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quinta-feira, 7 de julho de 2022

Memórias da redação: A segunda morte do Formigão e a história secreta da queda do Boeing da Varig, em Paris, em 1973 • Por Roberto Muggiati

                    

Ciro Monteiro, o Formigão. Foto Divulgaçao

Dez horas da noite de sexta-feira 13 de julho de 1973, redação da Manchete, fechamento de uma edição extra. Um redator chega aos berros: “O rabecão da Santa Casa deu uma freada brusca, o caixão escapuliu pela porta de trás e o Formigão saiu rolando pelo asfalto dento do esquife!” 

O insólito episódio me veio à lembrança quando fazia para o Panis o alentado levantamento de celebridades mortas em desastres de automóvel. (Automorte: a megapandemia, 9/8/2021). Com um detalhe sinistro: a vítima, no caso, já vinha morta da cama de um hospital e estava a caminho do velório no São João Batista. Era o cantor de sambas Cyro Monteiro, estrela da Era do Rádio, conhecido pelos amigos como “Formigão”. Seu grande sucesso foi “Se acaso você chegasse”, composição de Lupicínio Rodrigues. 

Pouca gente lembra, mas Cyro participou em 1956 como ator da peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, que o considerava "o maior cantor popular brasileiro de todos os tempos", rivalizando apenas com João Gilberto. 

Em 1965, Vinícius o brindou com um álbum inteiro, De Baden e Vinícius para Ciro Monteiro. Fiel ao seu estilo de vida, Formigão morreu aos 60 anos de cirrose do fígado.

Aquela “segunda morte” de Cyro Monteiro foi um prelúdio adequado àquela noitada macabra. 

Justino Martins examinava – na parte iluminada da mesa em L que chamávamos “churrasqueira” – os cromos do malote de Paris que acabavam de subir do laboratório, com imagens chocantes do desastre do avião da Varig a poucos metros da cabeceira do aeroporto de Orly. 

Regina Lecléry

Uma coincidência dolorosa: apenas três dias antes, duas das vítimas fatais do acidente tinham se despedido ali mesmo do Justino (e de mim, seu “segundo”), junto à mesa de edição: Regina Maria Rosemburgo Lecléry (uma das mulheres mais bonitas da época) e o ator Jean-Dominique Ruhle, seu acompanhante na viagem (os dois tinham trabalhado juntos meses antes no filme de Nélson Pereira dos Santos "Quem é Beta?") Regina tinha vindo ao Rio resolver questões pessoais e voava ao encontro do marido, Gérard Léclery, que a aguardava em Paris para um cruzeiro com Henry Kissinger no seu iate. Eu a conhecera de leve em duas ocasiões: num almoço no Lagoinha Country Club para as candidatas a Miss Elegante Bangu em 1958 (minha irmã representava o Clube Curitibano e Regina era a Miss Lagoinha daquele ano); e em 1961 em Paris, quando ela e Florinda Bolkan eram as aeromoças mais cintilantes da Panair. Logo depois ela casava com o dono da companhia aérea, Wallinho Simonsen. Em novembro de 1963, Regina e o marido passaram com John e Jackie Kennedy o último fim de semana do Presidente Kennedy na sua casa de praia em Palm Beach: na sexta-feira seguinte ele seria assassinado em Dallas.

O Titanic da ditadura

A capa da Manchete com a cobertura da tragédia de Orly. Reprodução



O RG-820 era um voo de celebridades. O cantor Agostinho Santos, 41 anos, tinha como destino final Atenas, onde defenderia, na Olimpíada Internacional da Canção, “Paz sem cor”, composição feita em parceria com a filha Nancy. Viajava acompanhado do maestro e trompetista argentino Juan Carlos Iglesias (nome artístico Carlos Piper), que trabalhara com Elis Regina no programa O fino da bossa – e fizera o arranjo de “Paz sem cor”.  Agostinho ganhara o mundo ao participar da trilha sonora do premiado Orfeu Negro e ao integrar a caravana brasileira no lendário concerto da bossa nova no Carnegie Hall de Nova York em 1962.
A página dupla da abertura da reportagem da Manchete


O Boeing 707 jaz no campo pouco antes da cabeceira da pista de Orly

O dramático resgate. Optamos por não reproduzir aqui as cenas mais chocantes
do interior da aeronave incendiada publicadas na Manchete..

