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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A história reescrita... e o cafezinho que mudou opiniões e mentes

por José Esmeraldo Gonçalves
Quem disse que a história não é uma disciplina dinâmica? Com o tempo, os fatos são reinterpretados, acomodam-se às circunstâncias, adaptam-se às campanhas político-partidárias.
A morte recente de um embaixador que teve alto cargo no Itamaraty no governo Geisel, em plena ditadura, levou parte da mídia a acionar a tecla delete sobre o passado. Sob a motivação da homenagem ao embaixador, o Itamaraty da ditadura chegou a ser exaltado como uma ilha de rara competência e muita democracia.
Não foi bem assim.
Documentos levantados pela Comissão da Verdade e papeis que perderam o selo de top secret no Departamento de Estado, em Washington, provam que o Itamaraty nunca foi uma "ilha de democracia' em meio ao regime ditatorial. Ao contrário, foi um braço de longo alcance do governo militar. Diplomatas foram cassados, outros relegados a postos obscuros e exilados foram vigiados e perseguidos. Na outra ponta, certas carreiras ganharam impulsos extraordinários. Mesmo quando a ditadura fez a coreografia política de deixar o poder mantendo no lugar o alegórico José Sarney, funcionários do Itamaraty, a "ilha de democracia", ainda tiveram respaldo suficiente para destruir documentos comprometedores, assim como fez a maioria dos setores administrativos da ditadura na superfície ou nos porões.
O Itamaraty colaborou com a Operação Condor que funcionou até 1980 e tem marcas de assassinatos políticos nas coronhas que circularam pelas ditaduras do Cone Sul.
Um dos artigos publicados recentemente celebra a atuação do falecido embaixador Luiz Felipe Lampreia quando, no posto de porta-voz do Itamaraty, durante o governo Geisel - o ministro das Relações Exteriores era o notório Azeredo da Silveira -, "abriu" a instituição aos jornalistas credenciados e procurou manter boas relações com a imprensa. Um coisa, digamos, gentil.
Também não foi bem assim.
Em 2008, em depoimento ao Centro de Documentação (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, o próprio embaixador Lampreia reconhece que aquele relacionamento "amistoso" com a mídia era, na verdade, uma política do governo militar.
Reprodução Estadão
O Brasil tinha naquele momento sérias disputas com a Argentina, incluindo aí a questão de Itaipu e o projeto argentino da hidrelétrica de Corpus, com o qual os militares brasileiros não concordavam. Em meio a esse clima, Buenos Aires enviou para Brasilia um embaixador que, segundo gravações do CPDOC, começou a "trabalhar" a imprensa brasileira, convidando jornalistas para um café quase que diário. Segundo Lampreia, o argentino influenciava os jornalistas. No depoimento, ele usa a expressão "fazia a cabeça das moças", ao destacar que a maioria entre os repórteres era de mulheres. A imprensa brasileira, "influenciada" pelo cafezinho do embaixador argentino, na avaliação do governo militar revelada por Lampreia em áudio, passava a refletir as posições de Buenos Aires. Foi assim, como uma reação estudada do Itamaraty, que Lampreia assumiu o cargo de porta-voz e adotou a precisamente a estratégia argentina de cafezinho e relações-públicas com os jornalistas. Ele instituiu um briefing diário no Itamaraty. Ou seja, a "aproximação" com os jornalistas relembrada nessa semana, após a morte de Lampreia, era uma tática do governo Geisel. É fato que, além da rubiácea com as repórteres, Lampreia procurou os donos dos principais jornais. A estratégia funcionou. O depoimento do embaixador ao CPDOC inclui um trecho revelador: "Aí o Geisel ficou perplexo, e chamou o Silveira e disse: 'O que você fez com o Estado de São Paulo para o Estado de São Paulo mudar completamente de ponto de vista?', conta ele, para exemplificar como o governo operou naquele momento para mudar opiniões e mentes da grande mídia.
E, no caso específico, nem precisou apelar para a grosseira censura.