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sábado, 3 de maio de 2014

Nora Rónai: aos 90 anos, campeã de natação, sobrevivente do nazismo e de um câncer, ela acaba de publicar um livro biográfico



por José Esmeraldo Gonçalves (para a revista Contigo!)
A vida ensinou Nora Tausz Rónai a vencer provas e desafiar os limites do corpo. Hoje, aos 90 anos, ela é atleta, viaja o mundo participando de campeonatos de natação, praticou salto em plataforma, fez slalom na neve e não hesitou em pular de paraquedas quando completou 80 anos. Mas há 73 anos, o que estava em disputa era sua sobrevivência. Em maio de 1941, com os pais Iolanda e Edoardo Tausz, e o irmão Giorgio, ela desembarcou no cais da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, após uma atribulada viagem para escapar do nazismo. Professora aposentada de arquitetura, viúva do tradutor e crítico Paulo Rónai, húngaro de nascimento, falecido em 1992, mãe da jornalista Cora Rónai, 60, colunista do Globo e de Laura Rónai, 58, flautista, coordenadora da Orquestra Barroca da UniRio, Nora narra seu caminho em Memórias de um lugar chamado onde (Casa da Palavra), que acaba de lançar. A história da família Tausz, que morava em Fiume, que pertencia à Itália (hoje, a cidade chama-se Rijeka e faz parte da Croácia), às margens do Mar Adriático, virou livro quase por acaso. “A minha neta, filha de Laura, Manuela, 22, então com 12 anos, precisava fazer um trabalho para a escola contando a história de uma avó ou um avô. Com três ou quatro páginas que escrevi, ela já ficou satisfeita e recebeu nota dez”, conta ela, que tem quatro netos e seis bisnetos.
Muito do que a família Tausz viveu em Fiume é dramático, o que Nora conta sem amargura. O regime fascista de Mussolini impunha leis raciais. Uma delas atingiu em cheio a pequena Nora. Toda criança judia era proibida de frequentar a escola “para não contaminar os meninos arianos”. Nora ressalta que aquele foi um dos períodos mais difíceis da sua vida. Antes mesmo da promulgação da lei fascista, ela era perseguida na escola. “Eu chorava baixinho para o pessoal não ouvir”, conta. Ironicamente, a lei racial aliviaria em parte aquele sofrimento de Nora, que se viu livre da professora que a xingava de “fedorenta”, “falsa’ e “imbecil” em plena sala de aula. “Então, fiquei feliz. Passei a estudar em casa com um professor que era casado com minha prima”, explica. Com a guerra, ela perdeu parentes. O pai e o irmão, Giorgio foram levados para um campo nazista, mas acabaram resgatados graças a um amigo de Edoardo que era funcionário público. Uma próxima prisão seria fatal. Chegara a hora de deixar Fiume. A solução foi recorrer ao Vaticano que havia recebido do governo brasileiro três mil vistos destinados a atender católicos e judeus batizados. Nora conta que os Tausz eram “tecnicamente” católicos. “Anos antes, por causa de uma briga em família, meu pai e meu tio se desentenderam com o meu avô, que era judeu ferrenho. Como resposta, eles se converteram ao catolicismo”, diz. Para obter o visto, pagava-se pelo documento, o que era uma dificuldade a mais para muitas famílias. “Não eram intermediários, era o Vaticano mesmo que cobrava”, conta Nora que, no Brasil, formou-se em arquitetura e se tornou professora da UFRJ. Ela sorri diante de uma pergunta que provoca o assunto de que mais gosta de falar: sua performance nas piscinas. Leva a sério. Treina quatro vezes por semana, durante uma hora, e participa das competições da Federação Internacional da Natação Amadora, categoria Master. É atleta da equipe Icaraí Master GReis. No momento, aguarda homologação do seu recorde mundial batido há poucas semanas, em Campinas, durante o Torneio Mais Mais de Natação Master, nos 100 metros borboleta, com o tempo de 3’ 51”, diz ela, que já é detentora de um recorde mundial no revezamento 4x100, obtido em Gotemburgo, na Suécia. Nora conta que sempre foi competitiva. Antes de nadar, praticava salto de plataforma. Mas a natação é sua grande paixão, além de ser, como admite, uma maneira de superar os momentos difíceis. É o seu refúgio. Foi após a morte do marido que ela intensificou sua participação em campeonatos de máster. Desde então viaja o mundo disputando campeonatos oficiais. A filha, Cora, que já a acompanhou em algumas dessas etapas, já descreveu a emoção de ver a mãe competir: “É muito bacana ver a reação das pessoas aos tempos e à garra da Mamãe. Ela é aplaudida e cumprimentada na piscina, e todo mundo quer ser ela quando crescer; até eu queria, mas já joguei a toalha há tempos. É que eu sei o material que precisa e o trabalho que dá”.  Disposição é com ela mesma. Salto de paraquedas em queda-livre foi algo que a fascinou tanto que, em 2004, pediu para experimentar, como presente de aniversário dos 80 anos. Foi para Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, embarcou em um pequeno avião, ouviu as instruções e preparou-se para saltar. “Estava no ar, como se estivesse voando. Foi muito gostoso”, recorda. Sentiu uma certa dificuldade para respirar em função da velocidade da queda antes da abertura do paraquedas, mas aprovou a experiência. “A tontura demorou um pouco a passar. Depois, minha amiga cardiologista me passou um pito. Falou que eu não deveria ter feito aquilo. Mas estava feito” – completa, rindo – “e nunca imaginei que pudesse ter algum problema”. Medo, garante que não sentiu.”Como saltava de plataforma de dez metros, tinha algum treino. Além disso, quando criança, gostava de esquiar. Em Fiume, em uma montanha chamada Conca Guido Rey, havia uma rampa. Lá eu fazia slalom de uma altura de 25 metros. Nem era permitido a meninas mas eu conseguia enganar os fiscais", diz
Para conseguir toda essa energia, Nora não tem segredos. “Nunca fui de comer muito. No café da manhã, tomo suco de berinjela ou de laranja-lima, uma caneca de café com leite e dois pãezinhos com geleia. No almoço, gosto de frutos do mar, mas também como carne ou frango. No jantar, um lanche leve, frango com salada. Por conta do tratamento de um câncer, ela se afastou das piscinas em 2004, mas só por um breve período.  “Tive câncer no seio, passei por cirurgia e terapias fortes, mas depois de cinco semanas voltei a treinar. Na época, o médico me disse que eu teria que continuar tomando medicamentos durante cinco anos. Eu achei ótimo. Pensei, ‘então ele está me dando mais cinco anos’”, conta, rindo.

