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sábado, 30 de agosto de 2014

Paris e sua fama de cidade literária - nos 50 anos de "Paris é uma festa", Muggiati mostra que a cidade não se resume somente à celebrada turma de Hemingway em 1920

Para Henry Miller, o Sena era "como uma grande artéria correndo pelo corpo humano". A foto reproduzida de um cartão postal é de Cartier-Bresson

William Faulkner em frente à Catedral de Notre-Dame, em Paris, em 1925
por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo)
Há 50 anos, saía o primeiro livro póstumo de Ernest Hemingway. Em A Moveable Feast (Paris É uma Festa), ele descreve a vida na cidade nos anos 1920 e sua importância para escritores como ele, Scott Fitzgerald, John Dos Passos, Ezra Pound e outros, que frequentavam o salon de Gertrude Stein. Em 2011, Woody Allen revisitou a cena no filme Meia-noite em Paris, com deliciosas reencarnações de personagens da época (Cole Porter, Josephine Baker, Picasso, Dalí), além dos americanos amigos de Miss Stein, que ela batizou de “geração perdida”.
Ao retratar sua entourage, Hemingway não poupa sequer a si mesmo, um garotão do Meio-Oeste americano jogado às feras na cidade mais cosmopolita do mundo. Particularmente ferino é o perfil de Fitzgerald, em crise existencial por achar que seu pênis era muito pequeno. Ernest leva Scott à seção de escultura grega do Louvre e mostra a ele que o pinto dos rapazes helenos também não era lá essas coisas. Mas nem tudo são farpas no livro e saímos dele com uma suave sensação de nostalgia. Diz Hemingway: “Se você teve a sorte de morar em Paris quando jovem, então, aonde quer que vá pelo resto da vida, ela persiste com você, pois Paris é uma festa móvel."
Mas a Paris literária não se resume à turma de Hemingway. Pelos mesmos cafés de Montparnasse circularam um William Faulkner obscuro, que não deixou marcas, a cabeça já imersa na sua imaginária Yoknapatawpha. O boêmio Henry Miller, que imortalizou a cidade em seus romances autobiográficos, preferia a companhia do fotógrafo húngaro Brassaï e dos escritores franceses Anaïs Nin, Alfred Perles e Blaise Cendrars. No final de Trópico de Câncer, ele escreve: “O Sena flui tão quieto que a gente mal nota sua presença. Está sempre ali, quieto e discreto, como uma grande artéria correndo pelo corpo humano.”
Houve até uma rive noire, a Paris dos americanos negros, o livro Do Harlem ao Sena trata só disso. Escritores como Richard Wright, Chester Himes e James Baldwin fugiram do racismo e fizeram da França sua nova pátria, como muitos músicos de jazz. E, é claro, houve os beats, a partir do final dos anos 1950: Allen Ginsberg, William Burroughs e Gregory Corso instalaram-se no que seria conhecido como Beat Hotel, numa viela junto ao Sena. Burroughs e Corso eram editados em inglês pela Olympia Press francesa, a mesma que lançou Lolita de Nabokov em 1955, seguindo o exemplo da Shakespeare and Company, de Sylvia Beach, que publicou o Ulysses de Joyce, em 1922.
Procope
Mas vamos deixar os amerlauds de lado. Já no século 15, as tavernas estavam cheias de poetas como François Villon (autor do belíssimo verso “Mais où sont les neiges d’antan?/ Onde estão as neves de antigamente?”). O primeiro café literário surgiu em 1686 em Saint Germain-des-Près, o Procope – seu dono era o siciliano Francesco Procopio dei Coltelli. Obviamente, servia café, a exótica bebida importada dos trópicos, e os primeiros sorvetes (sorbets), em taças de porcelana. Próximo da Comédie Française, o Procope foi primeiro um café teatral, mas já no século 18 era um efervescente centro para a discussão das novas ideias. Os Enciclopedistas planejaram sua grande obra lá – Diderot, Montesquieu, Rousseau e Voltaire, recordista no consumo de café, 40 taças ao dia, misturado com chocolate. A Revolução Francesa foi praticamente tramada em suas mesas, por Danton, Robespierre e Marat. O barrete frígio, símbolo da Liberté, foi exibido pela primeira vez no café. Os pais da independência americana, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, também respiraram os ares libertários do Procope. Lá, o estudante brasileiro José Joaquim da Maia pediu o apoio de Jefferson à Inconfidência: “Sou brasileiro e sabeis que minha desgraçada pátria geme em um espantoso cativeiro, que se torna cada dia menos suportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada pouparam para nos tomar desgraçados, com o temor que seguíssemos os vossos passos.”
