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terça-feira, 22 de abril de 2025

Memórias - Roberto Muggiati escreve: o Papa Francisco e eu (*)

Francisco no circuito carioca. Foto L'Osservatore Romano

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O Papa Francisco e eu - por Roberto Muggiati"

"Nunca fui de correr atrás de Papas (ou de celebridades em geral). Minha relação com a Igreja Católica não sobreviveu ao penoso rito da Primeira Comunhão, na paroquia de Santa Teresinha do Menino Jesus, no bairro do Batel, em Curitiba. Aquele bullying todo em torno da confissão – você tinha obrigatoriamente de ter pecados a expiar, ou então estaria mentindo. Os mais espertos inventavam pecados para sair logo daquela roubada. Outros, em pânico, chegavam até a comprar – com bolas de gude ou balas Zequinha – “pecados” a serem sussurrados ao obscuro inquisidor por detrás da treliça. Havia ainda a campanha de terror que cercava a ingestão da hóstia sagrada – o santo-cura histérico o intimidava a não ferir ou morder o corpo de Cristo. Troquei a arejada e solar igreja de Santa Teresinha – obra de mestres-de-obra imigrantes italianos que posavam de arquitetos – pela escura e misteriosa Catedral de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, elevada a Basílica Menor em 1993, ano do seu centenário. Como ainda não conhecera de perto as grandes catedrais medievais da Europa, eu me contentava com aquela cópia em estilo neogótico – ou gótico romano – inspirada na Catedral da Sé de Barcelona. E mais, meu pai, que tocava violino, costumava me levar até o majestoso órgão – era amigo do organista e de membros do coral – a meio caminho, subindo por uma escadaria íngreme e estreita, do campanário, onde eu me sentia o próprio Corcunda de Nôtre Dame (não tinha lido o romance de Victor Hugo, mas me impressionara com o filme em que Charles Laughton interpretava Quasimodo.) Havia ainda na Catedral de Curitiba a vigília do Cristo Morto na Semana Santa, na madrugada de sexta-feira, da qual meu pai participava com a capa solene da confraria – as imagens religiosas da igreja todas cobertas de pano roxo, só o Cristo crucificado do pequeno altar à direita do portão de entrada, com suas chagas sangrentas brutalmente expostas, um dos mais horripilantes que já vi em toda minha vida.

Havia um toque leigo, também: a missa das nove aos domingos na Catedral era conveniente, pois a poucos passos dali, às dez, começava o programa de rádio infanto-juvenil no Clube Curitibano. O apresentador, José Augusto Ribeiro – prenunciando já o fabuloso orador que viria a ser – comandava o show que tinha, entre suas atrações, as fabulosas irmãs catarinenses Van Steen, uma delas a Edla, que ganhou o mundo como atriz e escritora.

Bisneto de anarquista – Ernesto Muggiati veio para o Brasil com mulher, dois filhos e duas filhas para participar da lendária Colônia Cecília em Palmeira, no Paraná – comunista principiante (adentrei 1950 com doze anos de idade no auge da Guerra Fria), não posso omitir que me vi então, paradoxalmente, às voltas com uma tremenda crise mística ao ler, no começo da adolescência, já em inglês, The Seven Storey Mountain/A montanha dos sete patamares, de um dos grandes líderes espirituais da nossa época, Thomas Merton (1915-68), um monge trapista, ordem que cultivava o voto do silêncio.

Mas chega de nariz-de-cera, como se praticava no jornalismo dantanho.

Jesuíta, tanguero emérito, torcedor doente do San Lorenzo de Almagro, Jorge Mario Bergoglio (coincidência, Zagalo também é Jorge Mário) foi um dos raros Papas que não ascendeu ao trono de São Pedro pela morte do antecessor: Bento XVI renunciou e, como Papa Emérito, caminha firme para os 93 anos (não percam o filme Dois Papas, do brasileiro Fernando Meireles, que reconstitui o encontro entre Ratzinger e Bergoglio em Castel Gandolfo em 2013). Pouco depois, Ratzinger renunciava e Bergoglio assumia o papado sob o nome de Francisco, quebrando uma série de recordes pontificais: é o primeiro papa nascido na América, o primeiro latino-americano, o primeiro pontífice do hemisfério sul, o primeiro papa a utilizar o nome de Francisco, o primeiro pontífice não europeu em mais de 1200 anos (o último havia sido Gregório III, morto em 741) e também o primeiro papa jesuíta da história.