Nora pôs um ponto final na sua biografia antes de falar da vida ao lado de Paulo Rónai. “Agora tem uma porção de gente que está reclamando porque não completei. Escrevi um trecho da minha vida mas se eu me animar posso continuar”. Mas ela revela um capítulo que não escreveu e conta como conheceu o marido. “Fui com meus pais e amigos à praia na Ilha do Governador. Mas logo em seguida, caiu uma chuva. Alguém lembrou que ali perto morava o Paulinho e fomos lá nos abrigar. Ele estava em um caramanchão corrigindo provas. Algumas folhas voaram e fui ajudar a recolher. A chuva cedeu, agradecemos a acolhida e fomos embora. No dia seguinte, Paulo telefonou dizendo ao meu pai que queria retribuir a visita”. Sabendo que Nora desenhava, perguntou-lhe se podia ilustrar um dos livros que traduzia. Nora aceitou o trabalho.  “Ele nunca demonstrou que estivesse interessado em mim. Ao final, quando fui entregar a capa de um livro, me disse que gostaria que eu continuasse colaborando com ele. Respondi que teria prazer, mas logo adiantei que daria preferência à arquitetura se por acaso pegasse um trabalho na área. ‘Não, você não me entendeu. Eu quero que você colabore em tudo, a vida toda’, ele completou. Eu pensei: ‘será que esse cara está me pedindo em casamento? Se não for, eu vou pagar o maior mico da história’. Ai ele me pegou a mão pela primeira vez, acariciou e fez a pergunta direta: ‘você quer casar comigo’. Paulo tinha 17 anos a mais do que eu. Por outro lado, pensei no quanto era simpático, culto, maduro. Precisava admirar para me apaixonar. Aí eu disse sim. Ele ficou eternamente grato porque eu disse sim imediatamente. Isso foi em novembro de 1951, nos casamos dois meses. Vivemos felizes durante 41 anos”, conclui.
EXTRAS ESPECIAIS PARA O BLOG: 
TRECHOS E FOTOS DA ENTREVISTA DE NORA RÓNAI. 

