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sábado, 30 de agosto de 2014

Roberto Muggiati escreve: "A primeira vez que vi Paris"

Roberto Muggiati na Paris de 1961: encontros com atrizes e jazzistas. Foto Acervo RM
por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo) 
Em fevereiro de 1961 eu morava na Place Dauphine, na Île de la Cité, aquela ilha no centro do mapa de Paris. Parece um navio puxando uma barcaça menor, a Île Saint-Louis. Encontrei um hotelzinho barato, o City Hôtel, no gargalo da praça, que dava para o Pont Neuf. Se a Ilha era o coração de Paris, a Place Dauphine era “a vagina de Paris,” segundo o jornalista Jacques Lanzmann.
Um triângulo equilátero, a praça era fechada na base pelo Palais de Justice, que eu passei a frequentar. O julgamento do açougueiro ciumento que matou a mulher a cutiladas – era como assistir de graça àqueles filmes legais de André Cayatte, tipo Somos Todos Assassinos. A Notre-Dame, catedral das catedrais, ficava por ali, seus portais esculpidos, as mandalas multicoloridas de seus vitrais, suas torres gêmeas e as soturnas gárgulas confidentes de Quasímodo.
Naquele inverno ameno – a temperatura passou dos 20ºC e banhistas afoitos mergulharam nas águas do Sena – eu descia toda manhã para o bico da ilha, o Square du Vert-Galant, apelido dado ao sedutor rei Henrique IV. O feito talvez tenha inspirado. Foi ali que Cortázar localizou o misterioso crime do conto “Las Babas del Diablo”, que Antonioni transplantou para um parque londrino em Blow-Up – Depois Daquele Beijo.
Os livros que eu lia na pracinha verdejante eram os últimos lançamentos beats da City Lights, vendidos no Le Mistral, livraria da rive gauche que dava para as rosáceas da Notre-Dame. Ou a literatura socialista da livraria Maspéro, onde comprei Aden-Arabie, de Paul Nizan, que começava assim: “Eu tinha vinte anos. Não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida.”
Minha primeira incursão literária em Paris foi um desastre. Apresentei-me a uma aula sobre zen-budismo no Collège de France. Um colegiado de anciãos de terno me encarou desconfiado. A aula era em chinês antigo e eu saí batido, trombando com uma garota americana, mal informada como eu. Bunny, cabelos de milho, morava num quarto sem janela. É algo que você nunca deve fazer em Paris: morar num quarto sem janela. Mesmo bolsista pobre, eu morava numa mansarda no quinto e último andar do City Hôtel, a janela cortada no telhado de ardósia inclinado. A vista dava para o Sena e o Museu do Louvre. Toda noite eu fazia os vinte minutos a pé que separavam meu hotel do Centre de Formation des Journalistes. Atravessava sempre pelo grande mercado dos Halles, que Zola batizara de “o ventre de Paris”. A cada noite escolhia um cenário: as hortaliças vicejantes, as verduras e os legumes de uma variedade infindável; ou as carcaças inteiras de bois, penduradas em ganchos e enfileiradas numa linha de montagem vermelha e sanguinolenta; os peixes e frutos do mar, em seus leitos de gelo picado e todos os matizes de cinza e azul.
Encontros
Era difícil conhecer escritores em Paris. Atrizes de cinema e músicos de jazz a cada esquina. Cheguei a uma proximidade perturbadora de Brigitte Bardot, Françoise Arnoul e Marina Vlady, musas sonhadas na distante Curitiba. Conversei na porta de um teatro com Farley Granger, ator de Festim Diabólico e Pacto Sinistro de Hitchcock. Toda manhã eu via Bud Powell tomando café e água mineral na terrasse do Deux Magots; estive a centímetros de Thelonious Monk, no Blue Note.
Escritores, só mesmo os mortos do cemitério do Père Lachaise, que visitei com o cineasta Joaquim Pedro. Uma exceção: o poeta beat Gregory Corso, com quem bati longos papos nos cafés. Na porta do Beat Hotel pedi uma entrevista a Allen Ginsberg, mas ele saiu correndo. No Old Navy Café, em St Germain, fazia ponto Arthur Adamov, um franco-russo ligado ao Teatro do Absurdo que nem os franceses conheciam. (Morreu de uma overdose de barbitúricos dez anos depois.)
Tempos depois fiquei sabendo que Julio Cortázar frequentava o Old Navy. Gabriel García Márquez, seu fã, o viu ali certa vez, escrevendo horas a fio, mas não ousou interrompê-lo. O peruano Vargas Llosa, contou em Travessuras da Menina Má, que costumava receber quentinhas pela porta dos fundos do restaurante México Lindo, onde tinha um amigo na cozinha. Entrei muitas vezes no México Lindo, pela porta da frente. Fico a imaginar, um futuro Prêmio Nobel de Literatura comendo os restos do meu prato...