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terça-feira, 29 de março de 2022

Frase do Dia: sobre apalpar a vida

 “Se a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela.”

(Do livro “Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues - Companhia das Letras)

quinta-feira, 24 de março de 2022

O Rosa e o Reaça • Por Roberto Muggiati

Nélson Rodrigues na Manchete. Reprodução Foto de Paulo Scheuensthul

Um desfilava seu perfume pelos salões refrigerados da diplomacia. O outro derramava seu suor pelas redações fedorentas dos jornais. Ambos exímios artesãos das palavras, construíram com sua elaborada bricolagem verbal suas mitologias pessoais: o Sertão e o Subúrbio. Estou falando dos dois grandes escritores que marcaram o século 20 brasileiro: o cerebral João Guimarães Rosa (1908-67) e o visceral 

Nélson Falcão Rodrigues (1912-1980) – o yin e o yang de nossa literatura.

Por que trago Nelson à cena nesta altura do campeonato? Porque, com a reedição dos seus romances pela HarperCollins, ele se tornou um de nossos ficcionistas mais publicados. Depois, porque encontrei no camelô da esquina por dez reais uma edição nova em folha de A cabra vadia/Novas confissões, 470 páginas de um Nelson-por-ele-mesmo. Vou dar só uma amostra, que é a primeira das 85 confissões, intitulada “O ex-covarde”, onde ele desfia o rosário de tragédias da família Rodrigues:

“Sofri muito na carne e na alma. Primeiro foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era ‘filho de Mário Rodrigues’. E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: – ‘Essa bala era para mim.’ Um mês depois meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Corrêas, ouvi a sua dispneia. E  minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: – ‘Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário.’ Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, e sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio. Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato, mas disse tudo. Minha filha era cega.”

Nelson não menciona outro drama imenso. Ele, que gostava, de se proclamar o Reacionário e cutucar as esquerdas, teve o filho Nelsinho, militante opositor da ditadura militar, preso e torturado e, só então, depois de obter a soltura do rapaz junto aos generais de plantão, reviu suas posições e passou a defender a “anistia ampla, geral e irrestrita”. 

Guimarães Rosa. Reprodução
Guimarães Rosa anda meio esquecido nestes dias de modorra intelectual em nosso país tropical. Merecia – e muito – voltar à atenção dos leitores o homem que escreveu “Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte”. O curioso é que a morte de Rosa teve um forte toque rodriguiano. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em agosto de 1963, protelou por mais de quatro anos a posse, receando não resistir à emoção da cerimônia. Finalmente, foi recebido por seus pares na quinta-feira, 16 de novembro de 1967. Em seu discurso chegou a afirmar premonitoriamente: “A gente morre é para provar que viveu”. Ao entardecer de domingo, 19 de novembro, morreu de infarto agudo em seu apartamento de Copacabana. Rosa era um dos indicados para o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano, que coube a um latino-americano de menor brilho, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias.

Nélson Rodrigues também morreu num domingo, três dias antes do Natal de 1980, de complicações cardiorrespiratórias, e foi enterrado também no cemitério de São João Batista – onde sepultaram Guimarães Rosa no mausoléu da Academia. Detalhe: no fim da tarde daquele domingo, o falecido Nélson fazia treze pontos na Loteria Esportiva, num "bolão" com seu irmão Augusto e colegas de O Globo.

Tive o privilégio de conhecer Nélson Rodrigues em carne e osso. Quando adentrava a redação da Manchete, bradava no seu vozeirão abaritonado:

“Salve, Adolpho Bloch, o Cêcil B. de Maille (sic) do jornalismo!” 

Era generoso nos apelidos. Um de nossos colegas, o bronzeado e atlético Cláudio Mello e Souza, foi contemplado com dois: O Remador do Ben Hur e O Havaiano de Ipanema. Numa de suas últimas matérias para a revista Manchete, sobre sua peça A serpente, em 1978, um Nélson já adoentado submeteu-se pacientemente a posar para uma foto com uma ridícula cobra de pano enrolada no pescoço.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Recordando Nelson Rodrigues e o que a Bela da Tarde tem a ver com a Dama do Lotação

por Ed Sá 

Imagine o sujeito, o Nelson Rodrigues, um jornalista naquelas redações sórdidas, fumacentas e barulhentas dos anos 50, produzindo uma coluna por dia para o jornal do Samuel Wainer ao longo de onze anos. Uma tarde ele senta à máquina mal humorado, com dor-de-barriga, endividado, o telefone não para de tocar, a mulher liga de casa, problemas com as crianças, e de repente escreve esta obra-prima que só poderia ter saído da sua cabeça...

Pois desse caos nasceu A Dama do Lotação, da coluna A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues, no Última Hora carioca (nos anos 1970, a Fatos & Fotos republicou muitos contos do escritor dos tempos da UH). A Dama do Lotação virou filme em 1978. Dirigido por Neville de Almeida, e é um dos recordistas de público de todas as épocas do cinema brasileiro. Sonia Braga foi a protagonista no papel de Solange, a mulher casada que nas tardes cariocas embarca em lotações apenas em busca de parceiros para um desembarque rápido em paradas de sexo sem compromisso. 

Filmado há 55 anos, quase uma década depois de Nelson Rodrigues criar sua fogosa Solange, A Bela da Tarde estreou nos cinema em 1967 com a recém-casada Séverine, interpretada por Catherine Deneuve, também aprisionada por desejos sexuais mal resolvidos, e que decide se tornar uma prostituta "temporária" que dá expediente em um bordel de Paris.

Belle de Jour foi dirigido por Luís Buñue. O diretor espanhol também assinou o roteiro, em parceria com Jean-Claude Carrière, inspirado em um romance de Joseph Kessel, escrito em 1928.

