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sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O doce ano em que trabalhei com um Krajcberg nas costas



Roberto Muggiati

Julho de 1996 a outubro de 1997 marcou para mim o único momento em que fui feliz na Bloch. Afastado da direção da revista Manchete, nomeado Editor de Projetos Jornalísticos, fui despachado para o local geograficamente mais remoto do Titanic do Russel: a cobertura do terceiro prédio do Russell, à qual se tinha acesso por uma escada em caracol. Era um salão imenso – uns dez metros de frente por setenta ou oitenta de fundos – assoalho de tábuas corridas, tapetes persas, sala de visitas com sofá e poltronas e obras de arte nas paredes. Ali eu trabalhava com o João Américo Barros, meu chefe de arte, e o Sérginho, meu factótum e fiel escudeiro. Com sua ironia fina, Alberto de Carvalho batizou o lugar de degredo de “Santa Genoveva”, alusão ao asilo de idosos em Santa Teresa em que os velhinhos, ao invés de serem cuidados, sofriam maus tratos. 

Longe do insensato mundo da Bloch, fiz bons trabalhos ali. A reedição da série de fascículos sobre a História do Brasil, lançada em 1972, atualizada para o ano de 1997. Foram 52 fascículos inseridos na Manchete semanalmente – um ano exato – oferecendo um algo mais à revista que lutava para sobreviver. Editei também o número especial dos 45 anos de Manchete, com 350 páginas e uma receita publicitária fabulosa. E dirigi a edição especial de Fatos&Fotos – a primeira a chegar às bancas – sobre a morte de Princesa Diana. Lancei também meu livro A Revolução dos Beatles, em comemoração dos 35 anos da primeira gravação dos Fab4 em Abbey Road. 

Na "Santa Genoveva". Foto: Arquivo Pessoal R.M

Atrás da minha mesa no Santa Genoveva (o apelido colou imediatamente) havia um Krajcberg na parede, uma assemblage de galhos de árvore pintados de branco, praticamente uma versão reduzida da obra de arte do saguão de entrada da Manchete.

No Santa Genoveva eu fiquei protegido dos chatos (devem ter algum problema com escadas em caracol) e da histeria manchetiana (os Bloch e os colegas da revista não tinham tempo, ou coordenação motora, para chegar até lá.) Sentia pena do Herculano Mathias, historiador que redigia semanalmente os novos fascículos da História do Brasil, cuja idade dificultava escalar aquela escada íngreme. Eu era o dono do pedaço e podia ligar e desligar o ar condicionado ao meu bel prazer, coisa inimaginável nas outras redações, onde o ar só era ligado por ordem do seu Adolpho, ou sucessores. Tinha sempre um bom scotch à mão para a happy hour, um dos habitués era o milanês Carlo Rizzi, autor do novo design da Manchete, ficamos logo amigos – os Muggiati eram oriundi de Stradella, nos arredores de Milão.

Mal sabia eu que aquela alegria não ia durar muito. O primeiro sinal foi o Carnaval. Eu antevia, pela primeira vez em 22 anos, um feriado tranquilo no meu chalé em Itaipava, longe do fechamento da edição de Carnaval. Mas Jaquito me convocou para editar a Manchete carnavalesca: “Esses paulistas não entendem porra nenhuma da Carnaval.” E lá fui eu amargar as madrugadas de pão com ovo, o sol surgindo, bonito mas ordinário, uma bola vermelha entre o Pão de Açúcar e o Saco de São Francisco. Pior ainda: a diagramação computadorizada infernizou a edição, saudades da paginação analógica do grande Wilson Passos e da fotocomposição do Carlão. O uso do Macintosh acabou com cem empregos e sobrou problema para a redação e os diagramadores. E mais: o sucessor do doce Vincenzo Scarpelini – que se apaixonou por nossa repórter paulista e foi trabalhar na Folha – o Massimo Gentile, que de gentil não tinha nada, estava numa ressaca mortal no início dos trabalhos no sábado e tudo e todo mundo parado. Foi preciso o Layrton ir busca-lo à força em casa e entupi-lo de café preto. Triste lembrança: ambos jovens, tanto Vincenzo como Massimo já se foram. Carma da Bloch? Você decide.

