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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Carnaval é na Manchete. Saíamos todos no Adolpho Bloco




 Por ROBERTO MUGGIATI

Nos meus tempos de rapaz, eu adorava Carnaval. Coisa curiosa, na última sexta-feira, o Rio já tomado pela folia, de repente me vi no final da Rua da Lapa, já na Glória, a caminho da casa de jazz TribOz. Dei-me conta então de que, 60 anos antes, eu caminhava pelo mesmo lugar, à mesma hora, no meu primeiro dia de Rio de Janeiro. Esbaldei-me no baile de domingo do Clube Curitibano e saí direto para o aeroporto Afonso Pena. Lá, pelas sete da manhã, peguei um Douglas DC3 no voo Curitiba-Rio e me hospedei no Hotel Regina, no Flamengo. Nada de descansar. Deixei as malas no quarto e sai pelas ruas do centro para acompanhar o Carnaval. No fim da tarde, naquele mesmo local na divisa Lapa-Glória, uma traveca mulata de dois metros de altura me deu uma patolada inesquecível, uma verdadeira epifania momesca. Enfim, vale esse nariz-e-cera para dizer que eu adorava o Carnaval.
Foi a partir de 1975 que começou minha overdose de Carnaval. Investido da função de diretor da revista Manchete – no lugar de Justino Martins – passei a ficar aqueles três dias prisioneiro das edições de Carnaval. Sim, naqueles tempos nós esgotávamos três edições seguidas: a pré-carnavalesca, a de Carnaval e ainda a de pós-Carnaval. A pré se valia de um evento que era um factoide criado pela própria revista. Com a cumplicidade do Comodoro do Iate Clube do Rio de Janeiro – que era amigo do Adolpho Bloch – a Manchete promovia o baile “Uma Noite no Havaí.” As mais bonitas garotas-de-programa da Zona Sul eram arrebanhadas pela produção da Manchete, enfiadas em ônibus fretados e desovadas no entorno da piscina do Iate, na Urca. Havia peitinhos à mostra, mas não se publicavam tais fotos – a revista seria recolhida. Ficávamos no limiar entre o erótico e o pornô. Para as garotas, aquilo era o seu catálogo – uma foto de página inteira valia um considerável aumento de michê. Fechávamos no sábado, com uma foto do baile na capa. Muitos cavalheiros nos telefonavam ou até procuravam na redação, temerosos de que publicássemos sua foto abraçado a uma “havaiana” – que certamente não era a sua “legítima metade.” (Na época, durante o verão, o Rio ficava entregue não às baratas, mas às “cigarras” – aqueles maridos que, pretextando negócios e trabalho, despachavam a família para a Serra, ou para a Região dos Lagos, e ficavam na calorenta metrópole... se esbaldando, é claro.)
Descansávamos até o sábado de Carnaval, quando começava a verdadeira pauleira. Resumindo: era preciso muita rapidez e jogo de cintura para editar uma revista em três dias e meio. Quilômetros de celuloide eram expostos e revelados. A qualidade exigia fotos em grande formato da Hasselbald, a sucessora da Rolleiflex. Cromos em 6x6 ou até em 7x5. As cenas mais dinâmicas eram flagradas em 35 milímetros. Os rolos de filmes dos diferentes eventos eram recolhidos por motoqueiros e trazidos para serem revelados no laboratório. Os banhos das emulsões químicas tinham de ser vigiados atentamente para evitar qualquer queima de filme. A edição das fotos era uma epopeia. As tiras de cromos subiam do laboratório envolvidas em plástico protetor. O Alberto de Carvalho fazia a pré-seleção, com seu lápis cera vermelho, marcando um X nas melhores fotos. Uma equipe cortava cada cromo e o emoldurava para a projeção. Os cromos grandes eram colocados na travessa linear; os 35cm, no carrossel. Todo mundo assistia à projeção – da alta diretoria aos contínuos. A reação daquela vintena de pessoas – de diferentes classes sociais – servia como uma espécie de pesquisa de opinião para o editor. Ele anotava mentalmente as imagens campeãs; e o Alberto anotava o número de cada foto e já colocava uma seleção das melhores na “churrasqueira”, uma mesa de quase dez metros de comprimento com visor de acrílico iluminado por lâmpadas frias (que faziam um calor danado). Aí o editor (eu) escolhia as fotos e desenhava a paginação para o chefe de arte, o grande Wilson Passos.