Enfim, de volta à nossa história. Eleito Papa em 13 de março de 2013, nosso bom Francisco inicia sua primeira viagem internacional em 22 de julho, justamente para a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Francisco escolheu se deslocar do Aeroporto do Galeão para o Palácio da Guanabara, onde se daria seu primeiro encontro com as autoridades, num carro comum da Fiat, apenas o motorista e ele, no banco traseiro do lado direito com as janelas abertas, Apesar do pânico da segurança e da quantidade de pessoas que se aproximaram dele, num engarrafamento no meio do caminho, Francisco, na viagem toda, não abriu mão dessa rotina, janelas abertas para os apertos de mão do povo.

Como disse, não sou de correr atrás de Papas. Na quinta-feira, 25 de julho, terceiro dia da visita, o Sumo Pontífice veio receber as chaves do Rio de Janeiro no Palácio da Cidade, à rua São Clemente, a menos de uma quadra da vila onde moro, na Real Grandeza. Um instinto natural de curiosidade – e o cacoete de jornalista – me levaram até a frente do Palácio naquela manhã fria e cinzenta, mas o Papa só apareceria ao longe – sei lá quando – na sacada do Palácio, bem afastado da rua. Desisti. Voltei ao meu trabalho de tradução. Liguei automaticamente a televisão, vi o Papa dar uma bênção especial a nossa estrela do basquete, Oscar Schmidt, que lutava contra um câncer. Como disse, tudo aquilo acontecia a um quarteirão da minha casa. 

Em 2020, Muggiati ao lado do cartaz que anunciava o lançamento do filme "Dois Papas", de Fernando Meireles,
lançado na Netflix em 2019. (Foto: arquivo pessoal)

Quando vi que o Papa partiria para a etapa seguinte de sua programação, uma visita à favela de Manguinhos, deduzi logo que, por questões de segurança, ele jamais tomaria o Túnel Rebouças pela São Clemente, mas seria obrigado a pegar a Real Grandeza.


Bichon bebê ao chegar em casa, supimpa, em 2001

Eu acabara de perder a viralata querida Phoebe. A poodle branquinha Bichon estava quase terminal com câncer no útero. E a caçula Mel, uma poodlezinha caramelo, também aguardava sua vez. Veterinários atribuem esses cânceres ao fato de as cachorras não terem tido filhos, ou não terem sido castradas. Mas havia controvérsias: muita gente falava nos componentes cancerígenos das rações industrializadas – algo que as autoridades sanitárias nunca investigaram seriamente. Num impulso, pensei: o Papa Francisco, que tomou o nome do santo padroeiro dos animais, vai salvar a Bichon (o nome veio de uma amiga da minha mulher que, ao ver a poodlezinha branca, perguntou: “Mas ela não é um bichon frisée?”) A Bichon se protegia do frio com um agasalho de tricô terrivelmente brega, nas cores marrom, verde-musgo, amarelo e fúcsia. Corri com ela para a frente da vila e cheguei à calçada da Real Grandeza no momento exato em que Sua Santidade se aproximava, sozinho no banco traseiro de sua Fiat banal, com a janela do lado direito aberta, justamente aquela que dava para mim, Ergui a poodle no seu adereço kitsch bem alto acima da minha cabeça. A rua estava deserta. O gesto bizarro chamou a atenção de Francisco, a uns quatro metros do dono e da cachorra, ele fixou o olhar sobre nós, abriu aquele seu sorriso sereno e simpático e acenou, como que abençoando a cachorrinha doente.

Vaidoso da minha intervenção pontifical, passei a imaginar que a cura da Bichon seria arrolada como um dos primeiros milagres do Papa Francisco no seu futuro processo de canonização. Ledo engano. Exatos sete meses depois – em 25 de fevereiro de 2014 – a Bichon morria e era enterrada no meu “pet cemetery” particular, debaixo da casuarina no canteiro do fundo da vila,

Desculpe, hermano Francisco, fico te devendo esta, mas tenho certeza de que você é tão legal que essas coisas de beatificação e canonização não te fazem a menor falta, Afinal, você já vive e trabalha em estado natural de santidade."