Felizes coincidência literárias e cinematográficas. 

Uma diferença é que Nelson criou Solange do calorão da redação da Última Hora respirando cigarros Continental, para os mais abonados, ou Senador para o pessoal que estava na pior. Já Kessel imaginou Séverine ao caminhar bordes de la Seine, onde ficavam muitos... bordeis do começo do século passado. Outra é que a sensualidade da belíssima Catherine Deneuve é um macio magret de canard enquanto o fogo de Sonia Braga é feijoada "estupidamente quente" e com pimenta. Duas musas, dois estilos, dois clássicos.  

A DAMA DO LOTAÇÃO - CONTO DE NELSON RODRIGUES

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:

— Você aqui? A essa hora?

E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:

— Pois é, meu pai, pois é!

— Como vai Solange? – perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:

— Meu pai, desconfio de minha mulher.

Pânico do velho:

— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?

O filho riu, amargo:

— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas… E ela não é a mesma, mudou muito.

Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:

— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!

Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:

— Imagine! Duvidar de Solange!

O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:

— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

A SUSPEITA

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era “um amor”; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: “É um doce-de-coco”. Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia… Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: “Ora essa! Que graça!”. A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:

— Conta o que houve, direitinho!

O filho contou. Então o general fez um escândalo:

— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!

Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:

— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!

A CERTEZA

Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava “certo”. Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:

— Ontem viajei no lotação com tua mulher.

Mentiu sem motivo:

— Ela me disse.

Em casa, depois do beijo na face, perguntou:

— Tens visto o Assunção?

E ela, passando verniz nas unhas:

— Nunca mais.

— Nem ontem?

— Nem ontem. E por que ontem?

— Nada,

Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:

— Vem cá um instantinho, Solange.

— Vou já, meu filho.

Berrou:

— Agora!

Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:

— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:

— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!

Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:

— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!

A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:

— Não, ele não!

Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:

— Ele não foi o único! Há outros!

A DAMA DO LOTAÇÃO

Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez – foi até interessante – coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:

— Um mecânico?

Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:

— Sim.

Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo”. O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?

Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano… Carlinhos berrou: “Basta! Chega!”. Em voz alta, fez o exagero melancólico:

— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!

O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!”. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — “Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!”. Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:

— Morri para o mundo.

O DEFUNTO

Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:

— O jantar está na mesa.

Ele, sem se mexer, respondeu:

— Pela ultima vez: morri. Estou morto.

A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

 


terça-feira, 12 de março de 2019

Futebol - Coutinho, o maior parceiro de bola que Pelé já teve, foi também um dos craques mais discretos do futebol brasileiro.

Sob o olhar de Pelé, Coutinho marca contra o Nacional, do Uruguai.


Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe


Um ataque que só pensava naquilo: o gol. Eram "os tarados da pelota", no dizer de Nelson Rodrigues em crônica para a Manchete Esportiva. 
Fotos: Manchete Esportiva

por José Esmeraldo Gonçalves 

Ele era a outra extremidade da tabelinha mais poderosa da história do futebol. Na ponta mais famosa estava Pelé.

Aos 75 anos, Coutinho morreu em Santos, ontem.

Foi o atacante que formou ao lado de Dorval, Mengálvio, Pelé e Pepe aquele que é tido como o mais forte ataque já montado por um time de futebol. Para os adversários, eram os imperdoáveis.

Não há registro de queixas de Coutinho à hegemonia de Pelé naquele ataque. Que jogador não gostaria de trocar passes com um gênio e de fazer parte de um quinteto que era reconhecido como lenda em tempo real, enquanto a bola rolava, sem esperar o aval da história? Você já ouviu algum craque do Barcelona se queixar por ter Messi ao lado? Pois é. Coutinho apenas reclamava, dizem, quando nos jogos noturnos em estádios de luz de boate os locutores davam como de Pelé alguns gols que ele fazia. E não foram poucos. Não apenas fez história no Santos: fez gols, 368 ao longo da sua carreira no clube, sem deixar de dar incontáveis os passes para Pelé, que só no Santos goleou 1091 vezes. E, bom lembrar, Pepe, ali ao lado esquerdo, fez mais de 400 gols pelo Santos e também recebeu muitas bolas de Coutinho.

Ele tinha apenas 16 anos quando estreou na seleção brasileira em 1959. Foi convocado para a Copa de 1962, estava em grande fase, provavelmente seria o titular, mas uma contusão o tirou de campo ainda no período preparatório. Foi substituído por Vavá, o experiente centro-avante campeão na Suécia.


Em 1959, Coutinho foi o Personagem da Semana de Nelson Rodrigues na Manchete Esportiva, após o jogo Santos 3 X 0 Vasco, que deu o título do Torneio Rio-São Paulo ao time da Vila Belmiro. O Santos começava a escalada irresistível que o levaria a conquistar quase todos os títulos que disputou entre 1958 e 1967, nacionais e internacionais, incluindo os Mundiais de clubes de 1962 e 1963.

