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sábado, 2 de abril de 2016

Memórias da redação - FUTEBOL: A FALTA QUE A CRÔNICA FAZ

por Onotonio Baldruegas

Em junho de 1956, há quase 60 anos, a seleção brasileira jogou em Assunção. A Manchete Esportiva - revista semanal criada em 1955 e que sobreviveu até meados de 1959 - publicou as fotos da "batalha" (qualquer jogo na América do Sul transformava-se, então, em uma "guerra") e fechou aquela cobertura com uma crônica de Nelson Rodrigues. O Brasil ganhou de 5 x 2.

Na semana passada, o time de Dunga jogou em Assunção. Outros tempos. Nem a CBF era CBF. Atendia pelo nome de CBD.

Nelson era capaz transformar jogo de 'purrinha' em prosa épica. O que ele escreveria sobre o último Paraguai 2 x 2 Brasil? Vamos ficar sem saber. Mas é certo que chutaria a crônica no melhor ângulo. Encontraria um caminho. Talvez identificasse no campo algum jogador paraguaio travestido de Bela Lugosi, o astro dos filmes clássicos de terror, para explicar o pânico, os minutos de poltergeist, que a atual seleção vive quando sob pressão.

Dunga, que não é o queridinho da mídia, já está no paredón. De nada vai adiantar trocar o técnico. A "Geração 7X1"  precisa de um exorcista para apagar a lembrança dos mortos-vivos do jogo contra a Alemanha.

Na crônica, Nelson destaca a atuação de Zizinho, autor de dois gols, embora já estivesse no ocaso da carreira. E atribui a vitória ao fato de aquela seleção ter como base um clube, o América. Curiosamente, há quem defenda que a seleção utilize como base o melhor clube brasileiro do momento e importe alguns "europeus", os mais dispostos a vestir camisa do Brasil, para determinadas posições. O próximo compromisso da seleção nas eliminatórias para a Copa da Rússia será em setembro. Por acaso, no começo de temporada na Europa, quando os jogadores, lá, estarão voltando de férias. Os daqui, em pleno Brasileirão, estarão em atividade e obrigatoriamente em forma. Digamos que até lá, Corinthians, Cruzeiro, Atlético Mineiro, Internacional ou Grêmio estejam mostrando jogo? Poderia estar em um deles, ou qualquer outro, desde que na ponta das chuteiras, a base para uma seleção capaz de exibir conjunto. Coisa que parece impossível com os "importados".

Sem nostalgia, mas em reverência à memória do futebol e da crônica esportiva (esse gênero jornalístico que já teve craques das letrinhas como o próprio Nelson, além de Mário Filho, Armando Nogueira, Ney Bianchi, João Saldanha...), leia, abaixo, a crônica de Nelson Rodrigues publicada na Manchete Esportiva sobre o jogo Brasil 5 x 2 Paraguai, em Assunção.

Os trechos assinalados em preto poderiam perfeitamente valer para os dias de hoje.

Substitua, em uma das frases destacadas, os nomes de Ferreira, Canário e Edson, do América,  pelo nome de Neymar, do Barcelona.

Você entenderá o que Nelson Rodrigues quis dizer.



GOLEADA EM ASSUNÇÃO

por Nelson Rodrigues (para a Manchete Esportiva

Ontem, vencemos, mais uma vez, em Assunção. Desta feita, ampliamos o marcador: 5 x 2!

Um amigo meu, que, pendurado num rádio de pilha, ouviu a irradiação, não se conteve. Quando Hilton enfiou o tiro de misericórdia, ele bufou: "5 x 2 é troço pra chuchu!" E era.

Acresce que vencer em Assunção é uma calamidade. Lá, a torcida costuma abrir uma faixa com os seguintes dizeres: "Vencer ou Morrer". Ao esbarrar nessa legenda ferocíssima, o quadro visitante treme nos seus alicerces. No Maracanã há um fosso cordial, que protege, que encouraça, que torna inexpugnáveis os 22 jogadores, os bandeirinhas e o juiz. No Paraguai, não. Ninguém é inatingível: todos são suscetíveis, em caso de invasão, de um minucioso linchamento. A hipótese de massacre, que ronda a equipe de fora, pode liquidar-lhe o ímpeto, a gana, a garra.

Pois bem: apesar disso, o escrete levou tudo de roldão, tudo, e obteve duas vitórias monumentais, sendo que a última de goleada. Mas, no feito dos nossos, há dois aspectos que convém destacar. Digo "aspectos" e já especifico: duas lições. Vejamos a primeira: nada como o escrete que é um clube disfarçado. Que mandamos nós a Assunção? Um América com leves enxertos do Bangu e de São Paulo. O nome do Brasil não foi bem um nome, mas um deslavado pseudônimo do clube rubro. Logo ao primeiro jogo, verificou-se que não se podia desejar uma fórmula mais sábia e mais eficaz. Pela primeira vez, um escrete nascia feito, pela primeira vez um escrete rendia na estréia, cem por cento. Seja do ponto de vista técnico e tático, seja do ponto de vista emocional, o comportamento da equipe encheu as medidas.

E por quê? Eis a verdade, amigos: o jogador, em campo, atende mais ao apelo do clube do que ao da pátria. Examinemos o caso de um Ferreira, de um Canário, ou de um Edson. Ele funciona melhor como americano do que como brasileiro. Ponham-no dentro do clima normal de um América e ele será um. Desloquem-no para o escrete e ele será outro. Como americano, ao lado de outros americanos, o jogador se realiza e se afirma, e alcança sua plenitude de craque. Em Assunção, os brasileiros pareciam estar em casa, porque continuavam no América. E mesmo os enxertos foram foram rápida e implacavelmente assimilados. Daí a compacta, indissolúvel e eufórica unidade do time.

A seleção brasileira que jogou contra o Paraguai, em 1956.
A CBD formou convocou um time com base no América e Bangu. Em pé:
Djalma Santos, Pompéia, Edson, Formiga, Zózimo e Hélio.
Agachados: Canário, Zizinho, Leônidas da Selva, Romeiro e Ferreira.
A outra lição da "Taça Oswaldo Cruz" foi, a um só tempo, de futebol e de vida.  De fato, as duas vitórias ensinaram que tudo passa, menos Zizinho. O que nós chamamos idade, o que nós chamamos tempo, o que nós chamamos velhice nada mais é do que um jogo de aparências e de ilusões. A idade ricocheteia por Zizinho sem atingi-lo. Em Assunção, ele se projetou aos olhos do público e dos companheiros, isento de tempo. E vamos e venhamos: sua velhice  é mil vezes mais nova, quinhentas vezes mais nova do que a a adolescência dos seus companheiros.

Zizinho sentado, lendo jornal ou gibi atua, influi, decide, mais do que os brotinhos do futebol. 

Assunção veio confirmar o que se sabia, isto é, que todos os caminhos do futebol levam a Zizinho. Na hora de escalar um escrete, ele se torna a nossa alucinante ideia fixa. Não conseguimos ignorá-lo, excluí-lo, pô-lo na cerca.

Mesmo as pessoas que não gostam ou não entendem de futebol, que não sabem se a bola é quadrada ou não, mesmo essas pessoas conhecem Zizinho e só Zizinho.

Com uma eternidade assim irritante e assim obstinada, é possível que daqui a duzentos anos ainda o convoquem para salvar a pátria.