(*) A título de contexto -  por José Esmeraldo Gonçalves  -  Com o mundo mais uma vez voltado para as coordenadas geográficas da Praça de São Pedro e ainda sob o impacto da morte de Francisco, o blog Panis cum Ovum reposta a matéria acima que mostra o quanto a visita do Papa Francisco ao Rio de Janeiro em julho de 2013 tocou a vida, a rotina e a memória de Roberto Muggiati.  Na primeira frase, Muggiati diz que "nunca correu atrás de papas". Uma verdade parcial. Como diretor da antiga revista Manchete, ele comandou maratonas jornalísticas no rastro dos pontífices. Como no dia 6 de agosto de 1978, quando morreu Paulo VI. A Manchete se mobilizou para colocar rapidamente nas bancas edições especiais sobre as exéquias e, em seguida, a eleição do novo líder da igreja católica. Foram noites viradas para o diretor e equipe de repórteres e fotógrafos que produziram centenas de páginas sobre o assunto que mobilizava o mundo. João Paulo I foi eleito em 26 de agosto. Em 28 de setembro de 1978, o Vaticano comunicava a morte inesperada e chocante do novo papa. A antiga Manchete, assim como todos os veículos jornalísticos, correu atrás do fato e foi levada a um estranho looping, obrigada a repetir o roteiro de pautas com o novo papa: de novo, especiais com cobertura do  velório, da eleição e da posse de João Paulo II...     

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Pré-memórias da redação: Fazendo cinema na Curitiba de 1962 • Por Roberto Muggiati

Tive uma participação curiosa na filmagem de As moradas no primeiro semestre de 1962. Jornalista curitibano desde 1954 na Gazeta do Povo, passei uma temporada em Paris entre outubro de 1960 e fevereiro de 1962 como bolsista do governo francês estudando no Centre de Formation des Journalistes. De volta a Curitiba, trabalhei na Secretaria (ou Departamento) de Cultura do governo Ney Braga, sob a direção de Ênio Marques Ferreira, até o início de agosto de 1962, quando parti para uma temporada de três anos em Londres (até junho de 1965) contratado para trabalhar como Programme Assistant no Serviço Brasileiro da rádio BBC. Conheci Sylvio Back por volta de 1956-57, éramos colegas de imprensa, ele trabalhava no Diário do Paraná, onde editava um suplemento cultural chamado “Letras & Artes”, do qual eu era assíduo colaborador. O cinema era um tema importante, eu diria até dominante no suplemento. De volta a Curitiba em 1962, reatei minha amizade com o Sylvio. Encontrei-o em seu primeiro casamento e trabalhando na redação local da Última Hora, um arrojado projeto de Samuel Wainer com a edição produzida em Curitiba, impressa em São Paulo e distribuída diariamente em tempo hábil nas bancas de Curitiba. (O editor da UH paranaense era o paulista Ary de Carvalho, que elevou a venda do jornal de 6000 para 23000 exemplares diários. Depois ele fundou o jornal Zero Hora em Porto Alegre e se tornaria proprietário de O Dia do Rio de Janeiro.) 

Solteiro, eu morava em casa de meus pais, à Rua Carlos de Carvalho esquina com Francisco Rocha, e rodava toda noite pela Curitiba boêmia no carro da família, um DKW, carro popular fabricado no Brasil entre 1958 e 1967 sob licença da fábrica alemã do mesmo nome.

Senti uma diferença notável entre a Curitiba que deixei em outubro de 1960 e aquela que reencontrei em fevereiro de 1962, com a radicalização política do confronto entre direita e esquerda, que acabaria levando ao golpe militar de 1964. Sylvio Back – mesmo ganhando a vida como jornalista – começava a dedicar mais horas do seu tempo ao sonho que faria dele um dos cineastas mais profícuos e polêmicos do país. Naqueles primeiros meses de 1962 iniciou a filmagem, com uma câmera na mão e muitas ideias na cabeça, do documentário As moradas, focalizando as primeiras favelas que apareciam na periferia da cidade. À falta de equipamento adequado para efetuar travelings, encontramos uma utilidade para o DKW de meus pais.

Eu ao volante e o Sylvio empunhando a câmera debruçado perigosamente sobre a janela traseira, fazíamos pequenos takes  de filmagem, percorrendo distâncias de cinco a dez metros. Orgulho-me muito dessa participação – ainda que tosca e improvisada – no filme inaugural da bela carreira do amigo Sylvio Back.

