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segunda-feira, 8 de julho de 2019

Memórias da redação - Canecão, 1979 - João Gilberto fotografado no exato momento em que reclama do som e cancela o show. Por Guina Araújo Ramos

João Gilberto no Canecão, em 1979, reclama do som e cancela o show.
Foto de Guina Araújo Ramos.


por Guina Araújo Ramos

Nunca mais, nunca mais…

Sempre fui um ouvinte casual de música (e não da estrangeira, necessitava entender o que era dito). Ouvia a música que tocasse no rádio, não questionava muito. Música, para mim, era mesmo um fundo musical, sempre fui meio analfabeto no assunto. Quando digo que o único instrumento que toco é campainha de porta estou sendo sincero.

Conseguia diferenciar, sim, a bossa nova dos outros ritmos, mas mal distinguia cantores de cantoras, todos cantavam baixinho… A exceção era Dorival Caymmi, mas pode ser uma certa identificação com aquela coisa baiana, aquele relax existencial… Lembro de um programa da TV Tupi, lá pelos meus oito anos, altas horas da noite, minha mãe me mandando dormir, o baiano deitado na rede com seu violão, entre redes de pescar e coqueiros de papelão. Alguma mágica devia haver na música, mas achava que gostava das historinhas, os pescadores que saíram pro mar na quarta-feira santa, os clarins da banda militar, a morena que se pintou… Já esse outro baiano, João Gilberto, com suas histórias impessoais, deixara apenas um vago registro, como se suas músicas, hoje clássicos, fizessem parte do inconsciente coletivo. Logo viriam outros baianos e depois novos baianos, mas, aí, já não era mais aquela infância…

Então, em 1979, bastante adulto, estava eu, com a máquina fotográfica em punho a serviço da revista Amiga, diante de João Gilberto em pessoa. O agora mito João Gilberto, em uma de suas raras aparições neste ensandecido Brasil que trocara por New York, ensaiando para um show no Canecão.

Estava bem ali no meio do palco, dentro de um círculo de luz, sentado no banquinho, o violão na mão, vestindo seu paletozinho, penteadinho… Uma concessão, sem dúvida. Um privilégio.
Nós fotografávamos do próprio palco, mas de fora do círculo, da escuridão que tomava conta de tudo.

Cristina Zappa, minha professora de inglês no curso da ABI, então fotógrafa estagiária de O Globo, mais neófita do que eu, se mostrava nervosa. Podia ser apenas síndrome de fã, ela nunca me confessou nem uma coisa nem outra… Eu também tinha vivido alguns momentos de nervosismo, de tremer mesmo, no meu início na Manchete. Tinha vencido tais barreiras justamente para estar ali, naquele momento, à frente de João Gilberto. Enquanto ele ajeitava as cordas do violão na ilha de luz do palco, eu colocava uma 135mm e media a luz. Lúcia Leme, repórter consagrada, minha parceria na empreitada (ou melhor, eu dela…) conversava, entre as mesas, com a produção e outros jornalistas. Era apenas um ensaio, mas dava para sentir uma emoção no ar. E talvez, também, alguma aflição…

João Gilberto parecia tranquilo. Dedilhou o violão, cantarolou dim-dim-dom-dom (ou qualquer outra de suas genialidades musicais) e falou qualquer coisa a alguém. Este alguém, num gesto, conseguiu silêncio total e João Gilberto começou a cantar. Cantava qualquer coisa, um barquinho, um cantinho, um violão (é impressionante o que não se ouve quando se está fotografando, e o pior é que geralmente são as melhores músicas…), tocava qualquer coisa, dim-dim-dom-dom, eu estava gostando, ele tocava… Até que simplesmente parou.

Parou. O silêncio continuava. Todos atentos, reverentes. Balançou a cabeça, olhou para a escuridão do fundo do salão, baixou a cabeça e voltou a tocar, dim-dim-dom-dom, cantou mais um barquinho, um cantinho… Até que parou outra vez e falou. O fato é que João Gilberto falava muito pouco. Quando falava, e era pouco, falava baixinho. Quando falava alto, aí, era um acontecimento!…

Pois João Gilberto parou de tocar e falou alto. Falou para a escuridão lá do fundo:

– Olha, não está bom não!

Uma voz nas trevas respondeu qualquer coisa e João Gilberto falou outra vez:

– Eu sei. Mas não está bom não.

Dava para perceber que a voz nas trevas se esforçava para explicar qualquer coisa. João Gilberto propôs:

– Faz o seguinte: baixa um pouco.

Ou “sobe” ou “aumenta” ou “diminui”, uma ordem cifrada dessas. Só sei que “esquece” ele não falou… João Gilberto tentou resolver o problema, sou testemunha, posso jurar. A voz ao fundo, um pouco sumida, disse OK e João Gilberto voltou a se concentrar no violão. Dim-dim-dom-dom, um banquinho, um violão, nosso amor, uma canção, dessa vez eu acho que ouvi..