Leia um trecho da crônica de Nelson Rodrigues

"E, além de Pelé, o ataque do Santos tem o Coutinho. Lembro-me que ao ouvir falar em Coutinho, pela primeira vez, tomei um susto. Comentei, então de mim para mim. ‘Coutinho não é nome de jogador de futebol’. De fato, o nome influi muito para o êxito ou para o infortúnio. Napoleão, se tivesse outro nome, já seria muito menos napoleônico. Outro exemplo: por que é que Domingos da Guia foi o que foi? Porque esse “Da Guia” dava-lhe um halo de fidalgo espanhol, italiano, sei lá. Ainda hoje o sujeito treme ao ouvir falar em ‘Da Guia”. Mas o Coutinho tem contra si o nome. O sujeito que se chama apenas Coutinho dá logo a ideia de pai de família, de Aldeia Campista, Vila Isabel, Engenho Novo, com oito filhos nas costas e a  simpatia pungente de um barnabé. Pois bem. Apesar de chamar-se liricamente Coutinho, o meu personagem da semana é um monstro, um Drácula, um “Vampiro da Noite” de futebol. Eu não sei se me entendem a imagem. Mas o Coutinho não sugere outra coisa, senão o sujeito que come a bola de uma maneira, por assim dizer, material, física. Ao sair de campo, parece-lhe escorrer dos lábios o sangue, ainda vivo, ainda efervescente da bola recém-vampirizada.
As inteligências simples, bovinas, atrevo-me mesmo a dizê-lo, vacuns, hão de rosnar. “Literatura!”. Parece, amigos, parece. Mas o povo, com seu instinto agudo, sua vidência terrível, reconhece e aponta os jogadores que “comem” a bola, como se a estraçalhassem nos dentes, fazendo esguichar o sangue da redonda. E se, na verdade, existem os “tarados” da pelota, Pelé ou Coutinho há de ser um deles. Com o doce e inofensivo nome de Coutinho, o meu personagem da semana fez, ontem, contra o Vasco, barbaridades sem conta. A um confrade que veio, de avião, do Pacaembu, eu perguntei: “Que tal o Coutinho?” O colega baixa a voz: “Bárbaro!” Insisti: “E o Pelé?” Resposta; ‘Bárbaro” Fui adiante; “E Dorval? Pepe?” A tudo o sujeito respondia, de olho rútilo; “Bárbaro!” Então eu me convenci, de vez, que o ataque do Santos se constitui, realmente, de sujeitos que não respeitam, pelo contrário, brutalizam a bola e cravam, nela, seus caninos de vampiro. Só o Coutinho fez, contra a velhice genial e quase imbatível de Barbosa, dois gols. Dizem que nas bolas altas ele e tornava elástico, acrobático, alado. O seu salto era realmente um voo.
Guardem esse nome de pai de família e de barnabé: Coutinho. Ou muito me engano ou estará ele no escrete brasileiro que, se Deus quiser, vai ser bicampeão, no Mundial do Chile."

Nelson quase acertou a previsão feita com três anos de antecedência. O Brasil foi bicampeão no Chile. Coutinho, que ele saudou na Manchete Esportiva, não jogou.

A contusão o tirou da seleção, mas não o eliminou da história do futebol.

Foi um dos grandes e, talvez, o mais discreto entre os craques brasileiros. 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

A rede social como ela é. E se Nelson Rodrigues navegasse na internet...

Reprodução Twitter


por Ed Sá 

Nelson Rodrigues morreu em 1980. Na época, o mundo ainda estava longe de trocar relacionamentos por conexões digitais. De 1950 a 1961, ele escreveu na Última Hora a coluna "A vida como ela é", crônicas sobre dramas cotidianos, de preferência adultérios, crimes passionais, cobiça da mulher do próximo, crises de ciúmes em velórios e virgens seduzidas e abandonadas.

Nelson lia as notícias na página policial e a partir daí fazia um retrofit literário de pecados e paixões.

A coluna fez sucesso e, nos anos 1970, ganhou um revival durante pouco mais de um ano na revista Fatos & Fotos.

O post acima foi publicado ontem no twitter. Observem que é um conto contemporâneo real em poucos caracteres.

A dinâmica da rede social produz milhares semelhantes a esse, por hora, talvez. Fico imaginado como Nelson Rodrigues lidaria com os pequenos dramas em proporções diluvianas que hoje trafegam no Facebook, WhatsApp, Instagram, Twitter e outro outdoors da condição humana.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Fotomemória - Reacionário ou não? Veja Nelson Rodrigues em um dia de ativista...

Rio de Janeiro, 1979. Nelson Rodrigues participa de reunião de artistas contra a censura de peças teatrais. Daniel Filho conversa com Nelson, que está ao lado de José Wilker e, de blusa branca, Lucélia Santos. Foto de Guina Araújo Ramos (("É  a única foto que me restou, uma ponta de filme que ficou rajada pelo efeito, não sei, do revelador ou do fixador, talvez" )

por Guina Araújo Ramos (do Blog Bonecos da História

Fico sabendo que, nesta data (ontem, 21) , há 38 anos, em 1980, a morte fechava o pano da peça, daquela peça que ele era, o famoso “teatrólogo, jornalista, romancista, folhetinista e cronista de costumes e de futebol brasileiro, e tido como o mais influente dramaturgo do Brasil” (nos termos da Wikipédia), ou seja, o “reacionário” Nelson Rodrigues.

E ele até gostava de se intitular assim... Fez altos elogios aos governos militares, inclusive o do Gal. Médici, o mais radical deles.

Porém, a vida é assim, a vida é como ela é... O destino sabe ser cruel também fora das peças de Nelson Rodrigues... Eis que seu filho Nelsinho passou a lutar contra a ditadura, foi membro do MR-8, e daí preso, torturado, processado várias vezes. Pai e filho, juntos: seu pai não o abandonou, até conseguiu que fosse libertado. Só que o filho não aceitou e ainda fez greve de fome, com outros presos, e foi solto em 1979. E o próprio Nelsinho fala de Nelson Rodrigues: ““O velho já falava em amnistia desde 1975, e escrevera que eu tinha sido torturado, e era contra amnistiar torturadores. Então você já vê que reaccionário era. Ele se dava esse adjectivo por ser contra o comunismo. Era um artista. Foi o cara mais censurado do Brasil.””

Se até Nelson Rodrigues era, será que todo artista, afinal, também não será sempre progressista?