Infelizmente, passados 62 anos, ainda não vi o produto final. Não tive acesso a um DVD de As moradas e – por inadequação técnica ou humana – nunca consegui abrir um link que me permitisse ver o filme. Mas espero um dia vê-lo e resgatar através de suas imagens o ar fresco das manhãs outonais daquela Curitiba perdida.

Escrevi o texto acima em resposta a um e-mail de Rosane Kaminski, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná, especializada na obra cinematográfica de Sylvio Back. Ela já publicou dois livros sobre os longas-metragens que ele fez quando ainda morava no Paraná e escreve atualmente sobre o primeiro filme dele, As moradas, lançado em 1964. No final da tarde quente do primeiro domingo de dezembro, abri mão não do lazer – o descanso do escritor é escrever e estou mergulhado numa matéria interminável para a revista Piauí – e concentrei minha memória naqueles seis meses ensanduichados entre dois anos de Paris e três anos de Londres – um período perdido, ma non troppo, em Curitiba, que na minha autobiografia intitulei Seis meses num DKW. Pouco antes da meia-noite, Rosane me respondeu, “exultante” com o depoimento, e presenteou-me uma cópia de As moradas digitalizada pela Cinemateca Brasileira.  Viajei no tempo ao longo daqueles dez minutos de imagens desbotadas, sentindo-me às vezes ao volante do DKW. A trilha minimalista, com os estudos para violão de Villa-Lobos tocados por Turíbio Santos – lembrando incrivelmente a cítara do húngaro Anton Karas em O terceiro homem – conferem dramaticidade ao texto despojado, isento de qualquer ilusão (“Hoje só há liberdade para morrer. Os homens nem mais soltam grunhidos perturbadores.   Toda essa longa viagem, no entanto, promete uma chegada, pois os homens se revezam e não desistem”.)

http://www.bcc.org.br/filmes/880756

sábado, 12 de agosto de 2023

Por uma cabeça • Por Roberto Muggiati

 

Com a enfermeira Andressa, na UPA- Botafogo. Foto de Cláudia Alves 

Com a bandagem que lembrou Apollinaire quando ferido na Primey Guerra Mundial. Foto Lena Muggiati 


Como a morte não vem me buscar – esse joguinho já está até ficando chato – eu resolvi cair e me quebrar de novo no meio da noite. Desta vez cortei a cabeça no ventilador de ferro, na parte alta e traseira (da cabeça, é claro). Contive o sangue com papel toalha e voltei a pegar no sono. O chão de tacos ficou todo respingado de vermelho. Não quis incomodar a Lena que dormia o sono dos inocentes. Quando chegou nossa cuidadora, a Cláudia, deliberamos que o grau de gravidade do caso merecia uma ida a um hospital. No quesito saúde, recebo tratamento exclusivo da rede UPA d’Or, a minha unidade favorita é a de Botafogo. Minha idade provecta, 80+, foi logo abrindo todas as portas, me atenderam num tempo recorde, a enfermeira limpou o local do ferimento, a médica deu uma picada de anestesia no cocuruto e costurou-me três pontos com aquela agulha curva que parece um anzol. Para fixar o curativo, a enfermeira Andressa enlaçou minha testa com uma bandagem que me lembrou aquela foto famosa do poeta Guillaume Apollinaire. (Fiz depois uma foto-homenagem ao inventor da palavra “surrealismo”, que combateu pela França na Primeira Guerra, recebeu um estilhaço na fronte em 1916, mas só foi morrer em 9 de novembro de 1918, dez dias antes do armistício, aos 38 anos, da pandemia de antanho, a gripe espanhola.)

Pensei na data, 9 de agosto, algo especial? Sim, 78 anos da segunda bomba atômica, a de Nagasaki, só lembrei da data porque os japoneses ficaram injuriados com a dobradinha “Barbie/Oppenheimer” que, em nome das sacrossantas bilheterias, veio tingir com tons róseos de leviandade um dos episódios mais trágicos de nossa história recente, a Bomba de Hiroxima.

