem as organizações sociais, nem os técnicos que opinaram e, por absurdo que possa parecer, nem mesmo o próprio governo resolveu parar um instante para pensar um pouco sobre a verdadeira realidade da ocorrência e, assim, poderem contribuir para a apuração do que de fato aconteceu. Não, todos preferiram seguir a “velha bossa” muito nossa do mais puro maniqueísmo.
De parte do governo, a atitude correta, sim, seria mesmo vir a público rapidamente, mas não para dizer o que disse o Sr. Ministro Edison Lobão. O que o governo deveria dizer seria mais ou menos o seguinte: “que considerava a ocorrência de suma gravidade e que estava exigindo do Operador Nacional do Sistema – ONS uma rápida e detalhada investigação técnica para o completo esclarecimento dos fatos”. Naturalmente, o resultado da investigação indicaria as providências a serem eventualmente adotadas.
E por que o ONS? Porque é o ONS quem comanda o sistema interligado nacional (SIN) e detém todas as informações em tempo real de como o sistema esta operando e de tudo que acontece, inclusive com os respectivos registros. Este comando se faz automaticamente a partir do Centro Nacional localizado em Brasília e de quatro Centros Regionais situados em Florianópolis, Rio de Janeiro, Brasília e Recife
Normalmente a operação de todo o SIN é prévia e integralmente programada pelo ONS, tudo operando automaticamente de forma computadorizada, com o mínimo de interferência humana. Na hipótese de necessidade, são os operadores do ONS que tomam as decisões do que deve ou não ser feito. Os operadores das usinas, linhas e subestações das empresas proprietárias dessas instalações obedecem às ordens do ONS e não têm autonomia para intervir nas condições de operação de qualquer dispositivo do sistema sem a prévia e expressa autorização dos centros operacionais do ONS, salvo em condições especiais de emergência.
Os complexos sistemas de comando, controle e, em especial, de proteção de todas as instalações do SIN (usinas, linhas, subestações e seus diversos dispositivos componentes) são previamente ajustados segundo cálculos realizados pelo próprio ONS de acordo com as características dos equipamentos e do sistema nas suas diferentes configurações.
Portanto, é o ONS quem pode saber o que de fato ocorreu e quem tem de prestar informações ao governo e à sociedade. O seu Diretor-Geral, Dr. Hermes Chipp, deveria ter sido o primeiro a falar oficialmente para o público sobre as possíveis causas do apagão e não o Sr. Ministro Edison Lobão. Mas, estranhamente, o Dr. H. Chipp não apareceu e o outro Diretor do ONS, Dr. Luiz Barata, quando apareceu não parecia estar na condição de quem na verdade representava a entidade responsável pela operação do sistema elétrico nacional.
A desastrada intervenção do Sr. Ministro, acabou puxando para o governo e para o poder público em geral uma responsabilidade que de fato não lhes cabe. O ONS é uma organização privada, da qual fazem parte todas as empresas e entidades que atuam institucionalmente no setor elétrico nacional, privadas e estatais, onde as empresas privadas são absoluta maioria. O ONS é custeado por um dos encargos específicos cobrados nas tarifas a todos os consumidores e os seus dirigentes não são designados pelo governo, mas escolhidos pelos seus próprios integrantes.
Em sendo assim, a oposição e a imprensa erraram grosseiramente ao atribuir responsabilidade ao governo. No caso, ao governo, em nome do poder concedente, cabe de fato cobrar responsabilidades do ONS e, eventualmente, dos agentes (empresas) que venham a ser envolvidos com alguma participação no episódio.
Também erraram aqueles que se apressaram em afirmar que o problema fora causado pela falta de investimentos, particularmente para a modernização das instalações com a introdução de computação etc. Bobagem pura de quem não conhece o setor elétrico. O sistema interligado nacional opera com a tecnologia mais avançada do mundo e está sempre sendo atualizado. Os recursos de informática são empregados em larga escala, desde quando nem se falava em Internet. A informatização do sistema começou ainda nos anos 70 do século passado e foi efetivamente implantada nos anos 80, com a entrada em operação do chamado Sistema de Controle Supervisório que, somente para salientar o seu grau de sofisticação tecnológica para a época, um colega engenheiro costumava designá-lo como “Sistema de Controle Supervisionário”. E de lá para cá tudo avançou ainda mais, sempre incorporando os novos recursos tecnológicos mais modernos. Para se ter uma melhor idéia, os sistemas não são apenas informatizados, mas, além disso, possuem computadores redundantes, onde se um falhar o outro que está ao seu lado, supervisionando, automaticamente assume as suas funções. A propósito dispensam-se maiores comentários.
Do mesmo modo, não se pode falar na falta de investimento. As instalações existentes e os seus sistemas de comando, controle e proteção estão de acordo com as necessidades atuais e para os próximos anos, enquanto a expansão para atender ao crescimento do consumo está programada.