Fotografei Nelson Rodrigues apenas esta vez, para a Amiga, da Bloch Editores. Lembro-me apenas vagamente das circunstâncias... Terá sido uma reunião de artistas para tratar da questão da censura às peças de teatro. E o destaque foi justamente a presença de Nelson Rodrigues, certeza de mais estofo à causa, pela sua importância como o mais importante dramaturgo do Brasil.

É a única foto que me restou, uma ponta de filme que ficou rajada pelo efeito, não sei, do revelador ou do fixador, talvez. Nela, consigo reconhecer, à sua frente, Daniel Filho. E, ao seu lado, José Wilker e Lucélia Santos.

E quem, ao fundo, de camisa listrada? E a loura de blusa estampada, quem será?

ATUALIZAÇÃO EM 8/2/2019

por Guina Araújo Ramos

Bonecos em errata...

Eis que neste início de Janeiro de 2019 surge esta informação: toda a coleção da revista Manchete foi digitalizada pela Biblioteca Nacional!

Ótima notícia!... Ora, tratei de dar uma olhada no material publicado com o crédito “Aguinaldo Ramos”, e tomo conhecimento da pauta que me levou a esta foto do gênio Nelson Rodrigues cercado por artistas de teatro e de cinema. Mesmo que o assunto tenha sido coberto para a revista Amiga, uma das fotos foi publicada na Manchete, na coluna Gente.


Foto: Reprodução: Manchete # 1853, 1980.

Muito “vagamente”, como escrevi, eu me lembrava das circunstâncias da foto (e foi bom ter alertado logo)... Reconheço o exagero. O tema não era tão dramático como imaginei (“a questão da censura às peças de teatro”), ainda que tendo algo de polêmico...

O motivo era profissional, diz a matéria: um encontro do elenco, mais o diretor Braz Chediak e do produtor Pedro Carlos Rovai, com o autor Nelson Rodrigues. Tratava-se da preparação da nova versão cinematográfica da peça Bonitinha Mas Ordinária (grafada assim na revista), a ser filmada naquele ano de 1980 (mais uma correção a fazer: esta data, na legenda da foto).

Teria sido uma reunião para “debater o texto e estudar aspectos técnicos da obra”, mas, é evidente, não passou de uma forma de divulgar o projeto...

O filme, que recebeu o título “Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Resende” (fazendo jus ao da peça), foi lançado em 1981. É a segunda versão para o cinema da peça, escrita em 1962 e que foi imediatamente encenada, com Teresa Rachel no papel-título. A referência a Otto Lara Resende se deve à frase “o mineiro só é solidário no câncer”, atribuída por Nelson Rodrigues a ele, repetida muitas vezes na peça.

Nelson Rodrigues com o elenco de filme - Rio, 1980 - Foto Guina Araújo Ramos

O primeiro filme da série “Bonitinha mas Ordinária” é de 1963, na esteira do sucesso no teatro, com a dupla Odete Lara e Jece Valadão. Uma terceira versão de “Bonitinha mas Ordinária”, com direção de Moacyr Góes, com Leandra Leal, foi filmada em 2007 e 2008, e lançada apenas em 2013, parece que sem muito sucesso.

Por aí se vê que nem todo registro fotográfico guarda em si a síntese (ou o sentido) do evento que lhe deu origem (outro bom exemplo pode ser a foto de Nelson Rodrigues com a camisa do Flamengo ao lado de Zico), nem dá certeza a qualquer interpretação subjetiva, nem mesmo do autor, e ainda mais quando se tem apenas uma única foto remanescente...

A aparente dramaticidade desta imagem que me restara (um fotograma, ponta de filme, e em preto e branco, o que potencializa ainda mais a sensação) não correspondia ao tipo de encontro que fotografei, informação que outra fonte de informação, a cópia da revista, bem o demonstra. 


A História é assim mesmo, sempre duvidosa...


sábado, 2 de junho de 2018

1958 - A histórica edição da Manchete Esportiva que pode inspirar a seleção de Tite

A histórica capa dupla da Manchete Esportiva em 1958


Uma rara foto do famoso gol de Nilton Santos contra a Áustria, quando ele conduziu a bola de área a área.
Foto de Jáder Neves

A crônica especial de Nelson Rodrigues. Reprodução Manchete Esportiva

Gol de Vavá contra a Rússia. Fotos de Jáder Neves

Reprodução Manchete Esportiva

O gol de Pelé contra País de Gales. Reprodução Manchete Esportiva


Vavá vence Yashin, o lendário goleiro da então URSS. Foto de Jáder Neves

Pelé e Garrincha em Hindas, a concentração da seleção brasileira na Suécia. Foto de Jáder Neves

Nilton Santos e Garrincha. Foto de Jáder Neves

Em contraste com os treinadores engravatados de hoje, a larga informalidade do técnico Vicente Feola.
Reprodução Manchete Esportiva

Didi em missão difícil: falar como Brasil ao telefone usando as conexões de 1958.

Didi no lago de Hindas e... .

... cumprimentando o Rei da Súécia, Gustavo Adolfo, após a conquista da Jules Rimet.. Foto Jáder Neves

A emoção do menino Pelé entre Djalma Santos e Garrincha. Foto Jáder Neves
Gilmar, Orlando, Garrincha, Zito.


O massagista Mário Américo dispara no gramado para tomar a bola do jogo que o juiz queria levar para casa..
Foto de Jáder Neves 

por José Esmeraldo Gonçalves

Não seria má ideia fazer rodar de mão em mão em Sochi, a concentração do Brasil na Rússia, este raro exemplar da Manchete Esportiva. Pode ser o toque final de inspiração para incendiar o talento de Neymar, Philippe Coutinho, Willian, Gabriel Jesus, Casemiro, Marcelo &Cia.

