Na noite de domingo recebi um e-mail de meu filho, há dezessete anos fora do Brasil e atualmente cidadão de Edimburgo, onde se toma o melhor uísque nacional do mundo, mas ele é viciado em café... No seu laconismo de sempre, o assunto, It was 44 years ago e uma foto anexada, em que fundia seu rosto com o de John Lennon. Parafraseando o verso inicial de Sergeant Peppers’, meu filho aludia à noite de 8 de dezembro de 1980, em que Lennon foi morto a tiros por um fã na portaria do edifício Dakota, onde morava em Nova York.
Aproveitei a deixa para dar a ele informações que – não sei por que – nunca lhe foram passadas e acrescentam muito à sua mitologia pessoal. Escrevi:
“Você lembra onde estava aquela noite? Claro que não – nem poderia. Você estava no ventre da sua mãe. Naquela noite nós voltávamos para casa de uma sessão de cinema, um filme sobre outra figura trágica. Lenny [Bruce]. Tinha caído uma chuva leve e a calçada estava molhada, sua mãe escorregou e caiu, protegendo com as mãos o barrigão de nove meses. Você se dá conta de que correu o risco de juntar-se a Lennon naquela noite? Depois, quando soubemos pela TV da morte de Lennon, sua mãe reparou que meus olhos estavam marejados.
– Está preocupado que meu tombo possa ter afetado nosso filho?
– Não, estou chorando porque o John Lennon morreu.
Meu filho nasceu, lépido e fagueiro, em 29 de dezembro. Completei o e-mail mencionando outro cacoete familiar também ligado aos Beatles. Quando completei 64 anos, em 6 de outubro de 2001, meu filho tocou para mim, do LP Sergeant Peppers, a faixa When I’m Sixty-four, que comenta sobre a velhice (!). Completei a mensagem:
“Dia 29 você vai fazer 44. Está me obrigando a ficar ainda por aí para tocar When I’m Sixty-four pra você daqui a vinte anos...”
Voltando à redação: roubamos metade da melhor capa de Pelé na Manchete para colocar uma chamada sobre a morte de Lennon e editamos na manhã da terça-feira um encarte especial, sem mexer no corpo da revista – já praticamente rodada – e sem atrasar o lançamento nas bancas na manhã de quarta-feira.
Não resisto a escrever um pouco mais sobre o papel do DNA em matéria de gosto musical. E o “meu tipo inesquecível” aqui é o fotógrafo da Manchete Frederico Mendes, a quem o Alberto contemplou com um apelido-de-placa: O Encucadinho. Tivemos o primeiro filho à mesma época: Frederico, o Gabriel; eu, o Roberto. Um dia, num daqueles raros momentos de calmaria na redação, o Frederico se aproxima de mim com aquele seu ar de sofrência e o halo de dúvida hamletiana, e pergunta solenemente:
– Muggiati, você já tem alguma ideia de como vai fazer para o Robertinho gostar dos Beatles?
– Pô, Frederico, sem essa! Um pai tem de deixar que o filho faça suas próprias escolhas! O maior erro seria tentar “fazer a cabeça” dele...
Não só o Roberto, por conta própria, gostou dos Beatles, como me deu uns bons puxões de orelha apontando falhas no livro que publiquei em 1997, A revolução dos Beatles (Ediouro). E tinha então apenas dezesseis anos...
Azucrinado pelas doutrinações paternas, o Gabriel enveredou pelos meandros da alta literatura, estudando e doutorando-se em universidades norte-americanas. Só posso imaginar a decepção do encucado pai.
Encerrando, conto que a preferência maior do meu filho recai sobre o Bob Dylan. Confiram esta estatística: nestes dezessete anos de Europa, morando sucessivamente em Dublin, Milão e Edimburgo, o Roberto já assistiu a umas 50-60 apresentações do único roqueiro agraciado com o Nobel de Literatura. De Oslo a Praga, de Madri a Innsbruck (esse o 3.000º espetáculo da Never Ending Tour) e em três shows triunfais recentes no Royal Albert Hall de Londres.
COMENTÁRIO DE ROBERTO MENDONÇA MUGGIATI
* Faltou uma coincidência: no dia 9 de dezembro de 2009 vi em Arnhem, Holanda, meu primeiro show do Paul McCartney. Ontem, também um 9 de dezembro voltei a vê-lo, em Madri - pela última vez?”