Com bandagem na testa e bengala de quatro pontas, resquício da fratura do fêmur, resolvi, já que estava no Baixo Botafogo, ir tomar um café no Depanneur e procurar um filme na Livraria da Travessa. (Hoje vivo isolado em Laranjeiras, do outro lado do implacável paredão do Corcovado e do Dona Marta.) Achei o que queria, A Via Láctea, do mestre Buñuel. Estou revendo os principais filmes estrelados por Delphine Seyrig – e não são poucos, ela brilha ainda mais em O charme discreto da burguesia – para escrever um perfil da atriz do recém-eleito “melhor filme de todos os tempos”, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Atriz de Resnais, Truffaut, Joseph Losey, Fred Zinnemann, Jacques Demy, William Klein, Don Siegel, Marguerite Duras, entre outros, Delphine, morta em 1990, reinará suprema até 2032, dona absoluta das três horas e meia do filme de Chantal Akerman, aclamado agora pelo colegiado da Sight&Sound, quase 50 anos depois do seu lançamento, em 1975.


quarta-feira, 19 de julho de 2023

Flanando na chuva • Por Roberto Muggiati

London Albert Bridge depois da chuva. Foto Roberto Muggiati

Ponte Vecchio, Florença/Reprodução Instagram

Não sei se é coincidência ou tendência, mas tenho visto muita coisa sobre a arte de flanar nas folhas (sim, ainda sou daqueles que lê as folhas, ou meramente as folheia...). O Estadão desta terça dedicou duas páginas ao assunto (Como vagar por cidades ao lado de escritores) e aguardo ansioso o livro que encomendei à Estante Virtual Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres (quem sabe já estaria a caminho uma versão “transflâneuxx”?)

Gostaria de contribuir aqui com uma variante sobre o tema que pratiquei em meus dias de Paris, Londres e adjacências: o contrassenso de flanar na chuva. E não o fazia por excentricidade, mas por mera necessidade. Nos três anos que morei em Londres, conheci muito pouco do Reino Unido, apenas um Natal em Bath, uma ida a Stratford para uma nova encenação de uma peça de Shakespeare e uma escapada dominical ao País de Gales. Britânico de raiz, eu passava as férias no “Continente”. E como tinha férias! Solteiro descompromissado, muitas vezes emendava um dia normal de trabalho no Serviço Brasileiro da BBC com a transmissão noturna ao vivo. Isso me rendia “comps”, compensações que eu ia somando para gozar duas ou até três férias por ano. A Itália era um dos destinos favoritos e foi assim que me encontrei no verão de 1963 em Florença, no momento em que jornais do mundo inteiro noticiavam a devastação do meu estado natal, o Paraná, por um dos maiores incêndios florestais da história. Hospedado no centro monumental de Firenze, eu já estava no meu terceiro dia sem poder sair por causa de um a chuva persistente. Alguém me avisara “Florença é o penico do mundo”  – mas não dei ouvidos. Só faltava pedir à dona da pensione que me ensinasse a fazer crochê, mas meu lado rebelde se insurgiu. Vesti minha valente capa impermeável Burberry e saí na chuva. Vocês não podem imaginar a sensação de liberdade, tendo Florença só para mim, despida das hordas turistas. Pude observar detalhadamente a placa no chão da Piazza dela Signoria, QVI FU IMPICCATO ED ARSO FRA GIROLAMO SAVONAROLA, “aqui foi enforcado e incinerado Girolamo Savonarola”, evocando o frade rebelde executado em 1498. Ou atravessar o rio Arno pela Ponte Vecchio. Ou simplesmente vagar pelas ruas de pedras seculares. Numa de minhas andanças noturnas ouvi música de piano emanando da igreja do Santo Spirito, era o concertista chileno Claudio Arrau numa apresentação gratuita, interpretando a Sonata Les Adieux de Beethoven. 

Sonata No. 26 in E-flat Major “Les Adieux”, Op. 81a: II. Abwesenheit (Andante espressivo) - YouTube 

Clique AQUI 

Em Londres continuei a saudável prática – propícia a resfriados ou a uma eventual pneumonia – no meu “quadrilátero sobre o Tâmisa”: a extensão do Embankment na margem norte e a do Battersea Park na margem sul do rio, ladeadas pelas pontes Albert e Chelsea, quatro quilômetros de percurso. Uma vez me aventurei um pouco mais longe para o sul, até Clapham Common, onde ficava o prédio de Graham Greene destruído por uma bomba na Segunda Guerra. Ele localizou ali a casa da amada em The End of the Affair /Fim de caso (1951). No romance, meu favorito de GG, a heroína morre de uma infecção pulmonar agravada por ter caminhado na chuva em Clapham Common. 


