"A Noite dos Desesperados, 50 anos (*). Foto: Divulgação |
Em 1969, o cinema lançou "They Shoot Horses, Don't They?" (no Brasil, "A Noite dos Desesperados"), dirigido por Sidney Pollack, baseado no romance de Horace McCoy.
Foi um choque nas plateias. Cinquenta anos depois, o filme parece atual em circunstâncias diferentes.
Tal qual hoje, as guerras eram um lucrativo empreendimento para os Estados Unidos. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, com as estruturas de produção no chão, a Europa virou freguesa dos americanos, era obrigada a importar todo tipo de produto, especialmente agrícolas. Wall Street encheu os cofres. O consumismo a crédito fácil disparou, a euforia tomou conta do país. Os anos 20 foram dourados para o Tio Sam.
Em poucos anos a Europa começou a se recuperar e a importar cada vez menos dos Estados Unidos. Estoques se acumularam. Sem ter a quem vender, a indústria e a agricultura americanas viram a superprodução se transformar em encalhe monumental. Os consumidores perderam os empregos e ficaram com as dívidas dos anos dourados. No dia 24 de outubro de 1929, há 90 anos, a bolha explodiu. Os papeis financeiros despencaram, viraram lixo, acionistas perderam tudo em questão de minutos, o povo não investidor foi chutado de milhões de empregos, milhares de empresas fecharam as portas.
Os anos seguintes foram dramáticos. O caos só começaria a clarear a partir de 1933, quando F.D.R. Roosevelt implantou o programa New Deal, com o governo controlando preços, produção e investindo em obras públicas, estradas, ferrovias, hidrelétricas etc, para criar imediatamente milhares de empregos. Roosevelt deu o impulso, mas a recuperação econômica só viria, de novo, da guerra, a Segunda, que arrasou as Europa e mais uma vez fez a festa do complexo industrial americano elevando o país definitivamente à categoria de potência.
É daquela extrema recessão que os Estados Unidos viveram que nasceu o drama de "A Noite dos Desesperados" em torno de uma competição desumana que existiu na época: as maratonas de dança que premiavam casais que resistissem por mais tempo na pista. Nesse precursor do reality show alguns iam à exaustão por dançar durante dias em pistas e galpões enfumaçados. Muitos morreram embalados pela ilusão de ganhar três refeições por dia enquanto resistissem. Havia até vencedores que de tão esgotados sofriam ataques cardíacos antes de desfrutar o troféu da glória trágica: o prêmio final em dólares. O título em inglês é, aliás, uma alusão às corridas onde cavalos doentes eram sacrificados por piedade. Em nome do espetáculo e da sobrevivência os dançarinos cambaleavam nas pistas sem que ninguém os acudisse.
Uma vida digna era condição em falta para as vítimas da chamada Grande Depressão. Guardadas as proporções e as circunstâncias, o Brasil vive sua grave crise que agrava a já precária distribuição de renda, que fabrica mais pobres ao invés de resgatá-los da miséria. A dignidade aqui também cai pelas tabelas. Uma diferença é que o impasse econômico atual é o resultado de uma construção gradual do neoliberalismo, da hegemonia do "mercado" como a constituição não escrita das sociedades que cultuam o arrocho fiscal em benefício da especulação financeira. A exacerbação da injustiça parece ter deixado de ser uma crise para se tornar uma prática capitalista consolidada. Economistas alertam que o mundo está às vésperas de nova desarrumação financeira com efeitos especialmente drásticos nos países subdesenvolvidos como o Brasil. Estão aí o desemprego, o subemprego, a informalidade, o trabalho escravo e a modernidade dos "sem vínculo" criada pela tecnologia. Como os "trabalhadores" em aplicativos, esses que concorrem em maratonas no trânsito montados em bikes e motos para fazer entregas rápidas. Carregam o almoço dos outros para tentar botar alguma comida na mesa da própria família.
Falta ao Brasil injusto enxergar a "noite dos desesperados" cujo palco são as marquises, becos e periferias das cidades.
Sim, não temos a maratona de salão como meio de vida. Devemos ser gratos por isso?
* No elenco principal de "A Noite dos Desesperados" estavam Jane Fonda, Michael Sarrazin, Susannah York, Gig Young, Red Buttons, Michael Conrad, Bruce Dern e Al Lewis.