Por Roberto Muggiati
Era uma vez na Manchete. O Dr. Christiaan Barnard tinha conseguido o feito médico do século: o primeiro transplante do coração na Cidade do Cabo, África do Sul.
Foi no domingo, 3 de dezembro de 1967.
Eu trabalhava há um ano como repórter especial do carro-chefe da Bloch. A revista demorou um pouco a assimilar a novidade e avaliar sua importância jornalística. Acho que estávamos meio distantes do mundo, naquele velho prédio da Frei Caneca, onde tínhamos de percorrer quase um quilômetro atravancado por máquinas gráficas sucateadas até chegar ao imenso elevador de carga que nos levava às redações. A penitenciária ficava ao lado: era frequente detentos escaparem atravessando as dependências da Bloch. A atmosfera conspirava para que nos sentíssemos um pouco também como prisioneiros.
Tudo mudou na manhã de sexta-feira, 5 de janeiro. Alguém devia ter feito um contato muito importante na África do Sul para nos garantir uma entrevista exclusiva com o Dr. Barnard. Ao chegar à redação, encontrei a saudosa maloca de Frei Caneca à beira de um ataque de nervos. O chefe de reportagem em exercício, Raul Giudiccelli, investiu esbaforido para cima de mim. “Vai correndo ao Itamaraty tirar um passaporte especial, você viaja ainda hoje à Cidade do Cabo para entrevistar o Dr. Barnard!”
Eu tinha um contato excelente no Palácio dos Cisnes, onde reinava o velho Magalhães Pinto como Ministro das Relações Exteriores. Seu chefe de gabinete, o jovem e brilhante diplomata paranaense Orlando Soares Carbonar, ex-jornalista, era meu companheiro das noitadas de fechamento na redação do jornal Gazeta do Povo de Curitiba, onde vivi as emoções da minha primeira edição extra na morte de Getúlio Vargas, em agosto de 1954.
Duas horas foram suficientes para que eu saísse do palacete da Rua Larga com o passaporte azul na mão e pegasse um táxi para Frei Caneca. Cheguei entusiasmado, mas foi como se trombasse com um muro de concreto.
Cara de tacho, Giudiccelli falou, numa voz deprimida: “A viagem michou, Muggiati. Pode voltar à cobertura do lançamento do filme do Tarzã...”
Eu havia acompanhado a filmagem de Tarzã e o grande Rio e agora o filme estreava em grande estilo. Pífio consolo: não ia mais à África entrevistar o Dr. Barnard, mas teria um gostinho da África via Tarzã, o Rei da Selva.
Dr. Barnard visitou a Manchete em 1978 e deu uma canja no piano da casa. Foto: Lúcio Macedo |
Essa viagem abortada foi uma das grandes frustrações dos meus 64 anos de jornalismo. Mas a gente logo fica vacinado. Guardo como prova do crime o passaporte azul novinho em folha que nunca usei. Quanto ao Dr. Barnard, não resistiu à fama. Deixou as cirurgias, virou celebridade, largou a mulher para namorar a Gina Lollobrigida, e um belo dia apareceu no Palácio de Cristal do Russell para desfrutar da hospitalidade de Adolpho Bloch e da cuisine do chef Severino Ananias Dias.
Era 1978, só havia o primeiro prédio, Rua do Russell 804, nos salões do décimo andar Barnard deu uma canja no piano Steinway. Editor da Manchete, eu estava lá, mas nem eu nem ninguém lembra o que ele tocou.
Na Manchete era assim. Muitas vezes grandes ímpetos jornalísticos eram sufocados no nascedouro, como minha viagem à Cidade do Cabo. Mas, no correr do tempo, o que contava era o consistente trabalho de formiguinha da legião de jornalistas que batalhava por lá. Para fechar com um exemplo na área dos transplantes: seis meses depois do feito pioneiro na Cidade do Cabo – com a seriedade profissional que acabou abandonando o brilhante Barnard – o doutor Euryclides de Jesus Zerbini fez o primeiro transplante cardíaco, no Hospital das Clínicas de São Paulo, e se firmou como um dos maiores especialistas mundiais nessa área. Nosso repórter Celso Arnaldo Araújo, Prêmio Esso de Informação Científica, não só acompanhou o Dr. Zerbini na sua gloriosa jornada, como escreveu a biografia definitiva, Dr. Zerbini: o operário do coração.
Operários do jornalismo éramos, somos nós.