Hoje vejo flanar na chuva como uma atividade sem futuro. A temperatura amena que ela requer foi violentada pelo aquecimento global. Há violência nas ruas, balas perdidas prontamente achadas. 

E os humanos passaram a preferir capas de chuva berrantes de PVC. 

Impermeáveis da Burberry se tornaram exclusividade do pet elegante...

domingo, 16 de julho de 2023

Meu encontro (literal) com Jane Birkin • Por Roberto Muggiati

Jane Birkin morreu aos 76 anos. A causa da morte não foi divulgada.
 Há alguns anos a atriz e cantora sofreu um AVC. 


Com Serge Gainsburg.


Em Cannes, também com Gainsbourg.

Em 1969, ela concorreu ao Festival Internacional do Filme
do Rio de Janeirocom o longa Wonderful 

Jane Birkin chocou as plateias ao currar, com uma amiga, o fotógrafo do filme Blowup (1966), de Antonioni. De periguete anônima nessa cena de sexo explícito, a atriz londrina saltou para protagonista em Wonderwall (1968), com trilha sonora assinada pelo beatle George Harrison. Depois de um casamento-relâmpago com o compositor John Barry, Birkin iniciou um relacionamento com o ator-chansonnier  Serge Gainsbourg, quando contracenaram no filme Slogan. Em 1969, Gainsbourg e Jane gravaram o dueto  Je t'aime... moi non plus. Ele havia escrito a música para Brigitte Bardot, com quem tivera um caso antes de conhecer Jane. Je t’aime provocou um escândalo mundial: interpretada aos sussurros, a canção simulava uma relação sexual, com direito a um orgasmo, encenado (ou, segundo alguns, real) de Jane. Sua execução foi banida nas rádios da Espanha, Islândia, Itália, Iugoslávia, Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia e denunciada publicamente pelo Vaticano. No Brasil, a ditadura militar, rápida no gatilho, proibiu prontamente a canção.

Ouçam AQUI

Je t'aime moi non plus Legendado.Serge Gainsbourg & Jane Birkin -Original videoclip - YouTube

Apesar da imagem festiva na cama, o casamento não se segurou. Jane descreveu Serge como “um homem muito difícil, alcoólatra e violento. ”  A filha, Charlotte Gainsbourg, 51 anos, teve a sorte de herdar o melhor de cada um e se tornou uma grande atriz, com atuações marcantes em Melancholia e Ninfomaníaca. 

Por conta da disponibilidade do repórter, tive com a jovem Jane Birkin um contato físico que eu poderia descrever no mínimo de bizarro. Foi durante a cobertura do 2º Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, em março de 1969, a serviço da revista Veja, da qual era editor de Artes e Espetáculos. Acompanhava os tititis crepusculares (com duplo sentido) das celebridades na pérgula do Copacabana Palace quando o eterno moleque Roman Polanski arremessou Jane Birkin na piscina famosa. A atriz passou raspando como um rojão, ainda tentou se agarrar a mim, mas felizmente não me levou no seu mergulho azul – logo eu, totalmente enfarpelado. Polanski concorria no festival com o sinistro O bebê de Rosemary, meses antes de ter a mulher Sharon Tate, com bebê na barriga, chacinada em Los Angeles pelos fanáticos do bando de Charles Manson. Jane Birkin representava o filme Wonderwall no festival carioca. O prêmio Gaivota de Ouro coube ao épico hípico argentino Martin Fierro, que nada tinha a ver com aquele mundo maluco em que vivíamos então.

sábado, 8 de julho de 2023

Meu Chá das 5 na Twinings • Por Roberto Muggiati

 

• O frontão ornamentado pela estátua de um leão dourado e pelas figuras
de dois chineses lembra as origens da bebida. 

• A loja do Strand 216 continua aberta ao público, 317 anos depois.


• A loja da Twinings disponibiliza concorridos cursos
de provador de chá.

