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domingo, 13 de dezembro de 2015

Janis in Rio, 1970

Janis Joplin na Praia da Macumba. Foto antológica de Ricky Ferreira. 
Janis Joplin na Avenida, Rio, Carnaval de 1970. Foto Manchete

Janis Joplin durante coletiva de imprensa no Copacabana Palace, matéria publicada na Manchete. Ricky está logo atrás de JJ. Foto de Nilton Ricardo
Topless na Praia da Macumba, o barato do Fogo Paulista e a Mercedes-Benz que Deus negou: aí Pearl comprou um Porsche


Por ROBERTO MUGGIATI

Meados de janeiro de 1971, uma experiência transcendental: Janis Joplin canta a cappella Mercedes-Benz: “Oh, Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz?/My friends all drive Porsches, I must make amends./Worked hard all my lifetime/no help from my friends/So oh Lord, won’t buy me a Mercedes-Benz?”
É uma noite abafada e estou num apartamento de frente para o bloco de pedra do Cantagalo. Nosso anfitrião recebeu, dias depois do lançamento, em 11 de janeiro, o último LP (póstumo) de Janis Joplin, Pearl. Na verdade, Mercedes-Benz foi a última faixa que ela gravou, três dias antes de morrer de uma overdose de heroína num motel de Los Angeles, em 4 de outubro de 1970.
Janis viveu seus dois últimos verões nesse ano: primeiro no Brasil, depois nos Estados Unidos. Ela saltou de paraquedas no Rio em pleno Carnaval, foi ver as escolas de samba na Avenida (então Presidente Vargas), hospedou-se no Copacabana Palace (logo a expulsaram por nadar nua na piscina), conheceu o Rio roqueiro de Serguei e do Big Boy e fez topless na Praia da Macumba, onde foi flagrada por seu cicerone carioca, o fotógrafo Ricky Ferreira. 
Quando Janis morreu, a Manchete publicou com exclusividade aquelas fotos da roqueira descontraída, na praia, entornando uma garrafa inteira de Fogo Paulista, um goró suicida: licor de ervas aromáticas com ingredientes naturais de plantas selecionadas e mel de abelhas. Graduação alcoólica de 36%vol, conteúdo 960ml. Nosso chefe de reportagem João Luís Albuquerque correu atrás do Ricky e garantiu a exclusividade das fotos para a revista carro-chefe da Bloch.
Tive acesso à audição privilegiada de Pearl através do Ricky Ferreira, justamente, que se tornou meu amigo depois da publicação de suas fotos em Manchete. O detentor do cobiçado LP era um amigo do Ricky, o Mauro, um hare krishna muito doido e muito rico, de bata, cabeça raspada, mantras e tudo mais.
A essa altura o rock começou a mexer com minha vida. Em 1968, publiquei meu primeiro livro, Mao e a China, uma declaração de amor ao comunismo chinês e à revolução cultural. Uma semana depois, o AI-5 desabou sobre nossas cabeças e não se podia mais escrever sobre política. Foi então que me voltei para a contracultura, uma nova arma para combater o Sistema. O rock era a voz principal da contracultura. Deixei de lado o jazz e voltei-me para o som e a fúria de Rolling Stones, Beatles, Dylan e The Who. 
Quando Jimi Hendrix morreu, duas semanas antes de Janis Joplin, escrevi a matéria principal da Manchete. Começava assim: 
“WHAAAAMMMMMM –BOOOMMM –SSSHHHH-BLAMMMM-RAT-AT-TAT-RAT-AT-AT-WHIIIIZZZZZ-BOOOMMMMMM – São bombas explodindo, granadas e napalm, rajadas de metralhadoras, em meio ao silvo dos jatos e ao ronco dos helicópteros. O ano é 1969, mas o Vietnã está a milhares de quilômetros de distância. Aqui, nas suaves colinas de Woodstock, trinta mil jovens entorpecidos pelo sono e cansaço acordam em sobressalto, num barulheira demencial, sem saber o que está acontecendo. É Jimi Hendrix interpretando o hino americano, Star-Spangled Banner – o ato final daqueles ‘três dias de paz e amor’ que marcaram toda uma geração.”

Carlos Heitor Cony me conhecia pouco, gostou do texto e me convidou para chefe de redação do Ele&Ela, que ele dirigia. Eu tinha passado um ano da direção da Fatos&Fotos, a Gata Borralheira das revistas da Bloch, e estava meio no limbo das redações. A ida para o Ele&Ela foi providencial. Uma revista masculina que, graças à ditadura, não podia publicar nus – só mulheres bonitas em biquinões – então o texto inteligente e sofisticado era a saída. Lá estavam o crítico de arte Flávio de Aquino, o crítico de cinema Paulo Perdigão, o crítico literário Mário Pontes. E, é claro, melhores do que as mulheres estampadas em nossas páginas, a dupla de secretárias do Cony, eficientíssimas: a longilínea loura escandinava Mia e a dengosa Lúcia, de cabelos morenos. Para quem tinha o pique de fechar jornais, ou revistas semanais (eu vinha da Manchete, da Veja e da Fatos&Fotos), uma revista mensal era uma moleza. Sobrava tempo para escrever outras coisas. Foi ali que Cony escreveu o que ele considera sua obra maior, o transgressor Pilatos. Foi ali que, a partir de um artigo sobre a relação do rock com as drogas, a perigosa viagem do som, eu escrevi Rock: o grito e o mito/A música pop como forma de comunicação e contracultura. Mário Pontes, na mesa ao lado, que com Rosemary Muraro era editor da Vozes, comprou imediatamente a ideia. Rock: o grito e o mito saiu em 1973, teve quatro edições, as duas últimas atualizadas em 1981, foi publicado em 1975 em espanhol pela Siglo Veintiuno (Madri, Mexico, Buenos Aires, a editora de Borges e Cortazar), fez a cabeça dos jornalistas de música brasileiros e foi adotado por muitos cursos de comunicação pelo país afora.
O Porsche da Janis Joplim. Reprodução
Ah, sim, não deixemos a memória afogar o gancho jornalístico. Janis pediu a Deus um Mercedes-Benz, mas acabou comprando um Porsche usado por 3.500 dólares, que mandou pintar em cores psicodélicas. Agora, levado a leilão em Nova York, o Porsche de Janis foi arrematado por 1,7 milhão de dólares. Logo uma canção para denunciar o consumismo. . . . Mas o pathos de Janis suplicando volta à nossa lembrança, com o detalhe brutal de que foi sua última gravação, sozinha com sua voz, e com a passagem irônica em que conclama “Everybody” para fazer parte do coro – e esse “todo mundo” não se manifesta, está ausente, e ela prossegue, cantando sozinha até morrer.