Os jornalistas esportivos da TV Globo Júlio Delamare e Antônio Carlos Scavone iriam respectivamente transmitir e comentar o Grande Prêmio da Inglaterra de Fórmula-1 em Silverstone.  O automobilismo havia se tornado a nova paixão do telespectador brasileiro depois que Emerson Fittipaldi se tornara campeão mundial na temporada de 1972. Outra figura ligada ao esporte era o iatista Joerg Bruder, 35 anos, casado, dois filhos. Formado em geologia, largara tudo por sua paixão náutica. Tricampeão mundial da classe Finn, fabricava e exportava mastros de alumínio de prestígio internacional. Naquela sexta-feira competiria em Brest, na França, em mais uma etapa da Finn Gold Cup. Outra passageira importante era Reeta Prithi, de 19 anos, filha do embaixador da Índia, que viajava para Londres. 

O senador Filinto Müller – homem forte da censura de Getúlio Vargas durante o Estado Novo – comemoraria seus 73 anos no dia seguinte em Paris, acompanhado da mulher, Consuelo (um sólido casamento de 47 anos) e do neto Antônio Pedro. Outro senador que tinha passagem marcada para aquele voo com a mulher era José Sarney, que desistiu à ultima hora da viagem. (Se embarcasse, a história do Brasil teria sido drasticamente reescrita). Sua vaga na primeira classe foi ocupada por Plínio Carvalho e sua filha de nove anos. Iria encontrar-se com a mulher e o outro filho do casal em Londres. Plininho, como era conhecido, fornecia equipamento de exploração petrolífera para a Petrobrás, pertencia ao café soçaite e jogava polo no Itanhangá Golf Club, onde um de seus parceiros era Wallinho Simonsen, ex-marido de Regina Lecléry, além dos colunáveis Ronaldo Xavier de Lima, os irmãos Klabin, Joaquim Monteiro de Carvalho e Didu de Souza Campos.

Também na primeira classe viajava o engenheiro Clayton Quinderé, que ia cuidar de negócios de sua firma de mineração na Europa. Dono de várias empresas no Nordeste, o cearense de 45 anos se dava ao luxo de morar num dos melhores endereços do Rio de Janeiro, o Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace. 

No livro Caixa-Preta/O relato de três desastres aéreos brasileiros, Ivan Sant’anna relata um episódio suprarreal:

“Enquanto o avião se afastava do clarão da cidade, no restaurante Antonio’s a foto emoldurada de Regina Lecléry despencou da parede, sem que ninguém a tocasse, num presságio do que iria acontecer naquela quarta-feira. ”

O voo transcorreu na atmosfera etérea das travessias transatlânticas, com o  serviço de bordo da Varig – um dos melhores do mundo, ainda mantendo a qualidade impecável do seu criador, o austríaco Barão Max von Stuckart. Depois do conhaque e do cafezinho, foi exibido o filme “O dia do chacal”, lançado em maio no circuito anglo-americano e ainda indisponível nos cinemas brasileiros. Baseado no thriller de espionagem de Frederick Forsyth, filmado magistralmente por Fred Zinnemann, o “Chacal” culmina na tentativa de assassinato do Presidente francês Charles De Gaulle na cerimônia comemorativa do Dia da Libertação de Paris no Arco do Triunfo. Por uma coincidência curiosa, no dia seguinte ao da chegada do voo RG-820 a Paris, o sucessor de De Gaulle, Georges Pompidou, estaria no Arco do Triunfo para a comemoração do 14 Juillet.

O que poderia ter sido um voo inesquecível para os 117 passageiros, transformou-se em tragédia nos últimos minutos antes da aterrissagem em Orly. Um incêndio aparentemente causado por um toco de cigarro acesso jogado na lixeira de um dos banheiros dos fundos provocou uma nuvem de fumaça que rapidamente se espalhou pelo avião, já nos procedimentos de pouso, a poucos quilômetros da cabeceira da pista do aeroporto de Orly. A fumaça tomou conta também da cabine e impedia os pilotos de enxergarem; além disso, tinham perdido o contato com a torre de controle. O pouso de emergência foi feito a um quilômetro da pista de Orly, num campo de cebolas. Foi uma manobra miraculosa dos comandantes Gilberto e Fuzimoto que garantiu a integridade da aeronave. Mas, assim que avião estacou no campo de cebolas e saltaram ao solo os dez tripulantes e o único passageiro sobrevivente (Ricardo Trajano, 21 anos, que se recusou a ficar preso ao cinto de segurança e correu para a porta da cabine de comando), um forte incêndio se alastrou por toda a extensão do Boeing, carbonizando os corpos dos 116 passageiros mortos por asfixia (morreram ainda sete tripulantes) e derretendo parte do teto da aeronave.