* Muitos dos momentos vividos pelos Tausz em Fiume foram registrados em fotos por Edoardo. “Ele era excelente fotógrafo” – recorda Nora – “e fazia questão de tirar fotos da gente em toda e qualquer ocasião. Passeios, reuniões de família, cenas de Fiume, Edoardo, de fato, registrava tudo. Nora selecionou para o livro muitas dessas fotos que, mais do que a história familiar, refletem a paz de uma época, a calmaria antes do Holocausto. Com a guerra, o pai e o irmão, Giorgio foram levados para um campo nazista, mas acabaram resgatados graças a um amigo de Edoardo que era funcionário público. Uma próxima prisão seria fatal. Chegara a hora de deixar Fiume. 

* Papa - “Lamento informar, mas todo mundo esperava que Pio XII condenasse a matança de judeus. Todos sabiam o que estava acontecendo. Mais tarde, o Papa se justificou dizendo que não se manifestou para não pôr em perigo a vida dos padres na Alemanha. Mas eu me pergunto, se você é um sacerdote e fica sabendo que estão matando milhões, você vai ficar mudo?”, conta Nora, que é afetuosa, narra os fatos mais dramáticos da sua vida sem sinais de rancor, mas nesse momento revela indignação".

* Natação - Ela treina quatro vezes por semana, durante uma hora, e participa das competições da Federação Internacional da Natação Amadora, categoria Master. É atleta da equipe Icaraí Master GReis. No momento, aguarda homologação do seu recorde mundial batido há poucas semanas, em Campinas, durante o Torneio Mais Mais de Natação Master, nos 100 metros borboleta, com o tempo de 3’ 51”. “Para comparar, o índice para classificação na mesma prova para o Mundial, em agosto, em Montreal, no Canadá, do qual vou participar, é de 7'15"”, diz ela, que já é detentora de um recorde mundial no revezamento 4x100, obtido em Gotemburgo, na Suécia. 
* Saudades de Fiume - "Tristeza.  Saudade, não. Aí é que está, se você sai do seu país para ganhar mais, melhorar de vida, pode sentir saudades. Mas nós deixamos Fiume para não morrer. Eu não conseguia sentir saudade de jeito nenhum. Até escrevo isso no livro. Por duas vezes, a gente sentiu alguma coisa parecida com saudade. Uma vez, Paulo e eu descemos do trem, senti a neve...  Quando você sente saudade, na verdade é saudade da juventude. Paulo era mais patriota, apesar de tudo o que sofreu ele, ainda tinha saudades da Hungria, mas eu vim mais nova". 
* Volta a Fiume - "Voltei em 1964. Tive a maior decepção. Eu sempre aconselhei a todos os meus amigos a não voltarem para o lugar onde nasceram. A decepção foi porque a própria cidade era tão mixuruca, decaída. Eu me lembrava daquela torre de Fiume, como se fosse imensa, era só aquilo? Voltei uma segunda vez em 1982, mesma coisa, não curti  mais, voltei mais por causa do Paulo.
Edoardo Tausz fotografa a família, em 1925. Foto: Arquivo Pessoal Nóra Rónai

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Os irmãos  Giorgio e Nora, em 1940. Foto: Arquivo Pessoal Norá Rónai