Um pouco da minha história na Manchete. Voltando de três anos na BBC de Londres, meu amigo Narceu de Almeida, chefe da sucursal de Paris, no Rio para o 1º FIC – me levou à Manchete em Frei Caneca, onde Jaquito me contratou como repórter especial, começando no dia seguinte ao feriado da República de 1965 – cara, exatamente há 52 anos hoje... Em março de 1968, sentindo-me sem perspectiva na Bloch, fui participar da equipe inicial de Veja em São Paulo como um dos quatro editores do capo Mino Carta. Minha primeira mulher não se adaptou à Pauliceia e voltei em setembro de 1969 para dirigir Fatos&Fotos. Um daqueles cavalos de rodeio em que você só consegue se segurar alguns instantes. Em setembro de 1970 o Cony me chamou para ser seu chefe de redação no EleEla. Em 1972, o Justino Martins me chamou para ser o seu “segundo” na Manchete. Editei a revista nas férias de maio de Justino, Cidadão Cannes, que ia todo ano ao festival. Em 1975, Adolpho tirou o Justino da Manchete e me colocou como editor. Justino voltou à direção em 1981, me mantendo sempre como seu “segundo”. Em 1983 – aí é que começam os problemas das revistas, com a conquista da Rede Manchete. A TV vai ao ar, um mês depois Justino morre de um câncer fulminante, uma morte simbólica. Volto à direção da revista. Depois de um breve interregno da dupla Hélio Carneiro-Janir de Holanda, reassumo direto até 1996. 

Por essa época, o Titanic já estava fazendo água. As vendas caíam, mais por uma contingência editorial-gerencial da Bloch do que pela qualidade dos seus jornalistas. 

Reprodução do Jornal do Brasil. Arquivo pessoal R.M

Uma tentativa de me tirarem da direção da Manchete foi feita pelo Oscar (Bloch Sigelmann) em 1992. Convidou o Augusto Nunes, paulista que à época dirigia o jornal Zero Hora em Porto Alegre. Ofereceu-lhe um salário cinco ou seis vezes superior ao meu. Augusto Nunes, macaco velho, veio, viu e voou (para longe). Bastou um almoço com vista panorâmica no restaurante do Russell, e o papo do Oscar, para que percebesse o perigo que corria. Outro convidado, o Elio Gaspari, também não caiu na conversa. (Vejam os recortes das notas publicadas pelo Zózimo no JB). Jaquito costumava me chamar em crise: “Muggiati, precisamos fazer alguma coisa, por nossos filhos!” Osias (Wurman), mais sotto voce, buzinava: “Muggiati, fique atento senão um dia chega aí um paulista com uma pastinha de executivo para pegar o teu lugar.” Não deu outra. Em meados de 1996 Roberto Barreira assumiu interinamente a direção e em outubro a troika paulistana tomou o poder: Tão Gomes Pinto, com Otávio Costa e Nunzio Briguglio. Tão, que, como eu, foi subeditor de Mino Carta no início da Veja, tinha sofrido um AVC que deixou seu braço direito molenga. E o Nunzio era incauto o bastante para proclamar “Eu sou o braço direito do Tão”. Com Otávio e Nunzio se odiando ostensivamente e Tão morando num apartamento na Barra, totalmente deslocado, não podia dar certo. 

Minha saída aconteceu meses depois da morte de Adolpho, que foi enterrado no cemitério de Vila Rosali em 20 de novembro de 1995, a primeira vez em que se respeitou o feriado de Zumbi, uma segunda-feira em que choveu o dia inteiro. Achavam que o Adolpho, sentimental demais, jamais me tiraria da direção da Manchete. Na verdade, o velho sabia mais que os outros. Àquela altura, uma simples troca de técnico não ajudaria o time em crise. Pior ainda seria chamar um “colombiano”, como o Flamengo fez.

Uma coisa de que me dou conta só agora, é que a Bloch era uma confraria de oprimidos, muito forte e coesa e, quem quisesse liderar qualquer coisa, tinha de entender isso. Foi o que aprendi desde cedo, intuitivamente, e aderi àquela maravilhosa legião de “proscritos da terra” (está lá, na letra do nosso hino, a Internacional). No Dia das Bruxas de 1997, Tão Gomes Pinto pediu as contas e Jaquito me convocou, mais uma vez, para editar a Manchete. O que fiz, da melhor maneira que pude, até maio de 1999. A revista já era uma nau à deriva, e a empresa também. E deu no que deu, no pedido de falência em 1º de agosto de 2000. Mas nunca esquecerei os dias felizes vividos com a escultura do Krajcberg nas minhas costas no Santa Genoveva.