UM DUELO DE TITÃS
A recente despedida de Carlos Heitor Cony me fez vir à memória um divertido confronto entre ele e
Justino Martins, do qual fui privilegiado espectador.
Os fatos se deram na redação da revista Manchete, no sexto andar do célebre edifício do Russel, no Rio. Foi, salvo engano, por volta de 1974. Cony era editor e Justino, mítico diretor de Redação. De minha parte, era repórter da sucursal paulista, que lá estava para acompanhar o fechamento de uma reportagem sobre o Trópico de Capricórnio. Resumo em duas palavras: eu e Vic Parisi, fotógrafo, havíamos percorrido o traçado do trópico desde sua entrada no Brasil, numa vila de pescadores em Ubatuba (SP), até a localidade de Coronel Sapucaia, na fronteira com o Paraguai, para mostrar o que havia em sua volta. Era algo para 12 ou 16 páginas, não me recordo, e, no caso de extensas matérias desse tipo, o repórter ia ao Rio a fim de subsidiar a edição com esclarecimentos a dúvidas de momento.
Justino, um indiaço, como dizem no Rio Grande dos gaúchos típicos do campo, gritou-me da sua mesa luminosa na qual examinava as fotografias a serem escolhidas. [NdaR: essa mesa formava uma imensa letra L, portanto, à altura de uma revista que privilegiava a paginação e imagens de bom gosto. Como ficou constatado posteriormente, estava pensando num título.]
– Ô paulista! Para que serve o Trópico de Capricórnio? Eu gazeteei a aula de Geografia no dia desse assunto.
Eu estava sentado junto à mesa de Cony, que era responsável pelo fechamento. Ele fez um sinal,
apontando na direção de Justino, como se dissesse: vai lá. Era uma espécie de sinal verde necessário, pois todos os repórteres ganhavam timidez diante daquele monumento jornalístico. Travou-se o seguinte diálogo.
– Olha, Justino. Por convenção geográfica, o trópico separa a zona tórrida da zona temperada. (Atenção: parece que essa definição está absolutamente ultrapassada).
E Justino:
– Essa faixa de terra é muito rica?
E eu:
– É. Corta o interior de São Paulo, entra por campos de soja do Paraná que não acabam mais, invade o Mato Grosso, onde tem pasto e boi que também não acabam mais. De quebra, tem uma Torre de Babel pelo caminho. Japonês, italiano, holandês e suíço em São Paulo; mais japonês e russo no Paraná e índio pra caramba no Mato Grosso.
Justino, como sempre fazia, pôs-se a desenhar diligentemente a página dupla de abertura. No alto, à esquerda, reservou uma janela onde se destacaria a latitude do trópico em números vazados, com fio branco. A fotografia de fundo era um magnifico campo de soja verde-louro – no qual se distribuíam três máquinas agrícolas vermelhas cujo posicionamento tinha tal simetria que sugeria ter sido montada – recortado contra o céu azul. O título estava composto em duas linhas; a segunda, em letras garrafais.
"Entre o quente e o frio A FAIXA DO PROGRESSO"
Justino apressou-se, satisfeito, em apresentá-lo a Cony. Como se costuma dizer nessas circunstâncias, recebeu uma ducha de água fria sobre o calor do seu entusiasmo.
– Porra, Justino! Você pensa que o trópico está pintado no chão e que o sujeito pula do frio para o calor, pra lá e pra cá?
Justino foi buscar outra inspiração. O título fazia jus à sua intensa criatividade, mas não à Geografia. Curiosa e ironicamente, lembro-me do título rejeitado, mas não faço a menor ideia daquele que o substituiu.
(*) José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros, trabalhou na Manchete na mesma época que Carlos Heitor Cony.