Não era só o desfile das escolas do Rio e de São Paulo (que construiu o seu sambódromo também), havia ainda o tititi dos camarotes, o desfile de fantasias do Hotel Glória, os Galas Gays e Scalas da vida e os bailes do Copacabana Palace e do Morro da Urca, a Feijoada do Amaral, etc. Tinha também a Bahia com seus afoxés e trios elétricos; e Olinda e Recife, com os bonecos e a apoteose do Galo da Madrugada. Todo esse material se deslocava fisicamente, nos primeiros voos, dentro de malotes, para ser revelado no Rio. Acompanhávamos o desfile das escolas de samba (Rio e São Paulo) e fechávamos as últimas páginas na manhã de terça-feira com as escolas cariocas da noite de segunda. Lembro que chegávamos à redação às quatro ou cinco da manhã e começávamos a esquadrinhar as fotos das últimas escolas. De repente, um sol rubro se erguia sobre a linha do horizonte marcada pelo mar na entrada da baía de Guanabara e banhava com seus primeiros raios as madeiras nobres e o assoalho em tábua corrida. Não tínhamos tempo de admirar a vista, mas ela estava ali, ao nosso alcance: o Pão de Açúcar à direita, a Fortaleza de São João à esquerda. Era a hora clássica do pão com ovo – nosso emblema gastronômico, que nomeia esse blog. Um prato dividido por um acirrado cisma ideológico: a natureza do pão era uma em Manchete, outra em Fatos&Fotos (o pão de forma versus o pão francês, já contamos essa história antes...)
Lá pelas onze da manhã, voltávamos para casa, com a consciência do dever cumprido. Às vezes, Adolpho Bloch nos levava, em petit comité, para almoçar em algum restaurante caro e arcava com a conta. A revista pós-Carnaval tinha uma capa definida. Reuníamos numa foto de estúdio cerca de dez destaques do Carnaval, das escolas, dos desfiles de fantasias e outras freguesias (um ano, por exemplo, a musa do Carnaval foi a estrelinha que acompanhava o Presidente Ithamar Franco no camarote presidencial e, no calor do samba, ergueu os braços num gesto que, suspendendo a camiseta, revelou que a moça esquecera as calcinhas em casa... ou em algum outro lugar.) O Tarlis Baptista, encarregado da produção, tornava-se naqueles dias a pessoa mais procurada do Rio de Janeiro: todo mundo queria sair naquela capa.
E assim se passaram 21 anos, até que, em 1996 – Adolpho Bloch morto no anterior – o Jaquito contratou uma troika de São Paulo para salvar a revista. Pela primeira vez em 21 anos, deixei a direção da Manchete. Vi-me investido da função de Editor de Projetos Especiais e deslocado para a cobertura do terceiro prédio do Russell, uma sala imensa que eu dividia com o Mauro Costa, da TV, também jogado para escanteio. Foi a melhor época da minha vida na Bloch, longe daquele insensato mundo, esquecido dos chatos – minha sala era acessada através de uma escada em caracol que só pessoas em plena forma física podiam galgar. Mas o sonho durou pouco. Quando chegou o Carnaval de 1997, Jaquito deu férias aos paulistas e me convocou para fazer a edição de Carnaval. Alegou: “Esses caras não entendem nada de Carnaval...” Ainda fechei as edições carnavalescas de 1998 e 1999. Em 2000, com o pé quebrado, fechei as edições de Fatos&Fotos – tinha a Fatos&Fotos Gay, bilingue, um hit, lembro de uma madrugada, revendo os últimos leiautes, a perna sobre uma cadeira, a muleta canadense ao lado – e passa pelo corredor das redações uma figura fantasmagórica, uma sílfide deslizando como se fosse alçar voo. Era a Isabelita dos Patins, sobre as rodinhas como sempre, e nos ajudando na consultoria de assuntos e gírias gays.

Todo esse trabalho, o desencanto com as engrenagens sórdidas do Carnaval comercializado, transformado em programa de TV, a euforia fingida das celebridades, me fez cansar do Carnaval. Sem mencionar que o de hoje, com subvenções até de um ditador de um país africano faminto, nada tem a ver com aquele de 1966, quando fui escalado para entrevistar um jovem talento da Princesa Isabel, Martinho da Vila. Seja como for, vale a lembrança: além de outras áreas, a Manchete pontificou –e muito – também no Carnaval.