"Nunca mais, nunca mais..."

Ou talvez não… Mas, que importa, estava eu lá interessado na música?… Não, não estava. Estava interessado nas reações de João Gilberto. Notei que começava a se contorcer. No princípio, só um pouco, o tronco, os ombros, mas, aos poucos, passou a mexer as pernas abaixo dos joelhos, girando o pé na ponta do sapato enquanto tocava e cantava. E o rosto… Percebi uma cara feia qualquer, ainda que fugaz.

Parou de novo. Baixou a cabeça sobre o violão, notei que suspirou. Voltou a falar, de novo em voz alta, lá para o fundo negro de onde vinha o jato de luz:

– Olha, não ficou bom, não. Ficou pior… Faz o seguinte: volta como estava.

Pronto, pensei, o problema estava resolvido. Não ia ser o ideal, o máximo do som, como João Gilberto queria, mas seria o bom, o aceitável, o público iria gostar… Para mim, por exemplo, podia ficar de qualquer jeito, alto ou baixo, mais ou menos, estava bom o tempo todo. Mas, se ele fazia questão, tudo bem, era só voltar ao que estava antes: ele tinha razão!…

A voz lá do fundo disse OK. Silêncio. Cumpre-se o ritual e João Gilberto recomeça a tocar, acho até que voltou a cantar um barquinho vai, a tardinha… Ah, parou!…

Parou e caiu em silêncio, ensimesmado. Ficou ali emborcado sobre o violão algum tempo. Não dá para saber quanto porque estava tudo parado… Respirou fundo e falou lá para o fundo:

– Não, não… Não era assim que estava. Agora, ficou mais alto.

Ou “baixo”, ou “maior” ou “menor”, um problema desses… João Gilberto não parecia contente. Ficou olhando fixamente o foco de luz (ou a escuridão?…) por um tempo, até que a voz cavernosa garantisse que, agora sim!, estava no ponto. Ou nem tanto, que apenas voltaria ao que estava antes.

João Gilberto pareceu aceitar, uma tristeza no olhar…

Tudo de novo, o ritual. Eu, com meu dedo colado no disparador. João Gilberto começou a tocar, dim-dim-dom-dom. Eu senti que havia uma aflição saindo daquelas cordas. Ameaçou cantar um barquinho, o mar, a onda… A tardinha caía, seu rosto se desfigurava, eu batia fotos, sentíamos todos uma dor…

João Gilberto parou de tocar. João Gilberto baixou a cabeça. Acho que tinha uma lágrima nos olhos. Ou eu, eu não conseguia ver bem… Ficou ali, no centro da luz. O silêncio dominava a escuridão. Até que começou a balançar a cabeça, de lado a lado, por sobre o violão. E se ouviu a ladainha:

– Nunca mais, nunca mais!…

Parecia que ia chorar… Balançava a cabeça de lado a lado, desalentado: nada… De repente, insistiu em tocar, apertou as cordas com mais raiva do que fé: nada… A cada acorde, um esgar, uma careta: nada… Tudo aparentemente certo, um banquinho, um violão, mas o som…

– Nunca mais, nunca mais!…

A voz lá no fundo prometeu qualquer coisa, disse que agora sim, qualquer coisa, mas João Gilberto, catatônico, continuava:

– Nunca mais, nunca mais!…

E eu ali me sentindo o pato… Não era muito mais do que isso o que sabia de João Gilberto: bossa-nova, o tal banquinho, o violão, um barquinho, o pato… Agora, estava ele ali, na minha frente, sob a minha mira fotográfica, e era um mito arrasado, um baiano triste, um banquinho manco, um violão rachado, um som quebrado…

Para mim, estava bastante bom, estavam bastante boas as fotos. Até a música estava boa. Mas, que o sentimento era forte, que o momento era cruel, até eu, analfabeto musical, podia sentir. Vi logo que ia dar uma página dupla na Amiga, uma foto ou outra na Manchete. Que essa história ia ser contada em prosa e verso, transformada em filme, lembrada para todo o sempre enquanto existisse um banquinho, um violão, um amor, uma canção…

Não houve mais o show. João Gilberto cancelou, mais abatido que indignado. Houve celeuma, fãs protestaram, jornais criticaram, uma parte parece que processou a outra, parece que vice-versa, sei lá, dizem mesmo que a ditadura teria acabado mais cedo por causa disso…

Virou até literatura: Sérgio Sant’Anna, desencantado mas sarcástico, contou a história no conto (e livro) “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”. Depois de um certo voo de imaginação, decretou: o não-show de João Gilberto no Canecão teria sido, afinal, o show de João Gilberto que o Rio de Janeiro merecia. Pode ser… Mas, hoje eu sei: eu mesmo não merecia.

Para se ver quão traumatizantes foram os fatos. Deu para sentir, eu estava lá…