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sábado, 23 de maio de 2015

Dado Villa-Lobos lança o livro "Memórias de um Legionário", um mergulho na trajetória épica da banda Legião Urbana.


por José Esmeraldo Gonçalves (especial para a Contigo!) (*)
Foi há 20 anos. Verão de 1995, mais precisamente, dia 14 de janeiro. Ao fim de um show no palco da casa de espetáculos Reggae Night, em Santos (SP), a banda Legião Urbana desplugou os instrumentos do que seria seu último concerto de rock.
Na plateia, ninguém sequer imaginou que fosse o fim. Se avisado, o espectador que acertou uma lata de cerveja na cabeça de Renato Russo (1960-1996) talvez tivesse poupado o vocalista naquela noite. Provavelmente apenas um dos integrantes da banda, o guitarrista Dado Villa-Lobos, 49, tenha intuído definitivamente, após o último acorde, que não dava mais para fazer shows ao vivo. O grupo vinha de uma longa turnê, estava exausto, embora impulsionado pela animação da plateia santista, que gritava o nome da Legião. O contraste no clima da apresentação era a apatia do vocalista. Quando foi alvejado, Renato protestou, parou de cantar e passou a andar pelo palco, antes de se deitar no tablado. “Não demorou para que nos perdêssemos completamente devido à ausência de uma voz que nos guiasse”, recorda Dado que, em um raro vídeo desse show, aparece tentando comandar o grupo - além do baterista Marcelo Bonfá, 50, estava no palco a Banda Tralha, como apoio, com os músicos Gian Fabra 55, Fred Nascimento, 51 e Carlos Trilha, 45 – com um “ar assustado”, segundo sua própria descrição. Com o plateia já impaciente, Renato voltou cambaleante mas inspirado, fez discurso, reconquistou o público e levou a banda a concluir o show. Ao final, incidente à parte, os fãs deliravam. Tudo deve ter parecido quase normal. Mas não para a Legião que, nas semanas seguintes, passou a recusar todos os convites para apresentações ao vivo, incluindo a participação em uma noite especial no Hollywood Rock, um dos mais badalados festivais da época. O grupo preferia não correr o risco de assinar contratos e não poder cumpri-los. Eles voltariam a se reunir, em estúdio, um ano depois, para a gravação de “A Tempestade”, o último álbum. Aquele concerto em Santos entrou para a história como o sinal mais crítico do drama interno que o grupo vivia desde que o líder da banda, Renato Russo, recebera um diagnóstico de HIV positivo. “Ele, naturalmente, ficou mais ciclotímico, com altos e baixos, tinha momentos em que se drogava muito, bebia muito”, diz Dado. Entre o diagnóstico e a morte do vocalista, passaram-se seis anos. A quem se surpreende com o fato de o grupo ter se mantido vivo em meio a uma inimaginável pressão emocional, Dado justifica: “Depois do “Quatro Estações”, lançado em 1989, a Legião se consolidou como uma entidade com vida própria. Estava ali a instituição. Foi logo depois da turnê de lançamento desse disco que Renato Russo descobriu-se doente. Criou-se uma questão que, na minha cabeça, foi definitiva. Era clara a necessidade de se manter o grupo independentemente do que fosse acontecer. A Legião devia permanecer ativa, o Renato ocupado”, recorda Dado. O sentimento do grupo era um só: haviam chegado juntos até ali, atravessariam juntos a última ponte. “Naquele período, a gente gravou os LPs “Cinco”, “O Descobrimento do Brasil” e “A Tempestade”. E o Renato gravou dois discos solo”, lembra Dado que, às vésperas de completar 50 anos, que fará em junho, lança o livro “Dado Villa-Lobos, memórias de um legionário” (Mauad Editora), escrito na primeira pessoa, em parceria com os historiadores e amigos Felipe Demier e Romulo Mattos.
