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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Duas ou três coisas que sei de Godard • Por Roberto Muggiati

 

Godard filma manifestações estudantis em Paris, em Maio de 1968.


Uma das últimas fotos. O diretor, há dois anos, deu aula via Internet 
para a Ecole Cantonale d'Art de Lausanne. Foto Instagram ECAL


O cinema é a verdade 24 fotogramas por segundo” ele dizia. E se desdizia: “O cinema é a mais bela fraude do mundo.”  Uma apreciação à altura do complexo gênio de Jean-Luc Godard, morto na terça-feira 13 de setembro aos 91 anos, é impossível. Nascido em Paris em 3 de dezembro, Godard cresceu na Suíça de língua francesa, escolha de seus pais pacifistas. No final da adolescência, atraído pela paixão do cinema, voltou a Paris e logo fez seu nome como crítico dos Cahiers du Cinéma, uma revista de jovens cinéfilos que ditava as regras em matéria de “sétima arte” 

No final dos anos 1950, um total desconhecido, explorou os meandros do Rio de Janeiro, metrópole fascinante que desfrutava seus gloriosos últimos dias de capital federal. Baseado nessa experiência, foi a única voz dissonante contra o premiado Orfeu Negro, criticando seu exotismo "cartão-postal". Discordava da direção de fotografia ao tentar competir, através de filtros coloridos e rígidos, com a suavidade da luz natural do Rio. Principalmente, julgava um anacronismo a profissão escolhida para o protagonista, a de motorneiro de bonde, um meio de transporte já quase extinto. Godard ficara empolgado pelos audazes motoristas de lotação cariocas, dirigindo suas naves loucas a uma velocidade absurda e fazendo ainda o papel de cobrador, com aquele vistoso leque de notas de cruzeiro dobradas na horizontal entre os dedos, colorido como uma cauda de pavão. 

Cena de Acossado: (Michel) Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg (Patricia)
caminhando pela Champs-Élysées

De repente, aqueles jovens dos Cahiers trocaram suas máquinas de escrever por câmeras de cinema e começaram a fazer seus próprios filmes. François Truffaut, Claude Chabrol, Jaques Rivette, Éric Rohmer. Jean-Luc Godard – de quem se esperava mais do que de todos os outros – lançou À bout de souffle/Acossado em 1960, mas, passados 62 anos, seu primeiro longa ainda não foi completamente digerido. A narrativa entrecortada e a variedade das tomadas ainda desconcertam muita gente. Mestre do travelling, Godard cultiva, já a partir de sua obra de estreia, a câmera circular, rodando inquieta não só pelas cenas externas, como pelas internas, às vezes operadas em espaços claustrofóbicos, como na cena mais longa (cronometrei, ocupa 27% do filme) num quartinho de hotel: um demorado e provocante entrevero entre Patricia Franchini (Jean Seberg) e Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo). Bom frasista, Godard dizia que “tudo o que você precisa para fazer um filme é um revólver e uma garota (“a gun and a girl”) e usou a fórmula em Acossado. O enredo foi sugerido por François Truffaut, tirado de uma notícia de jornal. Com o roteiro rabiscado num caderno escolar, Godard antecipava: “Vai ser a história de um rapaz que pensa na morte e de uma moça que não pensa. ” Rodou o filme em 23 dias, com orçamento barato e poucos recursos técnicos – alguns dos envolventes travellings foram feitos com o fotógrafo, câmera na mão, sentado numa cadeira de rodas empurrada pelo próprio Godard, que faz ainda uma “ponta” de poucos segundos na fita. Na cena final, dedurado pela mocinha, Michel (Belmondo) se deixa matar pela polícia. Suas últimas palavras, depois de repetir os cacoetes labiais que encena ao longo do filme, são “Tu es dégueulasse” (“Você é nojenta!”). Patricia (Jean Seberg), aparentando inocência, pergunta: “Qu’est-ce que c’est dégueulasse?” (“O que quer dizer ‘nojenta’?”)

À bout de souffle (1960) - C'est vraiment dégueulasse - YouTube

Em 1965, já no seu ciclo com a musa e mulher Anna Karina, Godard reescreve em cores a saga do herói marginal com o mesmo Jean-Paul Belmondo em Pierrot le Fou/O demônio das onze horas. No final, o suicídio espetacular, com um toque de humor negro: Pierrot envolve a cabeça em duas camadas de bananas de dinamite; assim que acende o rastilho de pólvora, se arrepende e tenta apaga-lo, mas já é tarde demais.

Pierrot le fou l'art la mort - YouTube

Na década de 1960 Godard fez 19 filmes. Um dos três rodados em 1963 foi Deux ou trois choses que je sais d’elle, uma crônica banal do cotidiano de uma dona de casa da classe média, casada, com dois filhos pequenos, que se prostitui para matar o tédio e completar o orçamento familiar. Usa como epígrafe: “Quando levantamos a saia da cidade, enxergamos o seu sexo.” Amy Taubin, crítica de The Village Voice, o saudou como uma das maiores realizações na história do cinema. Numa das cenas, a câmera se fixa nos refluxos da espuma de uma xícara de café espresso que parecem reproduzir a criação do universo a partir do magma primal.

2 ou 3 choses que je sais d'elle (Jean-Luc Godard, 1967) - YouTube

Do mesmo ano, Weekend – inspirado em La Autopista del Sur, de Júlio Cortázar – é uma comédia macabra passada no engarrafamento de uma autoestrada francesa e pródiga em travellings.

 Jean- Luc Godard weekend car scene - YouTube

Em 1965, Godard fez Alphaville, une étrange aventure de Lémmy Caution, uma sinistra ficção cientifica distópica. Ricaços ignorantes cooptaram o nome para batizar o conhecido megacondomínio nos arredores de São Paulo. A propósito, num de seus filmes, Godard define o Club Méditerranée como “o conceito do campo de concentração aplicado ao turismo.”

Segundo o jornal Libération, Jean-Luc Godard morreu por suicídio assistido.   Sua terceira mulher, Anne-Marie Miéville, afirmou: "Ele não estava doente, estava simplesmente exausto. Foi uma decisão dele e é importante que se saiba. ” O suicídio assistido é legalizado na Suíça, desde que o paciente não tenha ajuda de terceiros no momento da morte. Godard morreu na cidadezinha de Rolle, às margens do lago Léman, onde morou nos últimos 45 anos.

Aguarda-se em clima de suspense o anúncio da lista decenal de melhor filme de todos os tempos promovida pela revista Sight & Sound. Em 2010, Vertigo, de Hitchcock, desbancou Cidadão Kane, de Orson Welles, que ocupava o primeiro lugar desde 1962. Acossado figurava em 13º, numa pesquisa recente subiu para 12º. É curioso contrapor a câmara circular de À bout de souffle à câmera vertical de Vertigo. O amor figura com destaque nos dois filmes, mas, no de Hitchcock, ele segue a cartilha clássica de Hollywood, enquanto no de Godard é mais descolado, pós-existencialista. Hitchcock viaja ainda pelo sobrenatural, em atmosfera gótica. Godard trafega pelos tempos nervosos e violentos que estamos vivendo. Poderia a morte de Godard vir a exercer alguma influência na escolha do panteão de críticos e cineastas para 2022? O sigilo é absoluto, mas nunca o anúncio decenal da lista da Sight & Sound demorou tanto para ser divulgado, o que subentende um clima de indecisão. Aguardem. Em breve, nas melhores redes sociais...