No dia 29 de junho de 1958, a seleção brasileira venceu a Suécia por 5 X 2 e ganhou pela primeira vez a Copa do Mundo. Os enviados especiais Ney Bianchi e Jáder Neves produziram ao longo daquele mundial metros de laudas e centenas de fotos detalhando a campanha histórica.

No Rio, a redação da revista, com Augusto Rodrigues, Nelson Rodrigues, Paulo Rodrigues, Arnaldo Niskier e Ronaldo Bôscoli foi mobilizada para reunir todo o material, incluindo a preparação da seleção em Araxá e Poços de Caldas, cenas de bastidores e o passo a passo da jornada até chegar à Jules Rimet.

Quando a edição inundou as bancas, a euforia da torcida estava no auge. Depois do desastre da Copa de 1950 e da participação tímida na Copa de 1954, o Brasil vivia finalmente a "vertigem do triunfo", nas palavras de Nelson Rodrigues, que assinava duas páginas da revista.

"A partir do momento em que o Rei Gustavo, da Suécia, veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com "x" ou não iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essas coisa sublime: analfabetos natos e hereditários devoraram matutinos, vespertinos, revistas, e liam tudo com uma ativa, devoradora curiosidade, que iam do lance a lance da partida, até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil", escreveu o cronista. 

E mais adiante, em tom épico, escaneou com precisão o sentimento das ruas.

"Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos aqui percebem o seguinte: é chato ser brasileiro! Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d'Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos, o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem; ele já não se vê, na generosa totalidade das suas virtudes pessoais e humanas. Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro  fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: - Eu sou um humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo! Ele vivia desfraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E se alguém punha em dúvida a humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um S. Francisco de Assis, de camisola e alpercatas". 

Hoje, 60 anos depois, Nelson veria que o Brasil está de novo de alpercatas e camisolas. Agora moralmente mais esfarrapadas.

Não é o futebol que vai mudar a chamada conjuntura dos cafajestes, mas se a TV mostrar menos a seleção titular dos corruptos e mais o time de Tite já melhora o astral.

Nem que seja por alguns dias.

Só um ópio passageiro...

A propósito, repararam que a seleção não foi a Brasília se despedir dos mandatários, como era tradição? E Tite já declarou que se ganhar a Copa não vai subir a rampa do Palácio do Planalto, outra regra do passado.

Decisão saudável essa de não frequentar ambiente insalubre.

Vai evitar contaminação por elementos tóxicos.

sábado, 2 de abril de 2016

Memórias da redação - FUTEBOL: A FALTA QUE A CRÔNICA FAZ

por Onotonio Baldruegas

Em junho de 1956, há quase 60 anos, a seleção brasileira jogou em Assunção. A Manchete Esportiva - revista semanal criada em 1955 e que sobreviveu até meados de 1959 - publicou as fotos da "batalha" (qualquer jogo na América do Sul transformava-se, então, em uma "guerra") e fechou aquela cobertura com uma crônica de Nelson Rodrigues. O Brasil ganhou de 5 x 2.

Na semana passada, o time de Dunga jogou em Assunção. Outros tempos. Nem a CBF era CBF. Atendia pelo nome de CBD.

Nelson era capaz transformar jogo de 'purrinha' em prosa épica. O que ele escreveria sobre o último Paraguai 2 x 2 Brasil? Vamos ficar sem saber. Mas é certo que chutaria a crônica no melhor ângulo. Encontraria um caminho. Talvez identificasse no campo algum jogador paraguaio travestido de Bela Lugosi, o astro dos filmes clássicos de terror, para explicar o pânico, os minutos de poltergeist, que a atual seleção vive quando sob pressão.

Dunga, que não é o queridinho da mídia, já está no paredón. De nada vai adiantar trocar o técnico. A "Geração 7X1"  precisa de um exorcista para apagar a lembrança dos mortos-vivos do jogo contra a Alemanha.

Na crônica, Nelson destaca a atuação de Zizinho, autor de dois gols, embora já estivesse no ocaso da carreira. E atribui a vitória ao fato de aquela seleção ter como base um clube, o América. Curiosamente, há quem defenda que a seleção utilize como base o melhor clube brasileiro do momento e importe alguns "europeus", os mais dispostos a vestir camisa do Brasil, para determinadas posições. O próximo compromisso da seleção nas eliminatórias para a Copa da Rússia será em setembro. Por acaso, no começo de temporada na Europa, quando os jogadores, lá, estarão voltando de férias. Os daqui, em pleno Brasileirão, estarão em atividade e obrigatoriamente em forma. Digamos que até lá, Corinthians, Cruzeiro, Atlético Mineiro, Internacional ou Grêmio estejam mostrando jogo? Poderia estar em um deles, ou qualquer outro, desde que na ponta das chuteiras, a base para uma seleção capaz de exibir conjunto. Coisa que parece impossível com os "importados".

Sem nostalgia, mas em reverência à memória do futebol e da crônica esportiva (esse gênero jornalístico que já teve craques das letrinhas como o próprio Nelson, além de Mário Filho, Armando Nogueira, Ney Bianchi, João Saldanha...), leia, abaixo, a crônica de Nelson Rodrigues publicada na Manchete Esportiva sobre o jogo Brasil 5 x 2 Paraguai, em Assunção.

Os trechos assinalados em preto poderiam perfeitamente valer para os dias de hoje.

Substitua, em uma das frases destacadas, os nomes de Ferreira, Canário e Edson, do América,  pelo nome de Neymar, do Barcelona.

Você entenderá o que Nelson Rodrigues quis dizer.