Dado recebeu a Contigo! em seu estúdio no bairro do Horto, na Zona Sul do Rio de Janeiro, montado em uma casa tombada, de 1894, que ele adaptou internamente. É onde passa a maior parte do seu dia. O mesmo espaço é o cenário do programa “Estúdio do Dado”, do canal por assinatura Bis, no qual o guitarrista recebe amigos compositores que mostram suas músicas preferidas. Perto do estúdio, há um campo de futebol onde o ex-Legião costuma jogar uma pelada com os amigos. “A ideia do livro surgiu, na verdade, durante uma dessas peladas. Dois anos atrás, o Felipe Demier, fã da Legião Urbana, perguntou por que eu não escrevia minhas memórias. Foi algo que me fez pensar. Ao mesmo tempo, eu via que a história da banda estava se dissipando através de informações de terceiros que, de repente, não eram adequadas. Resolvi colocar tudo a limpo”, diz Dado, para quem revisitar a própria história valeu como um balanço de uma trajetória de vida intensa e ligada à Legião. Por coincidência, exatamente ao virar cinquentão. “Essa questão da idade começa a me perturbar um pouco fisicamente. Tenho uma tendinite aqui há meses (risos). Os 50 anos são uma idade redonda, um marco, o que significa que já entrei no segundo tempo. Eu faço psicoterapia para descobrir quem eu sou e a idade entra na pauta. Quero manter o espírito alerta, sempre, um corpo que funcione. Continuo jogando futebol mas não com a frequência de antigamente. Pratico uma hora e meia de ioga diariamente e faço ciclismo”, conta. Para ele, gravar centenas de horas de depoimentos para o livro e rever fotos e fatos da carreira valeram como uma terapia extra. “Não só repensar a banda, mas a minha infância, viagens, a chegada em Brasília, os primeiros contatos com a geração que formaria depois a Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude e até os dias de hoje. À medida em que ia colocando as coisas no papel passei a me entender mais e ver, de uma perspectiva de hoje, o que fui. E a partir daí sigo a vida com mais tranquilidade”, avalia com a convicção de quem vira uma página que permanecia aberta. 
Tranquilidade talvez seja, a propósito, uma palavra-chave na vida e carreira de Dado Villa-Lobos. Provavelmente, o traço da sua personalidade que explica a persistência com que lidou com a própria trajetória. “O trabalho na Legião tinha muitos momentos mágicos, a criação, a definição das linhas melódicas. Eram os melhores momentos. Agora, eu também acho que tive um papel de contrapeso, de equilibrar as demandas, negociar os primeiros contratos, ir atrás de advogados e tentar um patamar mais estável para a banda”, conta Dado, admitindo que ter um pé na realidade foi importante nessa fase. Já do ponto de vista artístico, o desafio era fazer as gravadoras entenderem a linguagem musical da Legião. “Não éramos uma banda para divertir, mas para alcançar a cabeça das pessoas. Tínhamos o nosso som, a nossa energia, aquele âmago não poderia ser diferente. O Renato tinha isso muito claro. E essa marca está na primeira frase do primeiro LP que gravamos:  “Tire suas mãos de mim/ Eu não pertenço a você/ Não é me dominando assim que vc vai me entender”. .. (da canção “Será”).
Dado avalia que 1990 foi o ano em que a banda alcançou seu auge. O LP “Quatro Estações” batia a marca de 730 mil cópias vendidas em menos de um ano. Renato Russo estava na capa da Veja como o novo “rei do rock”. Paradoxalmente, foi o ano em que tudo começou a terminar. Renato, levado pelo alcoolismo, havia acabado de sair de uma clínica de recuperação. Além disso, segundo Dado, o vocalista temia estar contaminado pelo vírus da aids e, por isso, os médicos pediram um exame de sangue. “Eu estava junto quando nosso empresário, o Rafael Borges, foi pegar o resultado”, relembra. Mais tarde, o vocalista revelou a amigos que foi contaminado pelo namorado, o americano Scott Hickmon, já falecido, que se relacionara com um paciente terminal de aids. Em um trecho do livro, Dado conta que foi visitar Renato e que conversaram sobre o assunto. No papo, depois da introdução tímida – “bom, sua condição é essa, né”? – Dado, que teve sua diabetes diagnosticada aos 11 anos e, desde então, a controla com insulina, lembrou ao amigo, em uma tentativa de quebrar a tensão do momento, que também tinha uma “condição instável”, embora sem a mesma gravidade. “Cara, estamos nessa condição, então vamos nessa”, disse Dado. A resposta de Renato veio com uma dose de humor resistente. “Somos os dois “éticos” da banda, você diabético e eu aidético”, disse o vocalista, rindo. Dias difíceis viriam, mas a banda se apegou à tarefa de produzir o disco que Dado aponta como