• Monsieur Hercule Poirot não abre mão da sua tisana.
Fotos: Divulgação

Entre agosto de 1962 e junho de 1965 trabalhei no Serviço Brasileiro da BBC em Londres. Ficava na Bush House, um prédio que ocupava todo um quarteirão em forma de semicírculo. A parte curva era o Aldwych, a reta era o Strand. Na sua inauguração, em 1929 foi chamado “o edifício mais caro do mundo.” No número 216 do Strand ficava a primeira casa de chá da Grã-Bretanha, a Twinings, aberta em 1706 e ainda em funcionamento. Seu fundador, Thomas Twining, já trabalhava aos nove anos como aprendiz de tecelão; depois de um período na East India Company, tornou-se comerciante de chá por conta própria. (O logotipo da firma, criado em 1787, é também o mais antigo do mundo em uso continuo.)

A proximidade da casa de chá da Twinings, uma caminhada de duzentos metros, nos ensejava uma “tea break” diária por volta das quatro horas da tarde. Era para nós, funcionários da BBC, uma rotina banal. Não nos dávamos conta de que tomávamos o melhor chá do mundo na casa de chá mais antiga do mundo, então no vigor dos seus 256 anos.

Voltando ao Brasil, fiquei mais de 50 anos sem tomar chá. Na minha recente recuperação da fratura do fêmur, descobri a série Poirot (1989-2013) da ITV britânica e virei espectador compulsivo do detetive belga de Agatha Christie, magistralmente interpretado por David Suchet, com um elenco incluindo pesos pesados como Sarah Miles, Barbara Hershey, Elizabeth McGovern, Elliot Gould, Edward Fox e Michael Fassbender. O cinema é um deflagrador de apetites e as cenas em que o chá era servido em close com bules e xícaras de porcelana mexeram com minhas papilas gustativas. Surpreendentemente, encontrei no meu plebeu (apesar do nome) Mercado Princesa uma modesta oferta de saquinhos da Twinings, comprei uma caixa no sabor Limão com Gengibre, de um gosto instigante. (Meus favoritos em Londres eram os tradicionais Earl Grey, Prince of Wales e o English Breakfast Tea).

Dos 70 episódios da série Poirot só me restam ver onze. É “adieu, Hercule, mon ami.” Talvez volte à série do Sherlock com Jeremy Brett, ou à do comissário Maigret, com Bruno Cremer. Mas o hábito retomado do chá deve continuar, pelo menos enquanto durar o inverno.


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Meu café da manhã na Tiffany's, Natal de 1976 • Por Roberto Muggiati

Audrey Hepburn em "Bonequinha de Luxo"
("Breakfast at Tiffany’s") durante a cena-título na loja da griffe em Nova York.
Foto:Divulgação Paramount  

O coraçãozinho da Tiffany sobre o tubinho preto da Audrey Hepburn.


Para ler ao som de Moon River, da trilha de Bonequinha de Luxo: Audrey Hepburn e Henry Mancini

https://www.youtube.com/watch?v=Bk93NaY70Tg

Quando viajei com minha mulher Lina para Nova York em dezembro de 1976 eu já estava namorando a Lena, colega de trabalho na Bloch. E apaixonado. É uma situação terrível essa superposição de casamentos. No futebol imperava a nova estratégia de Coutinho e seu jargão parecia ter tudo a ver comigo: overlapping, ponto futuro, polivalente... 

Uma manhã acordei cedo, Lina dormia ainda, fui caminhar por NY, já toda decorada para o Natal. Tinha visto num jornal a promoção especial para namorados da Tiffany, que ficava perto do meu hotel. Aquela saída sozinho era um crime deliberado, com a intenção de comprar o pendente de coraçãozinho de prata para a Lena, custava apenas US$19,99, mas era uma lembrança inestimável.

Lina tinha estabelecido protocolos especiais para nossa união informal. Fã de Sartre e Simone, propunha uma franqueza total. Caso um de nós se apaixonasse por outra pessoa, informaria ao parceiro. Ingênuo, cumpri o combinado e confessei que estava apaixonado pela Lena. Lina reagiu da pior maneira possível. Era nove anos mais velha do que eu, que era catorze anos mais velho do que a Lena. Ferida na autoestima, decidiu vingar-se arrancando todo o meu dinheiro. Não só ficou com nosso apartamento na Rua das Acácias, na Gávea, como com uma pensão mensal. Tive de recomeçar do zero com a Lena e em abril de 1978 casamos em cerimônia coletiva no cartório da Djalma Ulrich, em Copacabana. Lina, que era casada com o maior doleiro do Rio, podre de rico, tinha assinado a separação em branco, abrindo mão de seus direitos. 