O genial Atlas of Literature, editado por Malcolm Bradbury, observa que “a rue Chateaubriand em Paris leva à rue Lord Byron e é atravessada pela rue Balzac. Assim Paris comemora a literatura...e evoca um grande período da literatura romântica.” Rejeitando a frieza do classicismo, os escritores do século 19 abriram-se para as emoções e os sentidos. Balzac (nos 95 romances da Comédia Humana) e Victor Hugo (Os Miseráveis) criaram cenas e heróis inesquecíveis. Uma nova força agitava a cena literária, a dos jornais diários, com romances em capítulos semanais, os folhetins. Balzac escrevia horas seguidas, de preferência na madrugada, sustentado pela cafeína: “O café é a bebida que desliza para o estômago e põe tudo em movimento.” Certa vez trabalhou interruptamente por 48 horas com apenas três horas de descanso. Outro que empolgou a imaginação popular foi Alexandre Dumas, com suas aventuras históricas, principalmente a saga dos Três Mosqueteiros.
Em meados do século 19 surge a Paris Boêmia, descrita no livro de Henry Murger, Cenas da Vida Boêmia (1851), que Puccini transformou na ópera La Bohème (1893). Os boêmios eram pessoas cuja ocupação principal era não ter ocupação alguma. No plano social mais rico, a vie bohème rendeu um romance de sucesso, A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, filho, que inspirou a ópera de Verdi La Traviata. Charles Baudelaire escandalizou com suas Flores do Mal; fazia a apologia do haxixe e era um dândi exemplar, com suas roupas extravagantes – passeava pelas ruas num terno malva puxando um cágado por uma coleira.
Nas últimas décadas do século 19, o romantismo agoniza e surgem novos movimentos – o realismo, no romance; o simbolismo e o decadentismo, na poesia. O famoso quadro de Fantin-Latour, Le Coin de Table, reflete a atmosfera da época, incluindo os poetas Verlaine e Rimbaud. Émile Zola faz literatura segundo linhas científicas e proclama; “O realismo é a nudez!” Em 1889, na comemoração do centenário da Revolução, a cidade ganha a Torre Eiffel, um monumento de ferro modelado pelo vento, segundo seu criador. A Boêmia se instala em Montmartre, ao som do can-can e sob as pinceladas dos impressionistas.
A belle époque traz os anos dourados dos salões literários, descritos minuciosamente por Marcel Proust. (Em A Cidade e as Serras, Eça de Queirós – morto em Paris em 1900 – faz também descrições magistrais da sociedade da época.) Nestes “anos de banquete”, boêmia e burguesia convivem em paz, uma se alimenta da outra.
No início do século 20, Paris é “o laboratório de ideias nas artes.” (Ezra Pound). O modernismo nasce numa noite de primavera de 1913, com a tumultuada estreia de A Sagração da Primavera, de Stravinski, pelos Ballets Russes de Diaghilev e Nijinski. Dadaístas e surrealistas levam a arte às ruas, André Breton revoluciona o romance com Nadja (1928), intercalando fotos ao texto.
Existencialismo
A crise econômica e política dos anos 1930 estraga a festa. No dia 14 de junho de 1940 as tropas alemães invadem Paris. Durante a ocupação, os intelectuais franceses mantêm uma complexa e polêmica coexistência com o ocupante e recorrem a uma linguagem cifrada e parabólica em seus romances e peças. “Ter 20 ou 25 anos em 1944 parecia uma tremenda sorte: todas as estradas estavam abertas,” escreve Simone de Beauvoir depois da libertação da cidade pelas tropas americanas. O existencialismo toma conta dos cafés e clubes noturnos de Saint Germain-des-Prés, ao som do jazz e da nova chanson, que tem em Juliette Gréco sua musa maior. Jean-Paul Sartre e Albert Camus escrevem suas obras-primas e discutem a “literatura engajada”. Sartre e Simone fundam a dirigem a revista Temps Modernes. Quando Simone publica O Segundo Sexo (1949), Camus a acusa de “querer desonrar o macho francês”. Já François Mauriac diz a um colaborador da revista: “Aprendi tudo sobre a vagina da sua patroa...” O romance de Simone que descreve o grupo existencialista chamou-se Os Mandarins, inspirado nas duas figuras chinesas que decoram o Café Des Deux Magots. (Por falta de aquecimento nos apartamentos hotéis, os autores passavam o dia escrevendo nas mesas dos cafés.)
O existencialismo foi o último movimento literário de peso na vida da cidade. A própria Paris, na onda da globalização, reduziu seu espaço humanista. Os escritores do nouveau roman se trancaram em casa com seu esteticismo cerebral. E as novas gerações se refugiaram no território totalitário dos shopping malls e das discothèques, como mostra Lolita Pille em Hell – Paris 75016 (2003). É o caso de parafrasear François Villon: “Mais ou sont les cafés d’antan?”
Veja na Gazeta do Povo, clique 