Aí, erraram mais uma vez a oposição, a imprensa e os técnicos, que seguindo o tradicional maniqueísmo de culpar o governo, o acusaram pela falta de investimentos no setor. Se realmente estivesse faltando investimento, a culpa não poderia ser atribuída simplesmente ao governo, mas sim também ao setor privado. Esqueceram que no modelo vigente no setor elétrico brasileiro, não cabe ao governo fazer investimentos na implantação de novas instalações. Ao contrário, o governo não pode fazer tais investimentos por vontade própria. Todas as novas instalações, sejam usinas, linhas ou subestações, têm que ser implantadas mediante processo licitatório em que os investidores privados assumem a obrigação de construir e explorá-las comercialmente. As empresas estatais também podem participar das licitações, mas até agora somente têm podido fazê-lo em sociedade com empresas privadas e obrigatoriamente em posição minoritária.
Ao governo, de fato, através da EPE, cabe apenas a responsabilidade pelo planejamento indicativo da expansão do sistema, para que se possam promover as correspondentes licitações. E isto tem sido feito.
Para concluir, cabem ainda alguns comentários específicos sobre o apagão em si mesmo. Conforme já foi mencionado, o ONS tem condições de levantar toda a sequência de eventos que levou ao apagão, pois o sistema dispõe de todos os registros, tornando possível saber com precisão como tudo ocorreu.
Porém, apenas a título de especulação, é fora de dúvida que alguma coisa anormal aconteceu em algum ponto do sistema, tudo indica em Itaberá, que desencadeou todo o ocorrido. Como nenhum equipamento, ao final, mostrou-se danificado, é lícito supor que este acontecimento foi de pequena monta. Assim, embora seja possível, não é o mais provável que a primeira atuação de algum dispositivo de proteção tenha ordenado o desligamento simultâneo das três linhas de 750 kV de corrente alternada Itaipu-Itaberá, mas apenas de uma das linhas. E então, a partir daí, alguma coisa não funcionou adequadamente, desligando também as outras duas linhas. O Operador pode saber exatamente como isto aconteceu, se as atuações da proteção foram corretas ou indevidas e se alguma falha existiu, humana ou de instrumentos.
Do mesmo modo, precisa-se verificar se as duas linhas de +/- 600 kV em corrente contínua Itaipu-Ibiuna também foram desligadas simultaneamente com as linhas de 750 kV acima citadas, ou não. Na verdade, isto não é provável, pois em principio não haveria razão específica para tal. Elas devem ter sido desligadas com algum retardo em relação às três outras e é preciso verificar como e por que isto ocorreu. Com certeza, os registros do ONS mostrarão as razões.
Além de tudo, tanto as linhas de 750 kV como as de 600 kV possuem dispositivos de religamento automático rápido. Ao que tudo indica esses dispositivos não atuaram. Por quê? O fato é que com o desligamento das cinco linhas, provocando o que se chama uma rejeição de carga enorme, a usina de Itaipu ficou completamente isolada do sistema brasileiro, apenas com a pequena carga do Paraguai. Nestas condições, teve de ser totalmente paralisada. Porem, a recomposição de Itaipu não deve ter demorado mais do que 30 minutos, razão por que a carga do Paraguai pôde ser religada com certa rapidez. Enquanto isto, o sistema brasileiro, muito mais complexo, enfrentava outros problemas.
Por outro lado, algo também não funcionou como devia no “esquema de alívio de carga”, que deveria promover o rápido e seletivo desligamento de cargas de menor relevância para compensar a falta de geração decorrente da saída total de Itaipu. Sabe-se que em outras ocasiões este esquema funcionou a contento, mas desta vez, embora algumas cargas tenham sido desligadas no Nordeste, no Sul e em alguns outros pontos, ao que parece não foram em volume nem em rapidez suficientes, de modo que o sistema acabou perdendo outras usinas, como as nucleares de Angra dos Reis. Em outras palavras, os limites de estabilidade foram ultrapassados, resultando no colapso total das áreas de maior carga do sistema interligado.
Mas, em tudo isto uma coisa parece certa. O problema foi estritamente de natureza técnica e o governo, não explicitamente por sua atuação, nada teve a ver com este apagão. Se houve alguma falha, e estou inclinado a crer que houve, ou foi um erro humano na operação, ou foi o mau funcionamento ocasional de algum dispositivo do sofisticado sistema de proteção.
E para que não se diga que este trabalho não constitui uma ação independente, e que teria por finalidade apenas defender o governo, aqui vai o registro de que o autor discorda profundamente da opção que este governo adotou para o modelo do setor, mantendo a filosofia mercantil implantada no governo anterior, a qual, em pouco mais de dez anos, fez as tarifas brasileiras pularem do grupo das mais baixas do mundo, para o lado das mais altas, superiores até a valores cobrados em países ricos do chamado G-7, além de adotar critérios operacionais que conduzem à permanente ameaça de crise na hipótese de que o regime anual de chuvas nas principais bacias não seja favorável. (Na foto, ou antifoto, Ipanema às escuras)