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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Sonhos eternos - Claudia Richer por Claudia Richer

Neste outubro de 2025 perdemos a jornalista Claudia Richer, que trabalhou na Bloch nas editorias de publicações dirigidas para o público feminino, incluindo a Mulher de Hoje.

Ela deixa saudades registradas por muitos colegas seus contemporâneos, que se manifestaram no Facebook.
O fotojornalista Alex Ferro encaminhou ao Panis cum Ovum, o belo texto que reproduzimos abaixo e que traduz a memória pessoal e a sensibilidade de Claudia Richer. Originalmente publicado no blog Campos dos Goytacazes em Fotos, de João Pimentel, o relato escrito em outubro de 2011 reúne memórias da infância da jornalista. "Era uma vez, há muitos e muitos anos, uma menina que teve o privilégio de conhecer e viver em um reino encantado. Como aqueles dos contos de fada que saltam dos livros e das telas do cinema. Tão encantado e tão mágico que até hoje passeia pelos pensamentos e pela imaginação da criança que deixei de ser faz tempo", destacou Claudia, nas suas lembranças.


NA TERRA DOS SONHOS REAIS
Martins Laje - Campos dos Goytacazes (RJ)





Meu nome é Claudia, Claudia Richer.
O sobrenome lhes soa vagamente familiar?
Sou neta de Jacques Richer que ergueu e dirigiu a destilaria de Martins Laje, em Campos, RJ.
E já que vou contar uma história, devo começar como todas as outras que ouvi ao longo da vida.
Era uma vez, há muitos e muitos anos, uma menina que teve o privilégio de conhecer e viver em um reino encantado. Como aqueles dos contos de fada que saltam dos livros e das telas do cinema. Tão encantado e tão mágico que até hoje passeia pelos pensamentos e pela imaginação da criança que deixei de ser faz tempo.
Um dia Martins Laje apareceu em minha vida de menina gorducha, cheia de cachinhos, vestidos com rendas e babados, pulseiras e muito outros enfeites. Apareceu porque lá viviam meus avós paternos, Carmem e Jacques Richer. E nunca mais saiu de mim, ainda que eu e o tempo insistamos em negar.
Martins Laje não era nada, talvez um ponto distante no mapa. Apenas isso.
Mas para mim era tudo.
Era apenas uma rua, de terra batida, mas parecia Nova York, o centro do mundo, do meu mundo, do mundo que meus olhos de criança enxergavam. Era a aventura, o sonho, o horizonte sem limites, o tudo querer e o tudo conseguir. Era um reino de princesa para alguém que se imaginava dona do mundo. A casa 4 era um reino com direito a jardim, bola de gude, amarelinha, casa de boneca, teatro com palco e cortina(a paixão é antiga mesmo), horta, pé de carambola, tamarindo, galinheiro, gatos... o céu mais lindo do mundo, sempre estrelado! E as estrelas sempre brilhavam em meus olhos, me fazendo sonhar, sonhar, sonhar.
Mas não tinha televisão (não era época ainda). Computador, então, nem se fala. Tinha telefone, mas era preciso chamar a telefonista do posto primeiro e pedir a ligação.
É, podem perguntar o que este lugar tinha de tão especial?
Tudo.
Tinha a imaginação solta, a felicidade por tudo e por nada, a capacidade infinita de sonhar sem limites. E o que pode ser melhor do que a capacidade de sonhar sem limites?
Tinha o amanhã sem receios, sem medo, sem tristeza, e até mesmo sem amanhã.
Tudo era hoje, agora.
Tinha cana também, tirada diretamente do pé, em frente de casa, perto da linha do trem.
Tinha trem. É, trem. Maria Fumaça mesmo.
Tinha chaminé e o apito das 11h30 anunciando a hora de almoço.
Tinha Guilhermino, o jardineiro e Vera, sobrinha dele; seu Francisco que cuidava da horta e Rosa, filha dele; Noêmia, a cozinheira; Vilma, seu Martinho, Dona Anita; Vavá, o motorista; o sucesso dos meninos da casa 2; Maria Helena, professora do grupo escolar Alberto Lamego, bem na entrada de Martins Laje. Tinha tanta coisa, tanta gente, muitos nomes, muitos rostos, doces lembranças, as melhores possíveis. Alguns me fogem, outros, não, mas todos ficarão guardados para sempre no meu coração.
Mas naquela época eu ainda não sabia como doeria reconhecer a necessidade de acordar e perceber o quanto tudo isso me faria falta um dia. Não sabia que abriria os olhos e veria que Martins Laje foi um sonho, um sonho encantado, é verdade, mas um sonho e que jamais voltaria a acontecer. Jamais seria meu outra vez. E eu jamais seria criança de novo para viver Martins Laje como antes.
A casa dos sonhos reais desapareceria. Martins Laje despareceria. E a vida “normal”, “real” retomaria seu curso, nem sempre desejado, é verdade, mas retomaria. Como a Maria Fumaça que seguiu em frente e desapareceu. Como a chaminé que nunca mais apitou e hoje nem mesmo é um pálido retrato daquilo que um dia significou. Como a destilaria, que depois da morte do meu avô passou ganhou o nome dele e que hoje – abandonada – não passa de mais de uma imagem perdida no tempo.
Mas naquele momento, a fartura de emoções era absoluta e eu só pensava nisso.
Queria mais. Mais sonho, mais festa, mais estrelas brilhando, mais passeios a cavalo, mais, mais, mais. Tudo mais.
Tudo mais! Nunca mais!!!!!!!!
Tinha meu avô – super querido e super avô - que ensinava a mim e a Martha, minha irmã, a ver as horas no relógio de madeira com algarismos romanos no fundo do corredor. Que me deixava derrubar litros de álcool na destilaria, que deixava tudo. Lá, tudo era possível e permitido. Minha avó não tinha limites e permitiu que eu acreditasse na ilusão do para sempre.










E assim eu cresci, achando que o mundo estaria eternamente a meus pés, como Martins Laje sempre esteve. Mas ninguém me avisou que de repente eu já não teria mais Martins Laje, estrelas, sonhos, infância. Muitos anos depois descobri que não era nada disso. E sofri até porque o mundo aqui fora era “o avesso do avesso” do que eu vivera até então. Tudo aconteceu tão depressa, e, no entanto, parece que foi ontem.
Disney? Diante disso, quem precisava de Disney?
Tinha cheiro de bolo, saindo quentinho do fogão a lenha, ovos batidos viravam glacês enfeitados, manteiga de nata, chuvisco, bolo de tronco, fios de ovos, gargalhada, joelho ralado, e sonhos (o doce também) à vontade. Sempre os sonhos. Doces ou não.
Tinha a vendinha – com paçoca, picolé que ficava branco e muita bobagem colorida; o cinema capenga, coitadinho, mas que era um programa como poucos.
Que fizeram de tudo isso? Onde foi parar o sonho? Onde foi parar Martins Laje?
Martins Laje existiu mesmo algum dia? No meu sonho, talvez.
Não saberia responder. Existiu?
Como seria hoje lá? Como seria eu em Martins Laje?
Parece que derrubaram a destilaria.... para onde foi tudo aquilo? Em que história foi morar o meu reino encantado?
Para onde foi a criança que sonhava perto dos canaviais?
Para onde foi o sonho? Para a memória, talvez. Para o passado, com certeza. Para o nunca mais? Será? Será mesmo?
Mas Martins Laje está logo ali, tão perto, tão nítida, tão real... será?


(Claudia Richer, Rio de Janeiro, outubro de 2011)