Hertz Aquino e J.A.Barros em Belo Horizonte, 1949 Foto: Arquivo Pessoal. |
Estação Ferroviaária de Belo Horizonte. Reprodução |
por J.A. Barros
Niterói, 1949. Pela manhã, ainda de ressaca da noite anterior, eu descia a calçada que margeava o canal do riacho que passava pela avenida até encontrar o mar na Baia da Guanabara. De repente, na minha frente, surge o meu amigo Hertz Lemos de Aquino que, em vez do bom dia, me soltou de cara:
- Quer dar uma volta em Belo Horizonte?
Surpreso com a pergunta e achando que o Hertz tava de sacanagem, entrei na gozação.
- Claro. Quando viajamos?, eu quis saber.
Hertz foi rápido.
- Depois de amanhã pegamos o trem na Central do Brasil e estaremos em Belo ao anoitecer. Topas?
- Se não tá de sacanagem, vou correndo para casa arrumar a mala e arranjar grana pra gastar em Belô.
E foi assim que em setembro de 1949 eu e Hertz embarcamos em um trem que me lembrava os filmes do far west americano.
Qual o motivo daquela viagem? Sabia apenas que Hertz tinha um amigo, Newton, um rapaz muito inteligente, primeiro aluno nas escolas pelas quais passou, que era membro de uma instituição mineira que tinha como propósito combater as formigas que vinham assolando os campos agrícolas e causando estragos formidáveis. Tal praga reduzia sensivemente o ganho financeiro dos fazendeiros.
O slogan da campanha era: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.
No século 19, o autor das frase, o naturalista francês Yves Saint-Hilaire, percorrera o Brasil e já alertara para o problema. Com saúva ou sem saúva, eu estava em um trem, viajando para Minas Gerais. Não sei até hoje quanto quilômetros me separavam de Belo Horizonte, assim como não sabia quantos vagões o trem carregava. Sentado em um banco de madeira, nervoso e até assustado, me perguntava que impulso me levou àquele trem, às 7 horas da manhã. Hertz, ao meu lado, fumava tranquio um cigarro, indiferente, ao que me pareceu. Ele, pelo menos sabia a razão daquele viagem. Deixei pra lá, até porque nada iria mudar se viesse a saber de alguma coisa. Presente dos deuses, imaginei, mas na verdade presente do Hertz Lemos de Aquino. Obrigado, Hertz.
Era minha primeira viagem de trem. Se vocês nunca viajaram de trem - e não falo dos trens urbanos - não sabem o que é viajar. Anos mais tarde embarquei em um avião da ponte-aérea para São Paulo e, em outra ocasião, fui de ônibus para o mesmo destino. Confesso que detestei.
Gente, uma viagem de trem é uma experiência inesquecível. Nos vagões havia espaço à volta, podia-se percorrer os corredores, ir de um vagão a outro; acomodar-se em uma das mesas do vagão-restaurante, pedir uma cerveja bem gelada. Pela janela, passavam os campos de pastagens com manadas de garrotes engordando para o corte, vacas holandesas malhadas de preto e branco preguiçosamente ruminando a grama verde e suculenta que lhes daria o leite para os seus bezerrinhos e para nós bezerrões que crescemos e envelhecemos bebendo o sagrado leite. Cavalos lindos, como também pangarés, pastando sob a brisa que soprava e agitava suas crinas. Era um mundo que eu não conhecia. Maravihoso, espetacular,fantástico, extraordinário.
Tudo poderia acontecer em uma viagem de trem naquela época. Lembro que, no ano seguinte, 1950, Getúlio Vargas seria eleito presidente do Brasil. Aquele trem, também identificado popularmrnte como “Maria Fumaça“, era o modelo que percorria as ferrovias do Brasil, de ponta a ponta. Durante o longo trajeto Rio-BH passei por sensações estranhas. O percurso despertava a imaginação. Em um momento, sonolento, senti que o trem era assaltado pelo bando de Jesse James e seu irmão Frank James. O trem era mesmo uma cópia fiel das composições que atravessavam as planices do oeste americano onde Jesse James executava seus assaltos.
A Maria-Fumaça mineira. Reprodução |
O trem parava em estações de pequenas cidades do interior. Éramos recebidos nas gares por lindas moças que nos ofereciam flores ou bombons de chocolates. Era uma festa. Claro que trocávamos pequenos “torpedos“ com nossos nomes e telefones. Era uma brincadeira, quase uma fantasia pois, depois daquelas paradas e da confraternização com o povo do interior, sabíamos que nunca mais iríamos nos ver, mas aquelas lembranças ficariam para sempre. Não era um trem moderno. Como disse antes, era um modelo a vapor semelhante aos dos primórdios das ferrovias. Uma locomotiva toda de ferro, uma chaminé enorme que soltava rolos de fumaça, assim seguia o trem "levando a vida a rodar, como dizia a canção. Devo lembrar que a fumaceira às vezes invadia os vagões e nos fazia tossir, mas a aventura da viagem, a espectativa de conhecer Belo Horizonte, uma cidade planejada, construída e traçada nas mesas dos engenheiros de Minas, me enchia de curiosidade. Uma viagem emocionante. O trem criava essa interação com o ambiente que atravessávamos e nos dava um conhecimento do Brasil que ignorávamos. A paisagem verde dos campos, as montanhas que atravessávamos e que nos levava, à saída a descortirnar lindos vales e a atravessar pequenos e grandes rios que se alternavam com "desertos" desmatados, desolados e quentes. Ao anoitecer, enxergamos ao longe a silhueta de Belô, a cidade encantada que nos iria oferecer momentos muito felizes.
Mal sabíamos que, uma década depois, um presidente deste país acabaria com os trens e, em seu lugar, traria as grandes montadoras de automóveis, caminhões, ônibus, as estradas de rodagem que cortaram o Brasil de norte a sul. Milhares de quilômetros da imensa rede ferroviária brasileira foram destruídos, locomotivas sucateadas. Caminhões em vez de trens passaram a transportar toda produção agrícola e industrial do país. Os trens de passageiros sumiram. É díficil entender a cabeça dos governantes. Até hoje não compreendo a prática econômica do Brasil. Um trem com 20 vagões pode transporter 40 containeres, dois containeres em cada vagão. Um caminhão só transporta um container e, quando muito, mais um no reboque. Gostaria que alguém me explicasse essa matemática .
Ah!, em 1880 os EUA tinham mais de 300 mil quilômetros de trilhos e o Brasil 14 mil quilometros. No século XIX, os EUA ligaram o litoral do Atläntico com o litoral do Pacífico.
No ano de 1949, com 17 anos, viajei de trem pela primeira vez na minha vida. JK acabou com os trens mas, na minha imaginação eles ainda circulam. Guardo até hoje a simplicidade e o fascínio daqueles mometos que vivi.