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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A Manchete vista de dentro


Adolpho Bloch (que olha para a cachorra "Amiga"), Murilo Melo Filho, Arnaldo Niskier e Carlos Heitor Cony em 1968, no prédio da Manchete, na Rua do Russell. Foto:Divulgação.
 

Em ‘Memórias de um sobrevivente’, o jornalista Arnaldo Niskier conta a história de altos e baixos da empresa de comunicação onde trabalhou por 37 anos

(O texto abaixo, assinado por Suzana Velasco,  foi publicado no caderno Prosa Verso, do Globo, no dia 29 de setembro e reproduzido no Prosa on line: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/

Já faz 20 anos desde que Arnaldo Niskier deixou o Grupo Bloch, mas ele ainda sonha uma ou duas vezes por semana com o trabalho de jornalista. Quando foi contratado pela revista “Manchete Esportiva”, em 1955, o rapaz de quase 20 anos não imaginava que a tarefa então feita “por necessidade” se estenderia por mais 37 anos. Criado em 1952, a partir da revista “Manchete”, o grupo teve até sete mil funcionários nos anos 1980, transformando-se num império das comunicações. Niskier decidiu elaborar os sonhos e agora conta essa trajetória da empresa, que se confunde com seus caminhos pessoais, no livro “Memórias de um sobrevivente — A verdadeira história da ascensão e queda da Manchete”, recém-lançado pela editora Nova Fronteira.
— Cada livro sobre a Manchete tem seu mérito, seu ângulo. Mas nenhum dos autores anteriores teve 37 anos de casa e acompanhou seu crescimento. A revista “Manchete” publicava 350 mil exemplares por semana na década de 1970, passando a “Cruzeiro” para trás — diz Niskier, referindo-se à expressão “verdadeira história” do subtítulo. — Como autoridade da antiguidade, posso contar essa história em pormenores que outros não alcançaram.
Os pormenores vêm sobretudo da boa memória — atribuída por ele ao magistério da Matemática —, atestados com a ajuda da pesquisa de três jornalistas. O tom do texto é pessoal, de quem ajudou na produção de uma revista “alegre e comunicativa”, além de ter idealizado a criação de um sistema de rádio e de outras publicações e dirigido a Bloch Educação, sendo responsável pela edição de livros didáticos.
— Percorri todos os postos da hierarquia da empresa — conta Niskier, que começou a carreira de jornalista aos 16 anos, como repórter esportivo do jornal “Última Hora”.
Além das mudanças do jornalismo, da tecnologia e dos negócios da empresa em sua expansão para outros meios de comunicação, o livro explora alguns dos temas caros à revista “Manchete” em suas quase cinco décadas, como a bossa-nova e o cinema novo, e trata dos grandes colaboradores da “Manchete”, como Rubem Braga, Fernando Sabino Manuel Bandeira e Paulo Mendes Campos — além de dedicar um capítulo a Nelson Rodrigues e seus textos para a “Manchete Esportiva”.
Também permanente no livro é a relação com o dono da empresa, Adolpho Bloch, desde o primeiro contato com o chefe de sapato de camurça azul, que seria fiador de seu apartamento — “Se você não pagar eu corto seus ovos”, dizia. Ao longo do livro, Niskier explora sobretudo duas características de Bloch: o otimismo incorrigível e o temperamento explosivo, causa de brigas frequentes, mas rápidas.
— Ele dizia que a raiva só podia durar três minutos, depois era patológica. Eu me tornei catedrático em Adolph Bloch porque aprendi a dar razão a ele quando ele não tinha nenhuma — lembra Niskier, achando graça.
A crença de Bloch na empresa e no Brasil o levou a abrir a primeira sucursal em Brasília antes mesmo da inauguração da nova capital, mas também a negligenciar os problemas econômicos que se impuseram nos anos 1990. Na década de 1950, com o apoio incondicional ao desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, parecia impensável que algo pudesse dar errado no futuro.
— Adolpho e Juscelino são as duas grandes personalidades do livro, que relembra quem foi JK para nosso país — afirma Niskier, defendendo a relação de amizade e confiança entre Bloch e o ex-presidente do Brasil. — Quem diz que eles tinham negócios está mentindo. Quando Juscelino foi cassado, viajei duas vezes para levar dinheiro para ele. Fui para Nova York com US$ 7 mil, porque o Adolpho dizia que Juscelino não tinha dinheiro para comer. Meses depois repetiu-se a cena, e fui para Paris.
Um dos principais erros de Bloch foi ter investido em televisão sem profissionalizar a empresa com pessoas que entendiam do assunto, avalia Niskier. O grupo crescia, mas Bloch continuava centralizador — até o pagamento dos contínuos passava por ele.
— Investir na televisão foi um erro estratégico. Quando a Rede Manchete entrou no ar, em 5 de junho de 1983, Adolpho tinha US$ 25 milhões no banco. Logo em seguida teve que gastar US$ 16 milhões em filmes. Ele falava: “Para que gastar tanto dinheiro em filmes que eu vou usar duas vezes e vou ter que devolver?”. Ele entrou no negócio por pressão dos sobrinhos, mas acabou gostando.
Em 1992, Niskier foi trabalhar com marketing em São Paulo, porque os desentendimentos com Pedro Jack Kapeller, sobrinho de Adolpho Bloch conhecido como Jaquito, tinham chegado ao limite. Mesmo sabendo que o buraco financeiro da empresa se abria, o jornalista sentiu saudades daqueles 37 anos, interrompidos apenas pela licença entre 1979 e 1983, quando foi secretário estadual de Educação e Cultura do Rio. Até hoje, a caminho da Academia Brasileira de Letras, da qual é membro, ele sente “um nó na garganta” ao passar pelo prédio que abrigou a “Manchete” na Rua do Russel.
— O mundo mudou. O Adolpho não acordou para a profissionalização, e também para o fato de que o país deixou de ter uma economia inflacionária escandalosa. Ele jogou muito com a inflação, com os empréstimos — diz Niskier, desejando que Bloch seja lembrado para além da falência. — No fim da vida, ele foi um pouco injustiçado. Passou a ser apenas o culpado por ter destruído um império, desprezaram tudo aquilo que ele havia construído.