por Nelson Rodrigues (crônica publicada na Manchete Esportiva - em janeiro de 1956)
"Aqui mesmo, nesta coluna, já fiz justiça ao canalha. É uma figura de incalculável riqueza interior. Tem uma irisada complexidade, que falta justamente ao justo, ao virtuoso, ao honrado. E vamos e venhamos: é repousante encontrar uma dessas criaturas que encerram toda a variadíssima sordidez da condição humana. O diabo é que é difícil, dificílimo, senão impossível, descobrir um canalha. Eis a verdade, amigos: ninguém quer ser canalha, ninguém. Saiamos de porta em porta. E, por toda parte, só encontraremos sujeitos honestíssimos, senhoras que não prevaricam nem com os próprios maridos. Até hoje, jamais apareceu alguém com bastante pureza interior para anunciar:
- "Eu sou um canalha abjeto!'
E que autorizasse:
- "Cuspam-me na cara!"
Vejam vocês: o homem é tão pusilânime que não quer ser cuspido nem por decreto. E já que nenhum canalha se apresenta como tal, é quase impossível caracterizá-lo. Ele não tem nenhum odor específico, nenhum distintivo de lapela, que o individualize entre muitos, entre todos. Aqui pergunto: como saber se o nosso amigo, o nosso companheiro, o nosso sócio é um puro ou um miserável? Como vislumbrar-lhe, por detrás da face externa e suspeita, a fisionomia interior e autêntica? É um problema de sorte. Por outras palavras: o canalha só se manifesta sob o estímulo de uma circunstância favorável.
Foi o que aconteceu, há tempos, numa excursão de rapazes e moças ao Dedo de Deus. O alpinismo, no Brasil, é o esporte mais soturno que se possa imaginar: falta-lhe o principal, que é a neve. O sujeito já sabe que não vai virar picolé. De qualquer forma, justiça se lhe faça: considero aquele que escala qualquer coisa um herói de Stalinigrado. Pois bem: sem que ninguém soubesse ou pudesse imaginar infiltrou-se, no grupo, o canalha. Desde o primeiro momento, o homem atraiu simpatias furiosas. Ninguém mais cordial e, mesmo, doce. Tinha bons dentes, boas anedotas e um tubo de drops, que prodigalizou copiosamente. Já os outros excursionistas cochichavam entre si:
- "Liga pra chuchu!"
Sim, muitíssimo liga. Até que a caravana resolveu fazer alto para o banho ao ar livre. Adotou-se a medida normal: os rapazes para um lado; as moças para o outro. Todo mundo caiu n'água, que estava uma delícia completa. Súbito, um dos rapazes, justamente o noivo de uma das pequenas, pergunta:
- Quedê o Fulano?
O Fulano era o canalha. Procura daqui, dali, é nada. Então, o noivo, com essa clarividência homicida do ciúme, deu o berro:
- "Já sei, já sei!"
Imediatamente, organizou-se a partiu a expedição punitiva. E, de fato, encontraram o miserável, pendurado de um galho, engrinaldado de folhas, assistindo ao banho das moças. Era justo, era mesmo necessário ou mesmo obrigatório, que se arrancasse, dali, o Pan sem flautas e o corressem a pontapés, a bofetões e cusparadas. Mas os rapazes, que chegavam, incidiram num erro técnico: arriscaram um olhar na direção das moças. Aconteceu o seguinte: essa nudez múltipla e molhada, que a luz valorizava, subiu-lhes à cabeça. Cada um, inclusive o noivo, ocupou seu galho estratégico para o banquete visual. Por fim, as moças deixaram o rio, enxugaram-se, vestiram-se. Só então os outros se lembraram do canalha. Já sabe: deram-lhe uma surra tremenda.
O CANALHA N° 2
por Nelson Rodrigues (crônica publicada na Manchete Esportiva - em janeiro de 1956)
No número anterior de Manchete Esportiva escrevi sobre o canalha que, encarapitado num galho, assistia ao fluvial banho de umas dez, doze moças.
Referi o episódio e aconteceu, então, o seguinte: todo mundo invejou o canalha dependurado, que se locupletara dessa nudez múltipla, molhada e total. Direi mais: por um momento, não houve leitor que não desejasse ser também um canalha assim abjeto e assim suspenso. Eram dez ou doze moças, digamos uma dúzia. E que fossem menos: quatro, três ou mesmo uma!
Hoje retomo a linha da crônica. Explico: o canalha é uma figura tão rica, complexa, irisada, que exige mais do que uma, duas, trinta crônicas. Quem fala de um sujeito honesto, está, na verdade, falando de todos os outros sujeitos honestos. Eis a verdade: nada mais parecido com um impoluto do que outro impoluto. Mas o salafrário, não: existem entre um salafrário e qualquer colega abismos irredutíveis. Cada qual apresenta suas características pessoais, intransferíveis e inassimiláveis. E é bonito quando um ser impõe essa taxativa dessemelhança face aos outros seres. Por exemplo: na semana passada, falei do canalha n°1, ou seja, o canalha do banho. Hoje, apresento outro tipo, também de uma substância incalculável. Vou numerá-lo: canalha n°2. Era goalkeeper não sei se do América, se do Fluminense. Tinha figura, tinha estampa, um perfil de John Barrymore aos 19 anos. O talho do seu nariz era tão caprichado que as meninas, no auge do arrebatamento amoroso, pediam-lhe:
- "Fica de perfil, meu bem!, fica de perfil!"
E o homem precisava ficar de lado. De resto, usava uns paletós inenarráveis. Mesmo que não fosse um Apolo, mesmo que não tivesse esse perfil sei lá se grego, se romano, venceria pela classe do paletó. Eram ternos que só faltavam falar. E com o canalha n°2, acontecia uma coisa impressionante: ou fechava o gol ou deixava entrar tudo. De certa feita papou, contados a dedos, 12 frangos. Parece incrível, mas foi preciso essa contagem histórica para que o clube abrisse os olhos. Subitamente, o time, o técnico, a diretoria, a torcida, a imprensa e o rádio descobriram tudo: o homem estava na gaveta do adversário. No vestiário, foi cercado, acuado, o presidente, em pessoa, cuspiu-lhe no rosto. Ora, que faz um sujeito nas mesmas condições? É óbvio: trata de lavar, de enxugar a cusparada. Mas o canalha n°2 era tão abjeto que lá deixou esquecida a saliva alheia, a pender-lhe da face conspurcada. Dias depois, há outro jogo. Na hora de entrar em campo, imprensam o salafrário:
- "Olha, se tu papares algum frango, já sabe: depois do jogo te faço e aconteço!"
Era o presidente do clube quem assim falava, em nome dos outros. O canalha n°2 pergunta:
- "Vocês me dão uma surra depois do jogo? E só depois do jogo?"
Pausa, pigarreia e arrisca:
- "Não podia ser antes? Já? Agora?
A partir de então, eis o que acontecia: antes de entrar em campo, o time fazia no canalha n°2 um minucioso massacre. E os pescoções, os tapas, os cascudos o transfiguravam. Com o olho rútilo, o lábio trêmulo, um ríctus de fanático, de possesso, o salafrário ia para debaixo dos três paus e não deixava entrar nem pensamento.