GOLEADA EM ASSUNÇÃO

por Nelson Rodrigues (para a Manchete Esportiva

Ontem, vencemos, mais uma vez, em Assunção. Desta feita, ampliamos o marcador: 5 x 2!

Um amigo meu, que, pendurado num rádio de pilha, ouviu a irradiação, não se conteve. Quando Hilton enfiou o tiro de misericórdia, ele bufou: "5 x 2 é troço pra chuchu!" E era.

Acresce que vencer em Assunção é uma calamidade. Lá, a torcida costuma abrir uma faixa com os seguintes dizeres: "Vencer ou Morrer". Ao esbarrar nessa legenda ferocíssima, o quadro visitante treme nos seus alicerces. No Maracanã há um fosso cordial, que protege, que encouraça, que torna inexpugnáveis os 22 jogadores, os bandeirinhas e o juiz. No Paraguai, não. Ninguém é inatingível: todos são suscetíveis, em caso de invasão, de um minucioso linchamento. A hipótese de massacre, que ronda a equipe de fora, pode liquidar-lhe o ímpeto, a gana, a garra.

Pois bem: apesar disso, o escrete levou tudo de roldão, tudo, e obteve duas vitórias monumentais, sendo que a última de goleada. Mas, no feito dos nossos, há dois aspectos que convém destacar. Digo "aspectos" e já especifico: duas lições. Vejamos a primeira: nada como o escrete que é um clube disfarçado. Que mandamos nós a Assunção? Um América com leves enxertos do Bangu e de São Paulo. O nome do Brasil não foi bem um nome, mas um deslavado pseudônimo do clube rubro. Logo ao primeiro jogo, verificou-se que não se podia desejar uma fórmula mais sábia e mais eficaz. Pela primeira vez, um escrete nascia feito, pela primeira vez um escrete rendia na estréia, cem por cento. Seja do ponto de vista técnico e tático, seja do ponto de vista emocional, o comportamento da equipe encheu as medidas.

E por quê? Eis a verdade, amigos: o jogador, em campo, atende mais ao apelo do clube do que ao da pátria. Examinemos o caso de um Ferreira, de um Canário, ou de um Edson. Ele funciona melhor como americano do que como brasileiro. Ponham-no dentro do clima normal de um América e ele será um. Desloquem-no para o escrete e ele será outro. Como americano, ao lado de outros americanos, o jogador se realiza e se afirma, e alcança sua plenitude de craque. Em Assunção, os brasileiros pareciam estar em casa, porque continuavam no América. E mesmo os enxertos foram foram rápida e implacavelmente assimilados. Daí a compacta, indissolúvel e eufórica unidade do time.

A seleção brasileira que jogou contra o Paraguai, em 1956.
A CBD formou convocou um time com base no América e Bangu. Em pé:
Djalma Santos, Pompéia, Edson, Formiga, Zózimo e Hélio.
Agachados: Canário, Zizinho, Leônidas da Selva, Romeiro e Ferreira.
A outra lição da "Taça Oswaldo Cruz" foi, a um só tempo, de futebol e de vida.  De fato, as duas vitórias ensinaram que tudo passa, menos Zizinho. O que nós chamamos idade, o que nós chamamos tempo, o que nós chamamos velhice nada mais é do que um jogo de aparências e de ilusões. A idade ricocheteia por Zizinho sem atingi-lo. Em Assunção, ele se projetou aos olhos do público e dos companheiros, isento de tempo. E vamos e venhamos: sua velhice  é mil vezes mais nova, quinhentas vezes mais nova do que a a adolescência dos seus companheiros.

Zizinho sentado, lendo jornal ou gibi atua, influi, decide, mais do que os brotinhos do futebol. 

Assunção veio confirmar o que se sabia, isto é, que todos os caminhos do futebol levam a Zizinho. Na hora de escalar um escrete, ele se torna a nossa alucinante ideia fixa. Não conseguimos ignorá-lo, excluí-lo, pô-lo na cerca.

Mesmo as pessoas que não gostam ou não entendem de futebol, que não sabem se a bola é quadrada ou não, mesmo essas pessoas conhecem Zizinho e só Zizinho.

Com uma eternidade assim irritante e assim obstinada, é possível que daqui a duzentos anos ainda o convoquem para salvar a pátria. 

domingo, 29 de novembro de 2015

Memórias da redação: Nelson Rodrigues, na Manchete Esportiva, identifica o canalha nacional




PERFIL DO MISERÁVEL

por Nelson Rodrigues (crônica publicada na Manchete Esportiva - em janeiro de 1956)

