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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A dupla de ouro de Vertigo e As diabólicas • Por Roberto Muggiati


Vocês conhecem Boileau-Narcejac? Talvez não estejam ligando os nomes às pessoas, porque são na verdade dois cidadãos distintos. Pierre Boileau e Thomas Narcejac (verdadeiro nome: Pierre Ayrad) escreveram em parceria por quatro décadas (desde 1952) romances noir que se tornariam sucessos de bilheteria mundiais.

Um deles foi Vertigo: Um corpo que cai de Alfred Hitchcock que, a partir de 2012, substituiu Cidadão Kane como o melhor filme de todos os tempos na pesquisa feita com críticos da revista Sight & Sound, do Instituto Britânico de Cinema.

Vertigo foi feita a partir da trama de D’entre les morts. Na verdade, Hitchcock queria outro livro da dupla, Celle qui n’était plus, mas Henri-Georges Clouzot foi mais rápido e o transformou em Les diaboliques/As diabólicas (1955), um filme de grande sucesso estrelado por sua mulher, Vera Amado Clouzot, Simone Signoret e Paul Meurisse.

Na história, Vera interpreta uma cardiopata que é morta a susto pelo marido. A própria Vera, morreria precocemente de uma parada cardíaca em 1960, aos 46 anos. Morando em Paris na época, tive um envolvimento pessoal com suas pompas fúnebres, episódio que relato depois de despachar a dupla dinâmica.

Cerca de vinte livros de Boileau-Narcejac foram levados às telas – só Celle qui n’était plus teve dois remakes. Uma noite destas, vi pelo YouTube outro filme baseado num livro deles, Meurtre en 45 tours, com Danielle Darrieux e Jean Servais fazendo o casal que quer matar um ao outro. Uma trama intrincada com mortos que reaparecem para ameaçar os vivos. Também revi há pouco tempo Vertigo e fiquei muito curioso para comparar a versão de Hitchcock com o livro original de Boileau-Narcejac.

Encontrei, baratíssima, na Estante Virtual, uma edição em livro de bolso de 1967, com o título do filme em francês, Sueurs froides.

No original, a história se passa em Paris; pelo pouco que li, o cerne da trama subsiste.

Mas Hitchcock teve o lance genial de escolher como cenário San Francisco, que passa a ser também personagem da história. Enfim, ainda Boileau e Narcejac, vamos ao PS de luxo desta história.




PARIS, 1960


Na missa de corpo presente 
de Vera Amado, 
Clouzot chorou nos meus braços

Eu morava na Maison du Brésil, na Cité Universitaire de Paris. Outros jornalistas moravam no mesmo andar: Zuenir Ventura, meu colega bolsista no Centre de Formation des Journalistes, e Luís Edgar de Andrade, correspondente do Jornal do Brasil. Ativíssimo nas pautas e coberturas – sempre que passávamos pela porta do seu quarto ouvíamos o metralhar da Olivetti portátil – o Edgar nos dava dicas do que acontecia em Paris.

No café da manhã da sexta-feira 16 de dezembro de 1960, ele nos avisou: “Às onze horas, missa de corpo presente de Vera Amado Clouzot, na igreja Saint-Pierre-de-Chaillot.” Imediatamente peguei o metrô para a Avenue Marceau, uma daquelas vias monumentais que se irradiam do Arco do Triunfo, na Étoile.

Vera e Henri Georges Clouzot com Yves Montand e Charles Vanel. Na estréia de O salário do medo, dirigido por Clouzot e estrelado por Vera, Montand e Vanel. (Publicado em Noir et Blanc) 

Curiosa história a de Vera Gibson Amado, nascida no Rio em 30 de dezembro de 1913. Filha do diplomata Gilberto Amado, conheceu no Rio aos 27 anos o comediante Léo Lapara, da companhia de Louis Jouvet, em turnê pelo Brasil. Casou com ele, incorporou-se à trupe e chegou a Paris em 1944, no momento em que a cidade  era libertada pelas tropas americanas. Em 1947, conheceu Henri-Georges Clouzot, que dirigia seu marido no filme Quai des Orfèvres/Crime em Paris. Amor à primeira vista – coup de foudre em francês. Casaram e, sob a direção de Clouzot, Vera fez três filmes, os dois primeiros beirando a obra-prima: O salário do medo (1953), As diabólicas (1955) e Os espiões (1957). Nos dois primeiros ela morre, no terceiro faz o papel de uma muda – a escolha dos papeis não chegava a parecer uma declaração de amor do marido. Pouco antes de completar 47 anos, o coração de Vera explodiu. Quando o cardiologista anunciou que Vera tinha os dias contados, Clouzot chegou a propor-lhe um pacto suicida.

A igreja estava repleta de celebridades do cinema francês. Num matutino do dia seguinte, eu saí na foto a poucos metros de Brigitte Bardot e de Françoise Arnoul, minhas musas dos filmes franceses no Cine Marabá, em Curitiba. O semanário ilustrado Noir et Blanc publicou uma página inteira: “AUX OBSÈQUES DE VERA CLOUZOT LES COMÉDIENS NE JOUAINT PLUS.” Numa das seis fotos, eu apareço atrás de Daniel Gelin, o grande ator que, depois do Último Tango, ficaria conhecido como “o pai da Maria Schneider.”

O corpo de Vera ficou no alto de um catafalco em lugar de destaque perto do altar, coberto por uma montanha de coroas de flores. (O corretor ortográfico substitui “catafalco” por “cadafalso”. Verifico no dicionário e vejo: “Catafalco: essa aparatosa em que se coloca o féretro.) Depois, o corpo de Vera seria sepultado numa cripta provisória na igreja, antes de ser enterrado no Cemitério de Montmartre. Típica dos anos 1930, a igreja se inspirou nas arquiteturas bizantina e românica, mas com uma geometria e massa próprias à era do cimento armado.


As setas apontam para Roberto Muggiati, Brigitte Bardot e Françoise Arnoul.
Reprodução Arquivo Pessoal. Clique nas imagens para ampliar
Enquanto, naquele ambiente sacro e solene, estou respirando o mesmo metro cúbico de minhas musas, tudo bem... Mas, de repente, me vejo empurrado pela turba ao longo da nave da igreja, sem a menor chance de voltar atrás. E, de súbito, estou cara a cara com o monstro sagrado do cinema, Henri-Georges Clouzot, que estapeava seus atores para arrancar-lhes a melhor interpretação – naquele momento um homem em profundo sofrimento pela perda da mulher. Com os olhos marejados, Clouzot coloca em minha mão um aspersor de água benta, com o qual devo lançar algumas gotas sobre o corpo da defunta, eu repito o que vi fazer Charles Vanel, colocado à minha frente na fila dos cumprimentos. Clouzot agradece minha solidariedade, aperta-me num abraço forte, como se eu fosse seu amigo há décadas. Olho então bem fundo nos seus olhos e vejo ali uma culpa transcendental. Lembro o enredo de Les diaboliques: o marido trama com a amante um ardil para levar a mulher – cardiopata, como Vera – a sofrer uma pressão que seu coração não conseguirá suportar. O crime perfeito, por causas naturais. Na minha visão subversiva, invento que Clouzot foi o culpado pela morte de Vera. Coitado dele, se arrastaria por mais 17 anos até morrer aos 69, depois de vários ataques do coração.