Quis conhecer a Lena e o insólito encontro se deu justamente dentro do nosso fuscão diante da porta do prédio do Russell, 804. Entrou para as “memórias da redação” com toda a galera da Bloch assistindo das janelas e torcendo por algum derramamento de sangue. Lina repetia o protocolo de “passagem de pasta” ao qual me submetera em Paris, quando decidimos morar juntos, prometendo que cuidaria dela com o maior desvelo ao seu amante francês, Jerôme – um arquiteto que circulava pelos bulevares numa Porsche de capota arriada, como nos melhores filmes da nouvelle vague. 

Ao contrário do marido doleiro, Lina era péssima nos negócios: vendeu o apartamento da Gávea, comprou um studio em Paris, mas foi ludibriada e acabou perdendo o imóvel. Em 1983, voltou ao Rio e entrou na justiça contra mim. 

Só em 1987 – dez anos após o fim de nossa união – mediante uma polpuda quantia que levantei com meu Fundo de Garantia da Bloch, ela me deixou em paz. Nunca mais a vi, nem no seu enterro, em 2009, aos 80. 

Outro dia, mexendo nos seus guardados, Lena reencontrou o coraçãozinho da Tiffany, que estava sumido há décadas. Um reencontro providencial: eu não tinha meios para lhe dar uma lembrancinha de rubi por nossos 45 anos de casamento, completados em abril.

terça-feira, 3 de maio de 2022

O primeiro muguet de maio • Por Roberto Muggiati

Vendedoras de muguet de 1° de maio. Paris, virada dos anos 1950/1960. Place Victor Basch. Foto de Izis, fotógrafo francês (1911-1980). Divulgação/ArtNet


São coisas que a gente só aprende em Paris. No dia 1º de maio é costume usar na lapela um buquezinho de muguet (lírio-do-vale). Em 1961, o feriado caiu numa segunda-feira, no começo da tarde eu caminhava pelos Champs Élysées abarrotados com minha primeira namorada francesa, Jacqueline, uma gracinha, Vários quiosques e ambulantes vendiam a florzinha, Jacqueline comprou uma e espetou na minha lapela. Conheci a moça uma semana antes, no lançamento do romance American Express do poeta beat americano Gregory Corso. O editor Maurice Girodias, da Olympia Press – o homem que publicou Lolita do Nabokov – levou os remanescentes do fim de festa em dois táxis para cearem no La Coupole, em Montparnasse. Jaqueline e eu saímos de lá de mãos dadas. Foi uma noite de lançamento de romance duplo...

No 1º de maio, eu subia o Champs com a amada na mão e uma ideia na cabeça. Perto da Étoile ficava o palacete de Paulo Berredo Carneiro, embaixador do Brasil na Unesco. Sua mulher se recusava a deixar o Brasil, Paulo se dava bem na sua solteirice em Paris. Seu sobrinho, Octávio Carneiro Lins, meu melhor amigo, morava com ele. Eu tinha livre acesso à mansão do 19 rue Auguste Vacquerie, sempre com a porta literalmente aberta, nem chave tinha. Aquele salon era para mim o Du Côté de chez Carneirô. Adentrei o palacete com Jacqueline – a francesinha ficou impressionada – não havia ninguém por lá, logo nos pusemos à vontade, deitamos e rolamos nos sofás do salão neorrococó. 

Conhecedor profundo da alma humana, Paulo sabia muito bem os usos galantes que sua entourage fazia de sua casa, até mesmo os estimulava.  Por isso – elegante como só ele – costumava chegar sempre assobiando bem alto para alertar os eventuais transgressores. Foi o tempo justo para que Jacqueline e eu nos recompuséssemos e cumprimentássemos o embaixador, que apenas sorriu de leve. A minha “primeira vez”, em Curitiba, dez anos antes, fora marcada pelo cheiro acre dos maços de arruda que a polaca tosca tinha na sua mesinha de cabeceira. Agora, em Paris, Veni, vidi, vici: da minha primeira vez com uma francesa, ficou para sempre o suave aroma do muguet.