Várias lendas e histórias ligadas à Teoria da Conspiração começaram a surgir no Day After do acidente. O histórico do 707 foi considerado “azarado”: construído em 1968, antes de ser comprado pela Varig trabalhou para a empresa de voos charters Seaboard no transporte de tropas norte-americanas para o Vietnã. A redecoração “bonitinha, mas ordinária” feita pela Varig não levou em conta a natureza inflamável do material usado. Houve também uma espécie de “vingança divina” por ter a Varig ajudado a ditadura a dar o golpe de morte na Panair – empresa sólida, mas cuja independência política incomodava os generais. Na tarde de 10 de fevereiro de 1965, numa canetada, o Presidente Castello Branco suspendia as concessões das linhas aéreas nacionais e internacionais da Panair e as outorgava à Varig, amiga do regime militar. Num conchavo combinado com antecedência, tripulações inteiras da Varig já estavam a postos nos aeroportos para assumir os voos da Panair daquela noite. (A Varig, por sua vez, cumpriria seu ciclo de desventuras e sairia totalmente do ar em 2006, depois de 79 anos de atividade.)

E a causa do incêndio? Uma tragédia daquele porte não podia ter sido causada por uma banal guimba de cigarro jogada no cesto de papéis do banheiro. A causa real teria sido a combustão espontânea de cargas de bancos ejetáveis de caça Mirage que o Boeing transportava no porão para serem trocados por apresentarem defeito de fabricação. (Entre 1972 e 1973 a Força Aérea Brasileira fez uma grande encomenda à França de caças Mirage III-E novos em folha.) Ivan Sant’Anna conta no seu livro: “Eu mesmo escutei essa história da boca de um veterano comandante da Transbrasil, que começou na empresa nesta época e teve a oportunidade de comentar o assunto comigo mais de uma vez. ”

A Manchete também saiu chamuscada

Aquela edição da revista fechou de madrugada na redação, rodou na gráfica de Parada de Lucas no sábado e foi às bancas na manhã seguinte, tirando o apetite da maioria dos comensais do farto almoço de domingo. As fotos eram chocantes, mostrando os corpos carbonizados dos passageiros. Alguns eram até identificados nas legendas, como o senador Filinto Müller e sua mulher.

Com seu prestígio abalado pelo acidente, a Varig achou que a Manchete havia exagerado na cobertura e rompeu relações com a editora Bloch. Não mais passagens de cortesia, nem transporte de malotes.  O salvador da pátria foi um judeu romeno de baixa estatura, Joseph Halfin, diretor da Air France no Brasil (Oscar Bloch Sigelmann imediatamente deixou de chama-lo de “Petit Napoléon, como jocosamente fazia.)

O apanhador no campo de cebolas

Comandante Gilberto
Estranho destino teve o comandante do voo RG-820 Gilberto Araújo da Silva. Por sua perícia profissional ao impedir que o Boeing 707 em chamas caísse sobre os subúrbios de Paris, fazendo-o pousar num campo de cebolas ao lado do vilarejo de Saulx-les-Chartreux, a alguns quilômetros da cabeceira da pista do aeroporto, o comandante Gilberto foi condecorado pelo Ministério dos Transportes da República da França – e considerado herói nacional francês, apesar de brasileiro – e pelo governo brasileiro com a Ordem do Mérito Aeronáutico, no grau de Cavaleiro. 

Recuperado das lesões sofridas no acidente de Orly, ele voltou a voar, até se envolver em 1979 num dos acidentes aéreos mais nebulosos da história. Cito do Wikipédia, que fez um relato preciso dos fatos:

“O avião cargueiro Boeing 707-323C (Voo Varig 967) decolou do Aeroporto Internacional de Narita, em Tóquio, às 20h23 do dia 30 de janeiro de 1979. O destino final era o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro-Galeão, com uma escala nos Estados Unidos.

Vinte e dois minutos depois de decolar, o comandante Gilberto Araújo da Silva fez o primeiro contato com o controle de tráfego aéreo. Não havia qualquer problema a bordo. O segundo contato, previsto para as 21h23min, não chegou a ser feito.

