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sábado, 21 de novembro de 2015

O roteiro dos motéis do Rio de Janeiro, em 1952, segundo crônica de Antônio Maria publicada na Manchete

Desde os primeiros números, a Manchete caracterizou-se por oferecer aos leitores o texto observador de bons cronistas. Antônio Maria foi um deles. Na crônica abaixo - da seção Pernoite - ele faz o Roteiro da Niemeyer, rumo a São Conrado, Barra, Estrada das Canôas, então quase desertos, mas com os primeiros motéis a atrair amantes. Um retrato, quase uma fotografia, de uma época.


por Antônio Maria (*)
"Você começa a viagem no Hotel Leblon e vai indo pelo asfalto velho, cansado de tantos Circuitos da Gávea, de tantos automóveis em viagens de amor. Do lado direito, a pedra e à esquerda, o mar. Contam-se histórias de dezenas de suicídios e o caso mais comentado é aquele da moça inglesa, que caiu no mar, com automóvel e tudo, sem que alguém jamais soubesse do seu corpo ou mesmo pudesse garantir se foi suicídio ou desastre.
Uma ladeira brusca e, lá embaixo, o Colonial, lugar onde gente séria não vai, nome que senhora bem casada não ousa dizer. A faixa de asfalto é estreita e os carros que vêm em sentido oposto correm muito e não baixam os faróis. Cada curva é um susto e um risco de vida; e são dezenas de curvas fechadas, espremidas, que o guiador tem que fazer colado em sua direita, com o coração na mão, embora. de vez em quando, ponha a mão no coração da namorada.
Depois, a baixada, onde surgem, aos potes, os bares abandonados. com um garçon bem triste debruçado em cada balcão. A gente morre de pena do dono daquele lugar sem fregueses, às moscas, dia e noite. Mesas vazias, prateleiras empoeiradas e o garçon sonolento atrás do balcão, só para constar. No fundo, há um quintal enorme, cheio de automóveis e vinte ou trinta quartos, servindo a núpcias permanentes. Mesmo no auge da luta contra o amor ilegal e ambulante nunca mexeram com aqueles hotéis de fachadas comoventes. São os únicos lugares onde, sem o luxo de várias espécies de matrimônio, pode-se amar sem castigo.
E a estrada segue. Um clube de golf (jôgo de chatice histórica, disputado por quem tem boa pronúncia de inglês. Consiste em dar-se uma traulitada numa bola e sair-se, com uma porção de gente atrás, procurando onde a bola cai. Quem achar, ganha um prêmio, que varia entre jóias, relógios, bijuterias, etc...). Depois do clube, que ocupa um terreno enorme e inútil, uma igreja (e seria absurdo pensar que aquilo não seja uma igreja, uma vez que a tôrre, o sino, as portas ogivais e a cal externa são de igreja) e, defronte, mais um bar sem freguesia, porém com um terreno muito grande, no fundo, que o proprietário aproveitou para fazer pequenos apartamentos mobiliados e servir a quem esteja cansado ou quiser tirar uma pestana. Defronte, um vendedor de milho verde, assado e cozido, caldo de cana, jaca e bananas. À direita, começa a ladeira das Canôas, subida difícil, que matou um corredor francês e onde a maioria dos automóveis bate pino que é uma coisa louca.
Namorada recente é sempre convidada para ver a ponte suspensa - projetada, se não estamos enganados, por uma engenheira. Perto da ponte, param os automóveis, descem os namorados, debruçam-se na grade de ferro e dizem coisas assim: "que beleza! -  e dizer-se isto é obra do homem - as belezas naturais do Rio são incomparáveis - se eu fosse rico, faria uma casa aqui - quem olha muito pra baixo sente vertigem das alturas - você tem coragem de jogar-se daqui? - e se viesse um malfeitor? - dizem que o Drault tem uma casa lindíssima aqui perto - aquela luzinha, lá longe, é um navio - ihhhhhhhhh, eu devo estar toda despenteada e sem um pingo de baton"!
Subindo mais um pouco, acontece uma boite, a cujo proprietário a dupla Fernando Lobo e Paulinho Soledade ainda não vendeu nenhum show. Depois, o caminho segue, faz voltas de cobra e chega, subindo sempre, ao alto da Bôa Vista, lugar quieto, de longa história, a ser contada noutra oportunidade.
Você desce as Canôas e continúa, asfalto fora, em direção ao Joá, bar e restaurante de três andares, com vitrola daquelas automáticas, de bôlhas d'água, servindo tangos e boleros a pares tristes. Bebe-se whisky, cognac ou cerveja e o cheiro de fritura é muito forte, principalmente no térreo. O Joá fecha à meia-noite e não adianta a freguesia pedir para ficar mais um pouco. Desce-se, em seguida, outra ladeira cheia de curvas terríveis e surgem quatro hotéis discretíssimos. dos quais ninguém poderá pensar o menor deslize ou arranhão à moral cristã. Aí surge a ponte dos pescadores e são visto homens e mulheres de short, tomando barquinhos, ajeitando caniços, negociando camarões vivos, falando em robaletes. corvinas, bagres e lances de tarrafa. Ao lado, dois taboleiros com ostras e carangueijos. um vendedor de cachaça e outro de jaca-mole. É distinto perguntar, antes da cada ostra: 'estão frescas"? Nunca faltam duas ou três pessoas, que, sem boas ou más intenções, descrevem alguns envenenamentos provocados por esse molusco, acéfalo e hermafrodita, que vive encerrada numa concha bivalve. O vendedor não tolera a conversa e, para inocentar seu produto, conta o caso de uma moça que se curou de uma úlcera duodenal comendo três ostras por dia, em seu taboleiro.
Depois da ponte, há dois caminhos. O da direita leva ao Corsário, uma boite à base de tango argentino. O da esquerda conduz ao Dina Bar, com o mar de ondas malcriadas bem defronte. Aos sábados e domingos de tarde registram-se alguns afogamentos. Êsse restaurante, há uns tempos, foi famosos pelos seus camarões fritos. seus peixes cozidos, suas lagostas genuinamente pernambucanas e seus whisky de dose farta. Depois, construíram-se algumas dependências no quintal e os aluguéis dêsses aposentos começaram a render mais que a cozinha. Resultado: os camarões, os peixes e as lagostas não são mais aquêles.
Aí termina o roteiro Niemeyer. Há poucos lugares do mundo onde a semente do amor tenha proliferado tanto. Que Deus o conserve e abençôe os seus visitantes."

(*) Na reprodução do texto foi mantida a grafia da época