"Aqui mesmo, nesta coluna, já fiz justiça ao canalha. É uma figura de incalculável riqueza interior. Tem uma irisada complexidade, que falta justamente ao justo, ao virtuoso, ao honrado. E vamos e venhamos: é repousante encontrar uma dessas criaturas que encerram toda a variadíssima sordidez da condição humana. O diabo é que é difícil, dificílimo, senão impossível, descobrir um canalha. Eis a verdade, amigos: ninguém quer ser canalha, ninguém. Saiamos de porta em porta. E, por toda parte, só encontraremos sujeitos honestíssimos, senhoras que não prevaricam nem com os próprios maridos. Até hoje, jamais apareceu alguém com bastante pureza interior para anunciar:
- "Eu sou um canalha abjeto!'
E que autorizasse:
- "Cuspam-me na cara!"
Vejam vocês: o homem é tão pusilânime que não quer ser cuspido nem por decreto. E já que nenhum canalha se apresenta como tal, é quase impossível caracterizá-lo. Ele não tem nenhum odor específico, nenhum distintivo de lapela, que o individualize entre muitos, entre todos. Aqui pergunto: como saber se o nosso amigo, o nosso companheiro, o nosso sócio é um puro ou um miserável? Como vislumbrar-lhe, por detrás da face externa e suspeita, a fisionomia interior e autêntica? É um problema de sorte. Por outras palavras: o canalha só se manifesta sob o estímulo de uma circunstância favorável.
Foi o que aconteceu, há tempos, numa excursão de rapazes e moças ao Dedo de Deus. O alpinismo, no Brasil, é o esporte mais soturno que se possa imaginar: falta-lhe o principal, que é a neve. O sujeito já sabe que não vai virar picolé. De qualquer forma, justiça se lhe faça: considero aquele que escala qualquer coisa um herói de Stalinigrado. Pois bem: sem que ninguém soubesse ou pudesse imaginar infiltrou-se, no grupo, o canalha. Desde o primeiro momento, o homem atraiu simpatias furiosas. Ninguém mais cordial e, mesmo, doce. Tinha bons dentes, boas anedotas e um tubo de drops, que prodigalizou copiosamente. Já os outros excursionistas cochichavam entre si:
- "Liga pra chuchu!"
Sim, muitíssimo liga. Até que a caravana resolveu fazer alto para o banho ao ar livre. Adotou-se a medida normal: os rapazes para um lado; as moças para o outro. Todo mundo caiu n'água, que estava uma delícia completa. Súbito, um dos rapazes, justamente o noivo de uma das pequenas, pergunta:
- Quedê o Fulano?
O Fulano era o canalha. Procura daqui, dali, é nada. Então, o noivo, com essa clarividência homicida do ciúme, deu o berro:
- "Já sei, já sei!"
Imediatamente, organizou-se a partiu a expedição punitiva. E, de fato, encontraram o miserável, pendurado de um galho, engrinaldado de folhas, assistindo ao banho das moças. Era justo, era mesmo necessário ou mesmo obrigatório, que se arrancasse, dali, o Pan sem flautas e o corressem a pontapés, a bofetões e cusparadas. Mas os rapazes, que chegavam, incidiram num erro técnico: arriscaram um olhar na direção das moças. Aconteceu o seguinte: essa nudez múltipla e molhada, que a luz valorizava, subiu-lhes à cabeça. Cada um, inclusive o noivo, ocupou seu galho estratégico para o banquete visual. Por fim, as moças deixaram o rio, enxugaram-se, vestiram-se. Só então os outros se lembraram do canalha. Já sabe: deram-lhe uma surra tremenda.

O CANALHA N° 2

por Nelson Rodrigues (crônica publicada na Manchete Esportiva - em janeiro de 1956)

No número anterior de Manchete Esportiva escrevi sobre o canalha que, encarapitado num galho, assistia ao fluvial banho de umas dez, doze moças.
Referi o episódio e aconteceu, então, o seguinte: todo mundo invejou o canalha dependurado, que se locupletara dessa nudez múltipla, molhada e total. Direi mais: por um momento, não houve leitor que não desejasse ser também um canalha assim abjeto e assim suspenso. Eram dez ou doze moças, digamos uma dúzia. E que fossem menos: quatro, três ou mesmo uma!
Hoje retomo a linha da crônica. Explico: o canalha é uma figura tão rica, complexa, irisada, que exige mais do que uma, duas, trinta crônicas. Quem fala de um sujeito honesto, está, na verdade, falando de todos os outros sujeitos honestos. Eis a verdade: nada mais parecido com um impoluto do que outro impoluto. Mas o salafrário, não: existem entre um salafrário e qualquer colega abismos irredutíveis. Cada qual apresenta suas características pessoais, intransferíveis e inassimiláveis. E é bonito quando um ser impõe essa taxativa dessemelhança face aos outros seres. Por exemplo: na semana passada, falei do canalha n°1, ou seja, o canalha do banho. Hoje, apresento outro tipo, também de uma substância incalculável. Vou numerá-lo: canalha n°2. Era goalkeeper não sei se do América, se do Fluminense. Tinha figura, tinha estampa, um perfil de John Barrymore aos 19 anos. O talho do seu nariz era tão caprichado que as meninas, no auge do arrebatamento amoroso, pediam-lhe:
- "Fica de perfil, meu bem!, fica de perfil!"
E o homem precisava ficar de lado. De resto, usava uns paletós inenarráveis. Mesmo que não fosse um Apolo, mesmo que não tivesse esse perfil sei lá se grego, se romano, venceria pela classe do paletó. Eram ternos que só faltavam falar. E com o canalha n°2, acontecia uma coisa impressionante: ou fechava o gol ou deixava entrar tudo. De certa feita papou, contados a dedos, 12 frangos. Parece incrível, mas foi preciso essa contagem histórica para que o clube abrisse os olhos. Subitamente, o time, o técnico, a diretoria, a torcida, a imprensa e o rádio descobriram tudo: o homem estava na gaveta do adversário. No vestiário, foi cercado, acuado, o presidente, em pessoa, cuspiu-lhe no rosto. Ora, que faz um sujeito nas mesmas condições? É óbvio: trata de lavar, de enxugar a cusparada. Mas o canalha n°2 era tão abjeto que lá deixou esquecida a saliva alheia, a pender-lhe da face conspurcada. Dias depois, há outro jogo. Na hora de entrar em campo, imprensam o salafrário:
- "Olha, se tu papares algum frango, já sabe: depois do jogo te faço e aconteço!"
Era o presidente do clube quem assim falava, em nome dos outros. O canalha n°2 pergunta:
- "Vocês me dão uma surra depois do jogo? E só depois do jogo?"
Pausa, pigarreia e arrisca:
- "Não podia ser antes? Já? Agora?
A partir de então, eis o que acontecia: antes de entrar em campo, o time fazia no canalha n°2 um minucioso massacre. E os pescoções, os tapas, os cascudos o transfiguravam. Com o olho rútilo, o lábio trêmulo, um ríctus de fanático, de possesso, o salafrário ia para debaixo dos três paus e não deixava entrar nem pensamento.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