o mais difícil da carreira e que, naquelas circunstâncias, teria que superar o mega sucesso do antológico “Quatro Estações”. O doença de Renato Russo foi mantida em sigilo. Eventuais internações não chamavam tanta atenção e eram atribuídas ao alcoolismo e às drogas usuais na vida do vocalista. A Legião vivia seu drama silencioso entre as quatro paredes do estúdio. “A criação acontecendo com intensidade e aquela atmosfera predominando no ambiente. As canções todas eram carregadas pelo momento, pela despedida”, conta Dado, admitindo que tudo isso ”bateu” no último disco, como ficou evidente em canções como “A Via Láctea”, na qual Renato clama sobre a “febre que não passa” e canta “a tristeza não é passageira”. Àquela altura, começavam a circular rumores de que o vocalista da Legião seria soropositivo. No disco, a voz dele sinaliza a fraqueza, mas sua performance foi avaliada pelo críticos, de um modo geral, com respeito ao seu talento. Dado relembra nas suas memórias o último dia em que viu o amigo, em outubro de 1996. “Quando eu entrei no quarto, vi um corpo esquálido como o de um prisioneiro judeu no holocausto, em uma cama de hospital e sob lençóis brancos. Eu fiquei em estado de choque. Ele se virou e o médico lhe perguntou, apontando para mim: “Renato, quem é esse cara aí?” E ele respondeu, antes de se virar de bruços novamente: ´’É o guitarrista da minha banda”. Eu não aguentei: entrei no banheiro e comecei a chorar”. Renato morreu três dias depois. Para Dado, foi um momento de imensa tristeza. Ele confessa que se sentia exaurido. Mas, passado o choque e os tributos a Renato Russo e à Legião, ele e o baterista Marcelo Bonfá descartaram em uma coletiva qualquer possibilidade de a Legião seguir em frente sem Renato Russo. Era a hora de encarar uma nova etapa. “Interessante é que, ainda dentro da Legião, vendo que aquilo já estava de um jeito, procurei fazer outras coisas, buscar novidades. Abri uma loja no Leblon, a Rock It, criei um selo, fui tocar com outras pessoas, buscar uma renovação. Procurei manter o espírito olhando para a frente”, diz, sem negar que a Legião está profundam ente ligada à sua vida e carreira. Foi durante uma apresentação da banda, no Napalm, em 1983, em São Paulo, que ele conheceu a designer Fernanda, 57. Autora do projeto gráfico do primeiro LP da Legião, ele foi empresária do grupo até 1986. Dado e Fernanda estão casados desde então e têm dois filhos: Nicolau, 27 e a Miranda, 25. Nenhum dos dois optou pela carreira musical. “É, nenhum foi pra música. Miranda é estilista. Nicolau estudou cinema na PUC mas hoje é um grande jogador de pôquer. Profissionalizou-se há cerca de três anos. Participa direto de torneios, já venceu alguns. Ele acabou de chegar de Madri e seguirá para Las Vegas onde participará do mundial. Foi surpreendente a escolha, mas vi que para ele era sério”, diz Dado, que foi pai cedo, ainda aos 22 anos. “Era o auge da banda, isso nos sacrificou um pouco, sim. Viajávamos muito, Fernanda ficava, eu ia. Mas tentava estar presente ao máximo. Eles moram conosco até hoje. Não são casados. Não tenho perspectiva imediata de ser avõ, mas daqui a pouco... (risos). A nossa relação com eles é ótima. A adolescência era aquele período conturbado normal, muito embate, mas o tempo reaproxima. São meus amigos, viajamos juntos, temos um diálogo de adultos. Eles me cobram certas coisas, eu cobro deles’, conta Dado.
Quase duas décadas depois do fim da Legião, a música continua sendo seu compasso. Além de estar no palco, criar canções novas, tocar com vários grupos e conduzir o programa do Bis, Dado tornou-se um especialista em musicar filmes. Tem no currículo longas como “Bufo & Spalanzani”, “Pro Dia Nascer Feliz”, além do seriado “Mandrake”. A expertise o leva a promover um workshop de música, on line, de 12 capítulos, na Escola São Paulo. “Gosto do desafio de pegar um filme novo, buscar soluções, colocar a música, isso me motiva”, diz. Recém-saído do processo de literalmente revirar um baú de recordações, ele não é saudosista. Mas, antes de apagar as luzes do estúdio, ao fim da entrevista, deixa escapar uma crítica, com uma nota de nostalgia, sobre o rock, gênero que guiou sua vida e talento. “Acho que hoje, basicamente, é um gênero que não está repercutindo nas pessoas. Vejo a garotada indo mais para um lado por, mais luminoso. Acho que mudou o modelo e não só no Brasil. Não tem mais aquele grupo que vai transformar o planeta. Minha experiência hoje é de ver as pessoas muito conformadas no palco, querendo entreter determinado público. Não há mensagem, não há ideologia”, conclui.
(*) Com trechos extras