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sábado, 12 de agosto de 2023

Por uma cabeça • Por Roberto Muggiati

 

Com a enfermeira Andressa, na UPA- Botafogo. Foto de Cláudia Alves 

Com a bandagem que lembrou Apollinaire quando ferido na Primey Guerra Mundial. Foto Lena Muggiati 


Como a morte não vem me buscar – esse joguinho já está até ficando chato – eu resolvi cair e me quebrar de novo no meio da noite. Desta vez cortei a cabeça no ventilador de ferro, na parte alta e traseira (da cabeça, é claro). Contive o sangue com papel toalha e voltei a pegar no sono. O chão de tacos ficou todo respingado de vermelho. Não quis incomodar a Lena que dormia o sono dos inocentes. Quando chegou nossa cuidadora, a Cláudia, deliberamos que o grau de gravidade do caso merecia uma ida a um hospital. No quesito saúde, recebo tratamento exclusivo da rede UPA d’Or, a minha unidade favorita é a de Botafogo. Minha idade provecta, 80+, foi logo abrindo todas as portas, me atenderam num tempo recorde, a enfermeira limpou o local do ferimento, a médica deu uma picada de anestesia no cocuruto e costurou-me três pontos com aquela agulha curva que parece um anzol. Para fixar o curativo, a enfermeira Andressa enlaçou minha testa com uma bandagem que me lembrou aquela foto famosa do poeta Guillaume Apollinaire. (Fiz depois uma foto-homenagem ao inventor da palavra “surrealismo”, que combateu pela França na Primeira Guerra, recebeu um estilhaço na fronte em 1916, mas só foi morrer em 9 de novembro de 1918, dez dias antes do armistício, aos 38 anos, da pandemia de antanho, a gripe espanhola.)

Pensei na data, 9 de agosto, algo especial? Sim, 78 anos da segunda bomba atômica, a de Nagasaki, só lembrei da data porque os japoneses ficaram injuriados com a dobradinha “Barbie/Oppenheimer” que, em nome das sacrossantas bilheterias, veio tingir com tons róseos de leviandade um dos episódios mais trágicos de nossa história recente, a Bomba de Hiroxima.

Com bandagem na testa e bengala de quatro pontas, resquício da fratura do fêmur, resolvi, já que estava no Baixo Botafogo, ir tomar um café no Depanneur e procurar um filme na Livraria da Travessa. (Hoje vivo isolado em Laranjeiras, do outro lado do implacável paredão do Corcovado e do Dona Marta.) Achei o que queria, A Via Láctea, do mestre Buñuel. Estou revendo os principais filmes estrelados por Delphine Seyrig – e não são poucos, ela brilha ainda mais em O charme discreto da burguesia – para escrever um perfil da atriz do recém-eleito “melhor filme de todos os tempos”, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Atriz de Resnais, Truffaut, Joseph Losey, Fred Zinnemann, Jacques Demy, William Klein, Don Siegel, Marguerite Duras, entre outros, Delphine, morta em 1990, reinará suprema até 2032, dona absoluta das três horas e meia do filme de Chantal Akerman, aclamado agora pelo colegiado da Sight&Sound, quase 50 anos depois do seu lançamento, em 1975.