A camisa de Luis Suárez vai ficar no armário

Foto Getty Images-Fifa - Divulgação
por José Esmeraldo Gonçalves
A mordida em Chielini, no jogo contra a Itália, custou a Luis Suárez o afastamento da Copa. A Fifa impôs ao jogador uma suspensão de nove jogos pela seleção do Uruguai. A Copa perde um craque mas seria muito alto o preço de mantê-lo em campo. Ao morder um adversário pela terceira vez na sua carreira - sem contar as cabeçadas, outra arma que o jogador costuma usar - Suárez, na prática, pediu pra sair. No últimos dias, uma perplexa imprensa mundial o chamou até de "canibal". Além dos nove jogos pela sua seleção, o uruguaio foi banido do futebol por quatro meses. A Fifa parece deixar claro, agora, que outra mordida em campo poderá encerrar definitivamente a carreira de Suárez. O jogador poderá recorrer, se quiser, após pagar uma multa de 250 mil reais. A punição já valerá para o jogo Uruguai X Colômbia, no próximo sábado, no Maracanã. Embora a atitude de Suárez tenha sido tão flagrante e até figuras isentas como o ex-jogador Ghiggia tenham condenado a espantosa mordida, haverá especulações. Caso Brasil passe pelo Chile e o Uruguai avance, as duas seleções se enfrentarão nas quartas-de-final. O Uruguai certamente vai chiar e dirá que "forças ocultas" abriram o maxilar de Suárez e o fizeram abocanhar Chielini. Faz parte da choradeira. 
Mas a dramaticidade da cena da mordida renderia uma boa crônica ao escritor e jornalista Nelson Rodrigues. Duvida? Pois Nelson, que sempre apontava nas suas crônicas um personagem da semana, uma vez elegeu não o Dida, do Flamengo, mas uma atitude do atacante em campo. O cronista saiu do estádio impressionado com uma cena inusitada. O Flamengo jogava contra o Canto do Rio. Ganhava por 2 x 1. O jogo era tenso, dois jogadores já haviam sido expulsos, quando o árbitro Gama Malcher marca pênalti contra o Flamengo. Quase fim do jogo, era a chance do empate. Osmar, do Canto do Rio, ajeita a bola e se prepara para chutar. Conta Nelson: "Estava a bola na marca fatídica. Dida aproxima-se, ajoelha-se, baixa o rosto e vai fazer o que nem todos, na afobação, percebem. Para muitos, ele estaria rezando o couro. Mas eis, na verdade, o que acontecia: Dida estava cuspindo na bola. Apenas isso e nada mais. Objetará alguém que este é um detalhe anti-higiênico, antiestético, que não deveria ser inserido numa crônica. Mas eu vos direi que, antes de Canto do Rio x Flamengo, já dizia aquele personagem shakespeariano que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Quem sabe se a cusparada não decidiu tudo? Só sei que lá ficou a saliva pousada na bola. O que aconteceu depois todos sabem: Osmar bate a penalidade de uma maneira que envergonharia uma cambaxirra. Atirava o Canto do Rio pela janela, a última e desesperada chance de um empate glorioso. E ninguém desconfiou que o fator decisivo do triunfo fora, talvez, a cusparada metafísica de Dida, que ungiu a bola e a desviou, na hora H". 
O trecho destacado acima é da crônica "A Cusparada" que Nelson Rodrigues publicou na Manchete Esportiva com data de capa do dia 9 de novembro de 1957. 
A cusparada épica virou, claro, a Personagem da Semana de Nelson Rodrigues. 
Imagine o que ele não faria com a mordida inglória de Luis Suárez.
  

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Nelson Rodrigues, 100 anos hoje. E na Manchete, ontem


Na coluna Gente Boa, hoje, no Globo, Arnaldo Niskier conta uma das muitas histórias de Nelson Rodrigues na Manchete. Nelson trabalhou na Manchete Esportiva, nos anos 50, e, depois, publicou crônicas na Fatos & Fotos, já na década de 70. Niskier e Ronaldo Bôscoli foram colegas do escritor na redação da Frei Caneca. A propósito da Manchete Esportiva: em 2007, a Agir publicou "O Berro Impresso das Manchetes", com as crônicas completas de Nelson publicadas de 1955 a 1959. Era uma época de ouro do futebol carioca. Vavá, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Pinheiro, Castilho, Manga, Bellini, Dida, Zizinho, Dequinha, Dida, Henrique, Coronel, Almir, Sabará, Pinga e tantos outros eram seus personagens. Habitavam o Maracanã, campo onde o jogo era real, mas acabavam na máquina de escrever do Nelson com tempero e sabor de ficção.      

sábado, 31 de outubro de 2009

Nelson Rodrigues e Pelé

Jornais, revistas e TVs preparam matérias ou documentários para comemorar o Gol 1000 de Pelé, marcado em 19 de novembro de 1969. Quase às vésperas dos 70 anos - completou 69 anos agora em outubro - o eterno craque será alvo de muitas homenagens. Nenhuma, talvez, chegue perto da crônica que lhe dedicou Nelson Rodrigues, na Manchete Esportiva, em 1959. Pelé era apenas um garoto mas Nelson já via alí, no seu estilo inimitável, o deus dos estádios. Um trecho: "Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um gênio indubitável. Digo e repito: gênio. Pelé podia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão: Como vai, colega? (...) Na idade em que o ser humano anda quebrando vidraça, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé é um campeão do mundo".