O avião desapareceu sobre o Oceano Pacífico cerca de trinta minutos após sua decolagem em Tóquio. Nenhum sinal da queda, como destroços ou corpos, jamais foi encontrado. O voo de carga transportava, entre outros itens, 53 quadros do pintor Manabu Mabe, que voltavam de uma exposição no Japão. As pinturas foram avaliadas na época em mais de US$ 1,24 milhão. É conhecido por ser um dos maiores mistérios da história da aviação e um dos raríssimos voos civis comerciais que desapareceram sem deixar vestígios. Esse caso nunca teve uma causa específica, pois nunca foi encontrado nenhum sinal do PP-VLU (aeronave envolvida). Até hoje nunca foi encontrado nenhum sinal de vestígios plásticos, peças e/ou corpo dos seis tripulantes.

Teorias conspiratórias

O desaparecimento foi notado pelos controladores de voo após a falta de comunicação na passagem do Varig 967 sobre um dos pontos imaginários fixos sobre o oceano, usados na navegação e monitoramento de progresso de voo. Após uma hora de tentativas frustradas de se estabelecer alguma comunicação, o alarme foi dado e as equipes de busca e salvamento foram acionadas. Com a escuridão reinante, as buscas foram suspensas e só foram retornadas mais de doze horas depois da decolagem, na manhã do dia seguinte. Apesar de mais de oito dias de busca intensa no mar, nenhum sinal de destroços, manchas de óleo ou dos corpos dos tripulantes jamais foi encontrado. 

A investigação interna da Varig não conseguiu resolver o enigma. No relatório final sobre o acidente, consta o seguinte: "Não foi possível encontrar nenhum indício que lançasse qualquer luz sobre as causas do desaparecimento da aeronave". Muitas hipóteses e teorias foram formadas a partir de então para tentar entender o que ocorreu com o Boeing 707 da Varig. As teorias da conspiração lançaram no ar algumas delas:

Teria ocorrido um sequestro promovido por colecionadores de arte, já que no porão estavam as obras do pintor Manabu Mabe. No entanto, essas pinturas jamais foram achadas em lugar nenhum;

O Boeing teria sido abatido por soviéticos, interessados em esconder segredos do caça Mikoyan-Gurevich MiG-25 do desertor Viktor Belenko, que supostamente estaria desmontado e sendo levado aos Estados Unidos no porão de cargas do avião;

O ex-rádio-operador e ex-copiloto da Força Aérea Brasileira (FAB) Oswaldo Profeta chegou a escrever um romance chamado O Mistério do 707 para dizer que o que houve não foi um acidente. Ele acredita que a tripulação do Boeing pode ter cometido algum erro de navegação e penetrado no espaço aéreo soviético, uma área supervigiada. Segundo Profeta, é possível que o avião tenha sido abatido; 

Uma teoria conta que o Boeing 707 teria sido forçado a um pouso na costa da Rússia, onde os tripulantes teriam sido mortos;

A hipótese mais plausível, no entanto, considera que, logo após a decolagem, com a aeronave já tendo atingido um nível de cruzeiro elevado, houve uma despressurização lenta na cabine, o que não causou a explosão da aeronave – ou seja, não foi uma descompressão explosiva – mas lentamente sufocou os pilotos. O avião, então, segundo a linha de raciocínio, voou com ajuda do piloto automático por muitos quilômetros mais, até que, acabou o combustível, caiu sobre o mar em algum ponto extremamente distante dos locais por onde passaram as buscas. Portanto, nenhum destroço foi encontrado, sendo provável – como largamente aceito – que estejam ou no fundo do vasto Oceano Pacífico, ou sobre alguma área inabitada do estado americano do Alasca.” 

Também chamou a atenção o fato de que, num dos raríssimos casos da aviação comercial mundial, o comandante Gilberto protagonizou dois desastres aéreos com vítimas fatais – ele próprio incluído no segundo, vítima do que se poderia justificadamente chamar de A Maldição de Orly.

PS • O drama de Manabu Mabe

Manabu Mabe; Divulgação-Guia das Artes
Cada tela desaparecida no acidente estava segurada em US$ 10 mil, valor considerado abaixo do mercado pelo artista. Mabe tinha feito uma grande exposição retrospectiva no Museu de Arte Kumamoto em Osaka. A maioria das 53 telas eram de sua propriedade, mas 20 pertenciam a coleções de museus e a particulares. Passado o impacto, Mabe entrou em contato com os proprietários das obras perdidas. Todos – com exceção de um – se mostraram solidários: não reivindicaram dinheiro, aceitariam outra tela como reposição. O valente Manabu prometeu a si mesmo que viveria mais trinta anos e pintaria tudo o que havia perdido. Ele morreu dezoito anos depois, em 1997, aos 73 de idade, tendo cumprido quase integralmente sua promessa.