sábado, 14 de novembro de 2009

Se Hemingway tivesse um blog...


"Naquele tempo não havia dinheiro para comprar livros. Eu os obtinha no departamento de aluguel da Shakespeare and Company, que era ao mesmo tempo a biblioteca e a livraria de Sylvia Beach, na rue de l'Odéon nº 12. Nessa rua fria, varrida pelo vento, a Shakespeare and Company era um lugar acolhedor e alegre, com um grande fogão aceso no inverno, mesas e estantes de livros, novidades na vitrina e, nas paredes, fotografias de famosos escritores vivos e mortos. Todas as fotografias pareciam instantâneos, e até mesmo os escritores mortos tinham um ar muito vivo. O rosto de Sylvia era animado, de linhas marcantes, com olhos castanhos tão vivos como os de um pequeno animal e tão alegres como os de uma menina; seus cabelos, castanhos e ondulados, ela os usava penteados para trás de sua bela testa e cortados abaixo das orelhas, na altura da gola do blusão de veludo castanho que costuma usar. Tinha lindas pernas, era amável, alegre e participante, e gostava de fazer brincadeiras e contar mexericos. Jamais conheci alguém que tenha sido mais gentil comigo. Eu era muito tímido quando entrei na livraria pela primeira vez, não tendo dinheiro sequer para me inscrever na biblioteca de aluguel. Sylvia me disse que eu podia pagar o depósito quando tivesse dinheiro, preparou o meu cartão e encorajou-se a levar quantos livros quisesse. Não havia motivo para que ela confiasse em mim dessa maneira. Não me conhecia, e o endereço que lhe dei, rue Cardinal Lemoins, nº74, não podia ser mais pobre. Mas ela foi cordial, encantadora e amabilíssima". (De Paris é Uma Festa, de Ernest Hemingway. O escritor estava revendo as provas desse livro quando se suicidou em 2 de junho de 1961. Foi publicado pela Civilização Brasileira em 1964. Na "orelha", o editor Enio Silveira escreve que a obra "mostra o escritor no momento em que está, por assim dizer, fechando o círculo da sua atividade intelectual". O título, em inglês, é A Moveable Feast. Ênio Silveira traduziu o livro e, um dos seus grandes amigos, Carlos Heitor Cony, sugeriu a versão em português: "Paris é uma Festa". Talvez seja este um dos títulos mais copiados por jornais e revista. Quantas vezes já não lemos O Rio é uma Festa, São Paulo é Uma Festa, Paraty é uma Festa, Búzios é uma Festa...?. Na reprodução, Hemingway e Sylvia Beach à porta da Shakespeare, livraria que ela transformou em ponto de encontro de jovens escritores, no anos 20, em Paris.)